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TEDH, 11 de Julho de 2017, Francelina Moreira Ferreira c. Portugal, n.º 2. Revisão de sentença por decisão incompatível de órgão internacional. Confusão.

14 jul 2017

Processo penal, não audiência do arguido em segunda instância. Acórdão favorável a uma queixosa, do TEDH.  Execução em Portugal. Pedido de revisão de sentença com fundamento em decisão incompatível de órgão internacional. Não admissão do recurso pelo STJ. CEDH, art.º 6.º par. 1. Não violação.

Francelina Moreira Ferreira envolveu-se numa altercação e proferiu ameaças, tendo sido alvo de promoção penal. Veio a ser condenada em pena de prisão, expressa no pagamento de uma multa de 640€ e foi condenada a pagar danos morais às vítimas, o que veio a fazer em prestações. No decurso do processo verificou-se que a arguida possuía capacidades intelectuais e cognitivas reduzidas, mas que mantinha a sua imputabilidade penal. Francelina recorreu ao Tribunal da Relação do Porto que não a ouviu, examinando apenas as peças documentais do processo, e que manteve o decidido. A sua condenação penal, paga que está já a multa em que foi condenada, já não consta do seu registo criminal.

Francelina queixou-se ao TEDH onde venceu, tendo Portugal sido condenado por uma violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH, direito a um processo equitativo, por a arguida não ter sido ouvida em segunda instância. Recebeu uma indemnização e, em execução de sentença junto do Comité de Ministros, Portugal comprometeu-se a modificar o Código de processo penal no sentido de impor a audiência material da pessoa arguida no julgamento, em segunda instância (recurso da decisão de condenação).

Francelina, não conformada com a sua condenação penal, e beneficiando do acórdão do TEDH que condenava Portugal por uma violação do artigo 6.º par. 1, pediu a revisão da sentença ao STJ, alegando a não conformidade da sentença condenatória com a decisão posterior do TEDH. Pretendia ser ilibada da prática de qualquer crime.

O Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso, considerando que não havia incompatibilidade entre a decisão nacional de condenação e  o acórdão do TEDH.

Francelina voltou a queixar-se ao TEDH que admitiu a sua queixa mas não lhe deu provimento, considerando não existir violação do artigo 6.º da CEDH, neste caso.

A questão é delicada. O seu pano de fundo, num contexto de primado assumido do direito internacional público em relação aos ordenamentos jurídicos nacionais, consagrados nas diferentes Constituições dos países europeus, geralmente um monismo do direito com o primado do direito internacional (ou seja o todo formado pela ordem jurídica internacional e nacional é um, e neste contexto, prima o direito internacional), é o da chamada e conhecida estanqueidade do direito nacional em relação ao direito internacional. Ou seja, apesar deste monismo com primado do direito internacional, uma decisão de uma instância internacional carece de ser traduzida na ordem interna para produzir os seus efeitos. Nomeadamente para reabrir uma sentença definitiva, contrariar os efeitos do caso julgado. Sem o que não tem autoridade. Determinados países escolheram a via da queixa constitucional, ou do recurso de amparo constitucional, como a Alemanha ou a Espanha, outros países consagraram o mecanismo do recurso extraordinário de revisão de sentença, assente numa decisão de órgão internacional de controlo não compatível ou pelo menos contrário.

Portugal tendo assumido no seu Processo Civil, e  no seu Processo Penal, o mecanismo da revisão de sentença, Francelina entendeu que devia obter a execução da sentença do TEDH por meio de um recurso de revisão da sentença interna de condenação.

Por seu turno, o STJ procedeu a uma interpretação restritiva dos fundamentos de revisão da sentença e não aceitou o pedido de revisão. Entendeu que o acórdão da Relação do Porto que não tinha ouvido Francelina e tinha mantido a condenação, não era inconciliável com o acórdão do TEDH. E entendeu que a falha de audição da queixosa pela Relação constituía mera irregularidade processual, não suscetível de revisão. Entendeu que, mesmo irremediável, uma nulidade não pode conduzir a um recurso extraordinário de revisão de sentença. E que por isso, o TEDH se teria limitado a condenar o Estado na indemnização pelo dano moral de Francelina.

Ao examinar o problema, o TEDH colocou os seguintes princípios como base do raciocínio: uma decisão de verificação de violação da CEDH é declaratória. A competência de execução cabe ao Comité de Ministros (CM) nos termos do artigo 46.º da CEDH. A função do CM não impede que ao executar o acórdão, as medidas do Estado levantem um problema novo de direitos humanos, à luz da CEDH. Nesta conformidade, o TEDH afirmou a sua competência para proceder ao exame dos fundamentos de queixa de Francelina, competência que lhe era negada pelo Governo, que entendia que a competência de execução competia ao CM.

Em contrapartida, apesar de poder proceder ao exame das razões de queixa de um requerente, em sede de execução de um seu anterior acórdão, o TEDH não tem, segundo o diz, competência para ordenar a reabertura de um processo, embora possa indicar ser esta desejável, à luz do objetivo de uma sentença que venha repor a ordem numa relação controvertida, a reconstituição natural da situação que existiria a não ter ocorrido a lesão.

Examinando as palavras do STJ, que referiu a questão do acerto da condenação da requerente, o TEDH entendeu que a questão da compatibilidade do processo de exame do pedido de revisão é destacável dos aspetos associados à execução do anterior acórdão, por existir uma questão nova, precisamente a análise do acerto da condenação da requerente à luz da verificação do seu direito a um julgamento equitativo.

Assim, para o TEDH, a falta de equidade alegada do processo conduzido no quadro do pedido de revisão e os erros alegados pela queixosa, que esta imputou ao STJ, são os elementos novos em relação ao anterior acórdão do TEDH, que condenara o Estado por violação do direito de Francelina a ser ouvida em segunda instância penal.

Para reduzir a queixa à sua dimensão de queixa, para mantê-la dentro da sua condição de queixa por violação de direitos humanos, e não a transformar em mais uma via de recurso, vindo o TEDH a ser uma quarta instância de recurso, a revisão da sentença, para ser relevante, tem de operar em caso de erro judiciário. O que permite ao TEDH dar o passo seguinte, dizendo que o artigo 6.º da CEDH é aplicável à revisão em matéria penal, sempre que a revisão conduza a colocar-se em questão o bem fundado de uma acusação em matéria penal. E ao ter referido o acerto da condenação da requerente à luz da verificação do seu direito a um julgamento equitativo, o STJ ter se ia pronunciado sobre o bem fundado da acusação em matéria penal de Francelina, o que tornava a queixa admissível.

O TEDH desenvolveu, a seguir, o seu raciocínio quanto ao fundo, acabando por, louvando-se na prática e nas eventualmente escassas consequências materiais da posição do STJ para com Francelina, optar pela não violação por Portugal do artigo 6.º par. 1 da CEDH.

A decisão é muito inconfortável para o leitor e gerou votos dissidentes em todas as direções.

Antes de apreciar o que for possível destas opiniões, seja dito que o que se extrai de relevante desta jurisprudência proferida no caso Moreira Ferreira n.º 2: não há dever de fundamentar as decisões de admissão ou de rejeição de recursos na ordem processual interna; mas sempre que uma jurisdição se pronunciar sobre o bem fundado de uma acusação penal, tem de fundamentar.

Um primeiro conjunto anexo ao acórdão, de opiniões dissidentes, de uma grande coerência, examina primeiro a questão do artigo 46.º da CEDH: a competência de execução dos acórdãos cabe ao CM. O TEDH apenas teria penetrado neste exame, aceitando a queixa, por uma veleidade de ter a sua palavra a dizer em relação à execução dos seus acórdãos. Sobre o artigo 6.º par. 1, este nunca seria aplicável à revisão do processo penal. Não existiria um direito garantido pela CEDH à reabertura dos processos. Por outro lado, o pedido de reabertura, aceite ou rejeitado, não implicaria o questionamento da acusação penal, e por isso nunca seria aplicável o art.º 6.º par. 1 ao recurso de revisão de sentença. Apenas uma vez reaberto e novamente julgado, é que um processo poderia ser objeto de uma queixa para o TEDH.

O segundo conjunto de opiniões discordantes, liderado pelo Juiz Paulo Pinto de Albuquerque, repousa no princípio da reconstituição natural e afirma o direito à reabertura do processo penal. Salientando nomeadamente o perigo de se comprar a violação por meio da indemnização, este voto dissidente afirma que o artigo 6.º é aplicável à revisão do processo penal. Nota que o direito português foi mal interpretado pelo TEDH, na medida em que o recurso de revisão não se pronuncia sobre o bem fundado da acusação. O STJ teria pura e simplesmente agido numa posição de abuso de direito. Acaba, concluindo que embora assim o diga o TEDH, os seus acórdãos não são meramente de declaração, possuindo importantíssimas consequências. Por isso o TEDH deveria ter sido mais generoso e imposto a reabertura do processo, enquanto o STJ, ao recusar reabrir o processo interno, não teria tido em conta o acórdão Moreira Ferreira inicial, e por isso teria estado em violação do artigo 6.º par. 1.

O terceiro grupo de opiniões dissidentes, vem dizer que a reabertura não é sempre obrigatória, mas que neste caso, frente à muito grave situação de não audiência da arguida em segunda instância, sê-lo-ia. Teria sido obrigatória a reabertura do processo.

O último voto dissidente é do juiz Bosnjak que diz muito simplesmente que na medida em que o STJ interpretou o acórdão do TEDH para concluir pela não reabertura, teria havido violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH.

A dificuldade deste acórdão do TEDH para um leitor medianamente habituado à leitura destes acórdãos está em que, nos últimos tempos, o TEDH vem perdendo alguma coragem em manter a coerência das suas posições. Reconhece a situação difícil, ou opta por qualifica-la como difícil, e depois não corresponde às expectativas que criou no próprio coletivo de juízes que o integram, gerando a revolta destes e criando confusão. Tal não é bom para a consolidação da jurisprudência internacional, que se torna errática, não sabendo porque optar, se pela defesa dos direitos humanos, como tem sido seu timbre desde a sua instituição em 1949, se por opções mais conservadores espelho dos tempos modernos, à maneira do filme de Chaplin.

O TEDH podia ter dito que o recurso da recusa de reabertura se enquadrava na competência do CM à luz do art.º 46 e matava a questão, nem sequer se vinha a colocar a questão da aplicação do artigo 6.º par. 1, uma questão logicamente posterior. Não seguiu este caminho, pressentindo que algo não teria corrido bem na recusa de admissão do recurso pelo STJ. À luz das suas competências de direito internacional público, a opção é legítima e, até, justa. Assim, entendeu que não lhe cabia avaliar a recusa em admitir um recurso, mas que o deveria fazer sempre que estivesse em causa a avaliação da acusação penal do arguido.

Criou a espera, como o faz em muitos outros casos, de resolver mais um problema de direitos humanos, o que veio, por prudência, a não fazer: embora a questão teórica de direitos humanos seja de essencial gravidade, materialmente, Francelina não ficou muito prejudicada, foi indemnizada pelo dano moral e já nem existe rasto da sua condenação no seu registo criminal.  Estaria tudo bem. Mas ao optar pela ponderação das consequências do seu acórdão a que procedeu, o TEDH, ou proferiu um julgamento político para não desagradar a mais um Estado Parte na CEDH, ou se transformou numa quarta instância de recurso, porque à luz do exame do caso concreto, entendeu que não havia mais nada por examinar, atendendo à situação de Francelina, e não da questão importante de direitos humanos que tinha em mãos.

Fica uma promessa não cumprida do Estado português, proposta em execução de sentença junto do CM e que depois foi varrida para fora do processo: a promessa de introduzir uma alteração legislativa que consagre definitivamente o direito de audiência do arguido em segunda instância do julgamento penal. A separação de poderes deveria ajudar. Pode ser uma competência partilhada do executivo e do legislativo, ou, reservada da Assembleia da República

 

por: Paulo Marrecas Ferreira