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TEDH, 15 de dezembro de 2016, Khlaifia c. Itália

9 jan 2017

Queixa de três cidadãos tunisinos chegados à Itália em 2011 e expulsos a seguir em condições difíceis. Acórdão da Seção do TEDH identificando violações de modo coerente. Acórdão da Grande Chambre proferido a seguir, de muito difícil leitura. Expressão da dificuldade em conciliar o direito com a prática no terreno?

Khlaifia e dois outros cidadãos tunisinos queixaram-se ao TEDH da sua expulsão em condições deficientes pelas autoridades italianas, a seguir à primavera árabe de 2011 ao TEDH, alegando a violação do seu direito à liberdade, a ausência de recurso da sua privação de liberdade, o sofrimento de práticas cruéis, desumanas e degradantes, a sua expulsão ter sido uma expulsão coletiva contrária ao artigo 4.º do Protocolo n.º 4 à CEDH e de não terem beneficiado em todas estas violações de um meio jurídico, disponível e acessível que lhes permitisse pôr cobro às violações, violando assim, também o art.º 13.º da CEDH conjugado com todas estas disposições.

Chegaram a Lampedusa e foram detidos num centro de retenção administrativa de onde foram deslocados para Palermo na sequência de uma revolta dos detidos que atearam fogo ao centro de retenção. Aí foram mantidos por alguns dias em dois barcos, o Vincent e o Audace, até serem conduzidos por via aérea até ao aeroporto de Tunis onde foram colocados em liberdade.

A Seção do TEDH que examinou inicialmente o caso, aceitou as suas queixas, julgando-as procedentes, com exceção do período passado nos barcos, na medida em que as condições de detenção nos navios tinham sido consideradas aceitáveis mediante visita de um deputado ao Parlamento italiano que as tinha cuidadosamente avaliado.

Já, a Grande Chambre não deu razão aos requerentes em todos os seus argumentos, produzindo um acórdão de algo difícil leitura.

Entendeu que, na medida em que as detenções foram além do simples quadro administrativo e efetivaram-se em verdadeira privação de liberdade, foram uma violação de liberdade para o efeito do artigo 5.º par. 1 da CEDH, relativo ao direito à liberdade e à segurança e que, para este efeito, deveriam ter podido ser avaliadas por um juiz, beneficiando os migrantes da possibilidade de pedir, providências como o habeas corpus. Nomeadamente, o tempo passado em detenção no centro de retenção administrativa sem garantias judiciais, foi considerado longo pela GC. Na medida em que os migrantes não foram informados das razões da sua detenção, houve, violação do seu direito à informação, previsto no par. 2 do mesmo art.º 5.º. Porque, não tendo sido informados das razões da sua detenção, não puderam recorrer dela, também se verificou a violação do par. 4 deste artigo.

Já, a GC não considerou existir violação do artigo 3.º, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes neste centro de retenção administrativa, contrariamente ao que houvera decidido a Seção. A justificação está, para a GC, no grande afluxo de pessoas a estes centros provocado pela primavera árabe e, assim, na inexigibilidade de um tratamento melhor da parte das autoridades. A retenção sucessiva nos barcos, como sucedera com o acórdão da Seção, não foi considerada em violação deste mesmo artigo 3.º. Mas a GC entendeu existir violação pela inexistência de direito a um meio de recurso efetivo da detenção nos barcos à luz do art.º 13.º da CEDH.

Onde, contudo, a GC parece ter sentido mais dificuldades, ou, onde a leitura do acórdão se torna mais difícil para o leitor, é na questão da proibição de expulsões coletivas de estrangeiros. Depois de sugerir que eventualmente a existência de um recurso de efeito suspensivo automático da decisão administrativa de expulsão (no caso um despacho do comandante da polícia local sem direito a recurso) daria uma garantia de juridicidade à expulsão de vários migrantes, retirando-lhe o caráter de coletiva, a GC vem dizer que a existência deste recurso com este efeito suspensivo (numa situação que é distinta do pedido de asilo, para o qual o TEDH vem decidindo, com jurisprudência assente, que o recurso da decisão administrativa de expulsão para uma formação judicial deve ter efeito suspensivo, o que não foi modificado), não é necessária para descaracterizar uma expulsão como coletiva, bastando a identificação dos migrantes, o que foi feito, embora a documentação pertinente tenha sido destruída no incendio do centro de retenção o que torna a leitura do acórdão ainda mais difícil, depreendendo-se mesmo assim dos factos, uma muito sumária identificação dos migrantes.

Ora, se o tratamento individualizado de cada caso de pedido de imigração está assente na jurisprudência do TEDH para descaraterizar a expulsão simultânea de vários cidadãos como expulsão coletiva de estrangeiros, proibida à luz do direito internacional, a mera identificação de cada pessoa a expulsar não é bastante para retirar a dimensão coletiva à expulsão. Assim o entendeu a Seção que tinha optado pela violação do artigo 4.º do Protocolo n.º 4 da CEDH que proíbe esta expulsão coletiva.

Como o diz o juiz Serghides na sua lúcida opinião dissidente parcial, a identificação de cada pessoa, com nome, país de origem, eventualmente morada no pais de origem, não corresponde a uma entrevista com o migrante, a receber ou a expulsar, entre muitos, com o tratamento documental correspondente, e a prestação do conjunto de informações – nomeadamente sobre se tem condições de formular um outro pedido como o de asilo, o exame da situação do seu país de origem frente à sua situação concreta, a sua situação familiar, etc. Nesse sentido, para o juiz Serghides, e a Seção tinha decidido neste sentido, houve violação do art.º 4.º do Protocolo n.º 4 e violação do artigo 13.º da CEDH combinado com este artigo, por não existir um meio judicial efetivo para superar esta violação, além das demais violações identificadas.

Nesta medida o Acórdão da Grande Chambre, última guardiã do direito europeu dos direitos humanos, recuou em relação ao acórdão, talvez mais solidamente fundamentado, da Seção do TEDH, que inicialmente recebera a queixa. 

 

por: Paulo Marrecas Ferreira