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TEDH, 1ª Secção, Dikaiou e Outras c. Grécia, Acórdão de 16 de julho de 2020

22 jul 2020

CEDH, Artigos 2.º § 1 vida; 3.º§1, tortura e tratamentos cruéis desumanos e degradantes; art.º 5.º § 1, liberdade e segurança, art.º 8.º § 1 direito à vida privada e familiar; artigo 14.º proibição da discriminação (em relação com outra disposição da CEDH). Qualificação dada pelo TEDH da questão dos maus tratos como do direito a um recurso efetivo em relação com os maus tratos, independentemente da existência material destes maus tratos. Artigo 13.º em relação com o artigo 3.º : violação.

Seis mulheres reclusas, três das quais preventivas, as outras três em cumprimento de pena (definitivas), todas portadoras do vírus do SIDA queixaram-se ao TEDH contra a Grécia, das condições de detenção na prisão de mulheres de Tebas.

Em 2013, as queixosas formularam um pedido ao procurador incumbido da supervisão da prisão de Tebas, por alegadas violações dos art.ºs 2.º (vida), 3.º (proibição da tortura), 5.º (liberdade e segurança), 8.º (vida privada e familiar) e 14.º (proibição da discriminação), da CEDH. Entendiam que a manutenção em prisão de mulheres, como elas, doentes, sem medicação nem tratamento, era atentatória da dignidade humana e que, vista a sua patologia, significava uma condenação à morte.

Tinham sido transferidas da prisão de Korydallos, onde cada uma tinha uma cela individual, para a de Tebas, onde viviam juntas, em camarata. Faltava-lhes, ainda, um médico e enfermeiros especializados, sendo que o médico de clínica geral vinha de 15 em 15 dias e não concedia qualquer prioridade aos doentes com SIDA. Queixavam-se de interrupções na sua terapia, a qual tinha de ser continuada sob pena do agravamento rápido do seu estado de saúde. Algumas queixaram-se de terem desembolsado quantias elevadas para poderem ser tratadas. As condições de detenção eram deficientes, no inverno não havia aquecimento, água quente, a qual se encontrava disponível apenas entre a 01:00 e as 05:00 da manhã. A água da prisão sendo salobra, era imprópria para beber, tinham de comprar água em garrafas, não tendo meios para o fazer. A comida não incluía nem fruta, nem peixe. Recebiam um ovo de manhã, o qual nem sequer estava cozinhado. Tinham de partilhar entre todas, nomeadamente com algumas mulheres saudáveis, o mesmo congelador e por isso temiam contaminar as mulheres saudáveis. Quanto à higiene, não tinham acesso a produtos de limpeza, a prisão não lhes dava detergente para a roupa e, por isso, tinham de a lavar em alguidares que tinham trazido da prisão de Korydallos. Enfim, tinham acesso ao pátio da manhã e de tarde, mas a prisão não dispunha de ginásio. Queixavam-se, ainda, de ter sido colocadas em regime geral de detenção mas numa camarata reservada para elas, o que criava um ghetto na prisão, a ilha das mulheres com SIDA, e lhes dava tendências para a mutilação e o suicídio. Pediam, no fim, a sua transferência para um hospital – prisão onde pudessem ser tratadas. Pediam, ainda, que aquelas que se encontravam em regime de prisão preventiva aguardassem o julgamento em liberdade, em atenção ao reduzido perigo que representavam e à sua patologia.

No seguimento deste pedido foi-lhes instalado um esquentador elétrico na camarata e foi aumentada a quantidade de comida. Os seus demais pedidos, nomeadamente de um maior apoio médico foram ignorados. Acabaram por se queixar ao TEDH.

Em matéria de documentação internacional relativa ao tema, as Recomendações Rec(87)7 do Comité de Ministros (CM) do Conselho da Europa versam sobre os aspetos éticos e organizativos dos cuidados de saúde em ambiente penitenciário, tendo a Rec (2000)22 um anexo relativo às sanções e medidas aplicadas em comunidade. A Rec 1418(1999) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) é relativa à dignidade dos doentes com doenças incuráveis bem como às pessoas que vão falecer; a Rec (2006)2 do CM é relativa às regras penitenciárias europeias. Enfim, jurisprudência de referência está nomeadamente contida no Acórdão do TEDH proferido no caso Gülay c. Turquia (2013). A APCE tem ainda recomendações sobre os doentes e o SIDA bem como o CM.

Nas suas visitas à Grécia, o Comité para a Prevenção da Tortura (CPT) do Conselho da Europa concluiu não existir nenhuma razão de saúde pública para isolar os seropositivos dos demais reclusos, embora tal possa ser de recomendar frente aos elevados níveis de sobrelotação carcerária. Notou, ainda, que neste país está vedado o acesso ao trabalho às mulheres reclusas seropositivas. O CPT tem recomendado a instituição pelo Governo grego de um programa destinado a melhorar a saúde dos presos sofrendo de doenças transmissíveis, em particular o SIDA.

Ao nível das NU a então Comissão dos direitos humanos (CDH), havia deixado claro, em 1995, que qualquer discriminação assente no SIDA era ilícita e proibida pelas normas e princípios do direito internacional.

Após esta colocação dos instrumentos internacionais, o TEDH analisou a questão da violação do art.º 3.º (maus tratos) e da discriminação invocada em razão destes maus tratos (3.º + 14.º). Admitiu as queixas nestes segmentos e, quanto ao fundo, indicou ser a jurisprudência de referência o Acórdão que proferiu no caso Martzaklis e outros c. Grécia. Destacou, em primeiro lugar, as condições gerais de detenção (art.º 3.º). Observou que a camarata tinha 80m2 estando equipada com camas, armários, mesas e cadeiras e uma casa de banho. O espaço pessoal era suficiente. Após a queixa ao magistrado supervisor as presas passaram a dispor de um esquentador. Tinham “liberdade de pátio” 2:00 de manhã e 2:00 de tarde, recebiam lixivia e as que não podiam adquirir produtos de higiene pessoal tinham estes produtos distribuídos pela prisão. Para o TEDH, num tom de alguma austeridade (embora se possa entender que o regime penitenciário traz consigo uma certa medida de sofrimento inerente à sua própria natureza), as condições gerais de detenção eram suficientes.  Passando às alegações de estigmatização e de “gethoisação” é certo que foram colocadas juntas. Tal, no entanto não visava atingir as reclusas doentes e sim dar confiança e maior segurança às outras mulheres reclusas. Saíam para o pátio com as outras mulheres e partilhavam o mesmo congelador com várias outras, pelo que não se podiam queixar de isolamento. Por isso, para o TEDH não se verificou a estigmatização destas mulheres. Talvez se devesse procurar aprofundar a justificação à luz dos critérios do CPT. Certamente a prisão de Tebas estará sobrelotada, o que pode tornar o isolamento das reclusas doentes em camarata autónoma aceitável (como o diz o CPT, em termos gerais nada justifica o isolamento dos reclusos doentes exceto a sobrelotação carcerária) mas o TEDH não se debruçou sobre este ponto, tendo simplesmente atalhado em relação à questão da partilha do pátio e do congelador. O TEDH passou, a seguir, à questão dos cuidados médicos. Segundo ele, o Governo fez prova da prestação destes cuidados tanto mais que, na sua queixa ao magistrado supervisor, as reclusas não especificaram mais precisamente em que é que os cuidados prestados seriam deficientes. Por esta razão, segundo o TEDH, não faltaram os cuidados médicos às reclusas. Mais uma vez, sobressalta um tom de austeridade nesta opção do TEDH, uma vez que repousa em grande parte na não exatidão da especificação das reclusas quanto aos cuidados alegadamente em falta. Ainda que a opção decisória do TEDH seja certamente legítima, dá a impressão de uma troca de argumentos em que, para efeitos de exame, as questões se reduzem à troca de palavra contra palavra. O exame da questão, frente à gravidade da patologia e aos alertas contidos nos instrumentos internacionais, peca pelo seu laconismo e imprecisão. Talvez tivesse, ainda que para alcançar a mesma conclusão (nem que fosse no fim de sossegar os leitores quanto à justiça europeia, “justice must not only be done, it must also be seen to be done”), valido a pena o TEDH debruçar-se com maior pormenor sobre esta questão. Por todas estas razões não se verificou a questão dos maus tratos (condições de detenção e cuidados médicos, art.º 3.º CEDH), nem da discriminação em relação aos maus tratos (3.º +14.º) uma vez que não se verificou segundo o TEDH nenhuma estigmatização ou isolamento desnecessário das reclusas.

O TEDH passou a seguir à questão do direito a um recurso efetivo em relação com as condições de detenção (3.º + 13.º CEDH). As queixosas invocaram, também, a questão da falta de recurso, embora não tivessem especificamente focado o art.º 13.º. O TEDH qualificou este segmento de queixa e admitiu-o. Quanto ao fundo, mostrou mais uma vez o poder da argumentação jurídica e judicial contida no acervo jurisprudencial do TEDH: pode haver violação do artigo 3.º + 13.º por se tratar da questão do recurso embora não se tenha verificado a violação do art.º 3.º (maus tratos) isoladamente. Da jurisprudência anterior relativa a esta questão na Grécia e das questões colocadas previamente pelo CPT, o TEDH procedeu neste segmento de queixa, um pouco em jeito da elaboração de um acórdão piloto em que, ao referir a violação, indica, de antemão, a resposta, deixando antever que todas as situações análogas por vir serão resolvidas da mesma maneira, então de modo liminar, por referência, enquanto a Grécia não resolver este problema. Para o TEDH, da prática resulta que deveria existir uma inspeção geral das condições de detenção, mais do que a confiança desta tarefa a um magistrado supervisor em cada estabelecimento penitenciário. O ónus da prova foi excessivamente formal para as queixosas neste ponto, forçando-as a tudo demonstrar quando o próprio magistrado supervisor, ele próprio, já conhece as deficiências da prisão e pode entender as queixas que lhe são dirigidas. Deveria bastar para o TEDH, numa posição consentânea com o regime de prova prima facie/ prova para além de toda a dúvida razoável que vem aplicando (é precisamente a meu ver esta consideração que falhou ao TEDH quanto ao exame da queixa relativa à deficiência dos cuidados médicos, supra), a indicação da possibilidade da violação para despoletar o processo de supervisão das condições de detenção. De certo modo, e mais uma vez, ressurge a riqueza da jurisprudência do TEDH enquanto acervo, ao distinguir entre um recurso preventivo das condições de detenção que seja efetivo, estando a natureza preventiva na possibilidade que as autoridades têm de reparar a violação e de repor a qualidade das condições de detenção, e o recurso sucessivo das condições de detenção, mais pobre, que não traz remédio, mas apenas uma compensação monetária, eventualmente, e só depois do desgaste de muito debate; de certo modo existiu um recurso preventivo das condições de detenção, uma vez que após a queixa ao magistrado supervisor foi instalado um esquentador e alargada a prestação de comida em termos de quantidade. Infelizmente, esta foi a única resposta do magistrado supervisor. Uma vez que foi atribuído o esquentador e alargada a prestação de comida, o magistrado não se ocupou das demais queixas, significando que o recurso não foi efetivo, nem a título preventivo, nem a título sucessivo, sendo de saudar este Acórdão quanto ao tratamento deste segmento da queixa. Verificou-se, assim, a violação do artigo 3.º em combinação com o art.º 13.º da CEDH.

Outro segmento de queixa incide sobre a diferença de tratamento entre as presas preventivas e as presas em cumprimento de pena, traduzido em mais uma invocação de discriminação em articulação com os maus tratos (art.º 3.º + 13.º). Em termos de pré entendimento próprio do jurista, é sabido que os presos preventivos, por serem reclusos precários no sentido de não se saber se o título que habilita à sua prisão tem carácter definitivo, sofrem, regra geral, um tratamento mais severo que os definitivos, o que pode ser tema de condenação de um país pelo CPT ou pelo Comité contra a Tortura (o CAT) das Nações Unidas, aquando da apresentação dos relatórios periódicos, ou numa queixa a este, dirigida por um particular.

No caso, as presas preventivas queixavam-se da maior severidade do regime penitenciário a seu respeito, uma vez que as presas condenadas por decisão transitada em julgado e em cumprimento de pena podiam invocar o artigo do Código Penal (o CP) relativo à melhoria das condições materiais de detenção (no caso, o art.º 110.º-A do CP grego). O Governo objetou que os presos preventivos dispõem de um mecanismo efetivo para o efeito. Três das queixosas eram definitivas. O regime das definitivas implicava a possibilidade de colocação em liberdade condicional em atenção ao seu tempo de pena já cumprido e em relação ao seu estado de saúde, o que não estaria disponível para as preventivas.

O TEDH observou que existe na verdade um meio à disposição dos preventivos que permite aos doentes com SIDA beneficiarem da colocação em liberdade enquanto aguardam pelo seu julgamento, sempre que gravemente doentes, e que este meio não foi acionado pelas preventivas. Não se verificou, assim, a violação do art.º 3.º + 14.º quanto a este segmento da queixa por esta questão não ter sido internamente esgotada.

O Acórdão foi votado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.
 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos