Simp

Está aqui

TEDH, 1ª Seção, A e B c. Croácia, Acórdão de 20 de junho de 2019

27 jun 2019

CEDH, Artigo 3.º, 8.º e 13.º. Um pai acusado pela filha e pela ex-companheira de sevícias sexuais sobre a menina.  Situação de forte manipulação dos vários testemunhos que impediu a promoção penal. Comportamento considerado diligente das autoridades nacionais. A questão da representação da menina diante do TEDH e a necessidade afirmada de serem redigidas regras no regulamento relativas ao Curator ad Litem no caso de queixas por crianças.

Uma mãe e a sua filha queixaram-se contra a Croácia ao TEDH por esta não ter protegido os seus direitos. Face à dificuldade do caso e ao relacionamento das partes, o TEDH pediu à Ordem dos Advogados croata a nomeação de um representante para a criança perante o TEDH, no quadro do processo de queixa.

Mãe e filha queixaram-se de que as autoridades croatas não tinham dado pronta resposta às alegações de abuso sexual da criança, que imputaram ao pai da menina.

A mãe nasceu em 1984 e a menina em 2009. A mãe, A., tinha um relacionamento com o pai, C., do qual nasceu a menina B., todos viviam em casa dos pais de C., até que A. deixou a casa onde viviam, levando B. Esta continuou, no quadro de uma regulação da autoridade parental, a visitar a casa de C., onde permanecia com este, duas a três noites por semana.

B. então com quatro anos e meio de idade, revelou à sua mãe que o pai desenvolvia com ela brincadeiras de natureza sexual. A. Acionou, então, os meios de proteção da criança. Ao longo das sucessivas entrevistas veio a saber que os próprios pais de C. o teriam avisado para não praticar estas brincadeiras com a menina, sendo que este cantaria cantigas de natureza erótica ao praticar estes gestos.

Foi instaurado um processo-crime contra C., vindo as declarações de B. a serem confirmadas por várias testemunhas. Entretanto desenvolveu-se um ambiente de tensão entre os progenitores, vindo os pais de C. a acusar A. de bater e de insultar B., relatórios pediátricos foram inconcludentes (a menina era inteligente e desperta e não revelava sinais de abuso), os professores do jardim de infância não notaram sinais de abuso sexual. Um ponto litigioso foi o da presença constante de A. nas entrevistas que eram conduzidas sobre B., a qual, de resto, pedia sempre a presença da mãe. O relatório pericial sobre a menina revelou que esta podia ter sido abusada pelo pai, sem revelar um real traumatismo daí decorrente. O mesmo relatório dava conta da violência do conflito entre A. e C. Nas declarações à polícia, o pai sempre negou qualquer abuso sexual sobre a menina.

A mãe intentou uma ação relativa à guarda da criança junto do tribunal de família e menores.

Outro relatório pericial, entretanto publicado, revelou que a menina se interessava em excesso por assuntos de natureza sexual e que isto revelava um trauma, possivelmente causado pela interferência do pai. Novamente, do relatório, constou o registo da violência nas relações entre mãe e pai.

O processo-crime acabou por ser arquivado, sem acusação pelo Ministério Público, tendo este fundamentado esta decisão na impossibilidade de obter um depoimento verdadeiro da parte da criança perante as manipulações e o conflito entre os pais. A. requereu a abertura da instrução sem êxito e queixou-se ao Tribunal Constitucional da inércia do MP, também sem êxito, em nome da autonomia desta magistratura. A decisão judicial no processo de guarda de crianças junto do Tribunal de família e menores foi, entretanto, proferida. Esta decisão confiava a guarda da menina ao pai. Este ponto é problemático para quem lê o acórdão, na medida em que a erotização da menina, com uma imputação desta erotização ao pai, ainda que não prosseguisse a ação penal, deveria ter conduzido a alguma prudência na adoção desta decisão judicial pelo Tribunal de família e menores croata. Juntamente com a atribuição da guarda da criança ao pai, foi designado um perito para acompanhar cada um dos progenitores, no sentido de os ajudar a exercerem a autoridade parental, e foi decidido ainda o apoio psiquiátrico à menina.

O TEDH foi chamado pela mãe, agindo em representação pessoal e em nome da filha, a pronunciar-se sobre a questão mediante a queixa que recebeu. Segundo as queixosas, o fracasso das autoridades em proteger a menina ter-se-ia saldado na violação dos artigos 3.º (maus tratos), 8.º (vida familiar) e 13.º (não efetividade do recurso). No plano da admissibilidade, o TEDH rejeitou a queixa da mãe. A legitimidade desta apenas poderia residir em agir em representação da filha, não em seu nome pessoal. E pediu à Ordem dos Advogados (doravante OA) croata a designação de um curator ad litem para a menina, pedido que a OA satisfez. Quanto ao fundo, o TEDH entendeu que a questão acaba por ser a da compatibilidade do quadro legal croata com as regras europeias de direitos humanos.

Elencou, neste contexto, os seguintes princípios gerais:

Ao Estado compete a salvaguarda da integridade física e moral da pessoa, daí derivando as obrigações positivas de proteger concretamente contra a violência, de conduzir uma investigação efetiva, de proteger as vítimas em processo penal, de construir um quadro legal capaz de promover a repressão penal dos crimes sexuais; o que não significa necessariamente que toda a acusação (em sentido não técnico) deva corresponder a uma condenação. As crianças são seres particularmente vulneráveis e existe, nesse sentido, a obrigação de criminalizar a violência sexual contra as crianças. Na medida em que, nestes casos, aflora sobremaneira a necessidade de proteger a identidade da criança, a margem de apreciação do Estado é muito reduzida.

A seguir, aplicou estes princípios ao caso. Notou que os tribunais acordaram em que a criança tinha uma expressão fortemente sexualizada e que, nesse sentido, poderia existir um trauma na criança. Considerou três pistas: 1. Verificar se havia um quadro legal adequado; 2. Se as autoridades cumpriram o seu dever processual de cuidar e proteger a criança, mediante uma investigação efetiva; 3. Se os direitos da criança como vítima de um potencial abuso, foram tidos em conta.

O TEDH reconheceu que a Croácia possui um quadro legal e regulamentar adequado; e verificou que nenhum dos intervenientes no processo ficou inativo. Nem a polícia, nem os médicos, e que todos os relatórios periciais foram considerados pelo MP. Notou, ainda, que nenhum dos peritos que redigiu os relatórios concluiu pela violação da menina às mãos do pai, ou pela prática de outras sevícias. Para o TEDH, as autoridades conduziram uma investigação efetiva e foram tidos em conta os particulares direitos da criança enquanto vítima de um potencial abuso. Assim, não se verificou, neste Acórdão, a violação dos artigos 3.º, 8.º e 13.º da CEDH. O TEDH considerou inadmissível o segmento seguinte da queixa em que era criticada a atribuição da guarda da criança ao pai.

O juiz Wojtyczek exprimiu um voto concordante em que esclareceu alguns pontos importantes do Acórdão. O curator ad litem não deveria ter sido designado pela OA mas por um tribunal croata.  Num caso tão difícil como este os vários intervenientes no plano interno deveriam ter sido ouvidos. Assim, além da mãe, também o pai teria alguma coisa a dizer.

Noutro voto concordante, os juízes Koskelo, Eike e Ilievski insistiram na necessidade de uma clara e bem estabelecida representação autónoma da criança para evitar a manipulação emocional pelos progenitores. Aparece aqui uma primeira dificuldade que terá de ser ponderada  – como despoletar a queixa se não o fizer a representante legal da menor? Ainda que imediatamente a seguir se nomeie um curator ad litem segundo regras próprias.  

A proposta destes magistrados é de serem adotadas pelo TEDH regras gerais e abstratas que prevejam a queixa por parte de menores, ao TEDH, em casos desta natureza.

Os juízes Sicilianos, Tulkens, e Pejchal emitiram uma opinião dissidente comum, exprimindo de uma certa forma o desconforto que o leitor pode sentir quando verifica que, em todo este quadro processual, a guarda da criança acaba por ser confiada, internamente, ao pai.

Não concordam com o Acórdão do TEDH. A primeira questão, comum aos vários votos: o TEDH deveria editar regras claras quanto ao curator ad litem nestes casos. Outra questão, própria desta opinião dissidente: o TEDH deveria estabelecer critérios claros relativos à admissibilidade nestas questões.

Notam que a criança sofreu uma vitimização secundária, pela repetição constante e exaustiva dos depoimentos que teve de prestar. Um só deveria ter bastado, devendo ser gravado e registado (áudio e vídeo).

Houve muitas falhas das autoridades no tratamento com a mãe. Nomeadamente, competiam àquelas deveres de informação e orientação, os quais não foram cumpridos, ainda que este não cumprimento possa não se traduzir na violação dos artigos 3.º e 8.º da CEDH.

Relativamente à efetividade da investigação, as autoridades concluíram demasiado depressa pela impossibilidade de investigar, perante a manipulação, na medida em que existiam sinais de trauma no comportamento excessivamente erótico da criança. Eram os seus direitos enquanto criança vítima que deveriam ter sido atendidos.

Nomeadamente, a menina não foi protegida contra a pressão emocional em torno dela. Não existiu nenhuma entrevista forense, neste sentido, para saber se a menina realmente foi violada ou de alguma forma abusada. Foi isto que conduziu a menina a adotar um tal comportamento face às sucessivas entrevistas, que retirou qualquer utilidade a estas.

Não houve uma investigação atempada ao material que o pai poderia ter em sua posse (A acusara C de possuir conteúdos pornográficos no seu computador e isto não foi visto).

No final, esta opinião dissidente conclui por observações em torno do seu ponto inicial. O TEDH tem mesmo de fixar regras previsíveis e claras para as partes relativamente ao curator ad litem e o critério desta fixação é o melhor interesse da criança, o qual é direito substantivo, princípio interpretativo e regra processual.

Tudo isto aponta para que o TEDH, no seu regulamento de processo, possa vir a configurar um procedimento especial de queixa para as crianças semelhante ao que já é instituído no contexto da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, e dos seus Protocolos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos