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TEDH, 1ª Secção, Fabris e Parziale c. Itália, Acórdão de 19 de março de 2020

25 mar 2020

CEDH, Artigo 2.º, direito à vida nas vertentes substancial e processual. Suicídio não previsível de um recluso toxicodependente em cumprimento de pena. Investigação adequada, nomeadamente com recurso a perito médico-legal escolhido pelo queixoso. Não violação em nenhuma das vertentes.

Gian Paolo Fabris (Fabris, o queixoso) e Carmela Parziale (Parziale, a queixosa) acionaram o TEDH em 2013, contra a Itália, queixando-se de este Estado não ter protegido a vida de um ente próximo.

O queixoso é tio e a queixosa é prima do falecido, um toxicodependente alcoólico desde os seus 16 anos, que foi detido e preso por várias ocasiões entre 1996 e 2005. Na sua última detenção e prisão, em 2004, sofria de uma cirrose, de uma hepatite C e de encefalopatia. A sua ficha médica na prisão descrevia-o como um indivíduo com o comportamento típico de um toxicómano que procura sempre alcançar um outro estado psicológico no quadro da sua vida corrente.

Em situação de prisão, veio a ter episódios de consumo de álcool, abusava dos medicamentos distribuídos para o tratamento da dependência das drogas, até que ficou estabelecido um protocolo segundo o qual os medicamentos já não lhe seriam confiados, mas seriam regularmente distribuídos pela administração, sob controlo de um funcionário de execução de penas.

Recusava, nomeadamente, submeter-se aos tratamentos da cirrose. Um dia, foi surpreendido a inalar o gaz da botija que era distribuída aos reclusos para a confeção das suas refeições. Levado à comissão de disciplina, justificou-se, dizendo que, como tinha o braço engessado, tentara abrir o cartucho de gaz com a boca. A explicação foi aceite, tendo-lhe sido recomendada prudência no manuseamento das botijas de gaz.

Acabou por falecer por inalação de outro cartucho de gaz, em maio de 2005. Apesar da relevância de outras causas (virtuais), o relatório da autópsia concluiu que o coração da vítima era frágil em resultado da sua experiência de vida, e que não resistira à inalação do gaz.

Os queixosos pediram várias investigações, tendo sido a própria investigação em que se chegou à conclusão da morte por inalação do gaz de botija, requerida por eles, e constituíram-se assistentes no processo de averiguações relativo à diligência do pessoal penitenciário, tendo ainda acionado uma ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo deficiente funcionamento do estabelecimento prisional. Apesar de terem conseguido que a perícia mais conclusiva fosse a sua própria perícia, o processo de averiguações não conduziu à responsabilização de nenhum funcionário do estabelecimento (o que não pediram), nem à responsabilização do Estado pelo deficiente funcionamento da justiça, na vertente da administração penitenciária.

Não se conformando com este resultado, os queixosos apresentaram o caso ao TEDH. O Estado opôs, na admissibilidade, a ausência de qualidade de vítima da prima do falecido à luz da CEDH. Embora esta tenha obtido “locus standi” no processo interno, o TEDH aceitou que não tinha a qualidade de vítima para o efeito da aplicação da CEDH, em razão do seu laço de parentesco com o falecido ser já afastado, e de o tio deste continuar no processo de queixa. O Governo opôs ainda ao queixoso o não esgotamento dos recursos internos entendendo que devia ter promovido uma ação de responsabilidade penal dos funcionários de execução de penas que pudessem estar envolvidos, ainda que a título de mera culpa ou negligência, no falecimento do seu sobrinho. O TEDH entendeu que existindo o meio da ação cível de responsabilidade extracontratual do Estado que o queixoso utilizou, e o meio da constituição como assistente no processo de averiguações, o queixoso esgotou os recursos internos recebendo assim a queixa como admissível. Enfim, foi determinante nesta opção, o facto de se dever à insistência do queixoso a obtenção do novo exame tanatológico, que conduziu à identificação da causa da morte como resultado da inalação do gaz da botija relacionado com a fraqueza do miocárdio do falecido.

Quanto ao mérito da queixa, o TEDH reconheceu que o art.º 2.º da CEDH (direito à vida) reconhece a obrigação positiva a cargo do Estado, de proteger a vida de uma pessoa sob a sua custódia, a qual obrigação pode chegar ao ponto de a proteger contra terceiros. Ainda assim, esta obrigação positiva, de alguma extensão, e de uma certa intensidade, não pode ser, segundo o TEDH, interpretada no sentido de impor ao Estado o ónus de prever as situações que, no contexto da vida de uma comunidade de perigo, não sejam previsíveis.

É determinante, neste ponto da análise, saber se o Estado fez tudo o que estava ao seu alcance para proteger o indivíduo contra si próprio, contra as suas próprias agressões a si mesmo. Nomeadamente, existe um particular dever de diligência do Estado em relação às pessoas que podem vir a cometer o suicídio.

Ora, verificou-se no processo interno que o falecido era toxicodependente e alcoólico mas não estava identificado como alguém com tendências suicidárias. Ainda assim, tendo em conta a particular fragilidade do falecido, existia o dever de o proteger contra qualquer situação anómala. A questão passou então a ser a de saber se as autoridades podiam ter consciência do perigo real ou iminente de uma tentativa de suicídio.

Ora, era conhecido o quadro patológico do falecido e este era acompanhado no quadro deste contexto patológico. Ainda assim, a insuficiência do miocárdio que determinou a morte ao inalar o gaz, só veio a ser conhecida com a autópsia do falecido. No que respeita ao seu comportamento, o falecido foi sempre enquadrado pelo pessoal da prisão. Além do mais, não mostrava sinais de fraqueza psicológica nos dias anteriores ao acidente e, embora existisse o dever de proteger o indivíduo contra si próprio, um dever de respeito pela sua dignidade igualmente implicava que ele estivesse habilitado a gerir os vários itens do seu dia-a-dia. Por estas razões, não se verificou a violação do artigo 2.º (direito à vida) na sua dimensão substancial.

Quanto ao dever processual de conduzir uma investigação efetiva (direito à vida, processual), o TEDH recordou que sempre que alguma pessoa falece sob a guarda das autoridades, existe o dever de investigar, um dever de alguma intensidade. Ainda assim, apesar da indagação de causas virtuais, o processo interno apurou a causa da morte, apuramento a que se chegou por meio da atuação do perito designado pelo tribunal, sob indicação do queixoso. Nada permitiu concluir, apesar de o processo ter sido longo (demorou sete anos), com incidentes e pedidos periciais, pela negligência das autoridades na indagação da causa da morte. Não se verificou, assim, para o TEDH a violação do artigo 2.º da CEDH, neste segmento da disposição (direito à vida, processual).

O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.
 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos