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TEDH, 1ª Secção, Mraovic c.Croácia, Acórdão de 14 de maio de 2020

27 maio 2020

CEDH, Artigo 6.º§1, iniquidade processual. A não publicidade de audiência de julgamento num caso de violação, por razões de proteção da dignidade da vítima não ofendeu a vida privada e familiar do arguido entretanto condenado nem constituiu uma iniquidade processual.  Não violação.

Mraovic queixou-se contra a Croácia em 10 de abril de 2013, da exclusão do público na audiência do seu julgamento, pela prática do crime de violação. Em 2005, uma jogadora de basquetebol denunciou criminalmente Mraovic por este a ter violado. Mraovic foi imediatamente preso.

No comunicado de imprensa relativo ao crime participado, a polícia expôs copiosamente a vítima na descrição dos factos. Esta intentou uma ação de responsabilidade contra o Estado, em que foi vencedora.

Em primeira instância Mraovic foi absolvido. O Ministério Público recorreu da sentença e o julgamento veio a ser repetido, à porta fechada, no tribunal de segunda instância. O queixoso pediu que a instância fosse pública, alegando que o quadro processual o tinha gravemente estigmatizado e que a vítima fizera largas declarações à imprensa. O Ministério Público opôs-se, tendo o tribunal rejeitado o pedido do queixoso, Mraovic. A fundamentação para a rejeição deste pedido foi a proteção da vida privada da vítima.

O queixoso recorreu desta decisão, alegando a iniquidade processual em que ficava colocado por o seu comportamento ter sido exposto publicamente e não haver, pela falta da publicidade da audiência, um meio para repor o equilíbrio atingido pela divulgação de que dizia ser vítima e o estigmatizava. Entretanto, a vítima da violação proferiu declarações em entrevistas a jornais, as quais foram publicadas e atingiam mais ainda o queixoso. Este insistiu na realização da audiência pública. Voltou a merecer a oposição do Ministério Público. Novamente o tribunal concedeu provimento ao pedido deste, com fundamento na proteção da vida privada e familiar da vítima da violação.

Durante a audiência à porta fechada que então decorreu, há registo em acta da sessão de uma prestação de depoimento pela vítima, em que esta desatou a chorar enquanto Mraovic sorria.

Mraovic acabou por ser condenado em três anos de prisão pela violação da jogadora de basquetebol. A leitura da sentença foi pública e foi coberta pelos três canais de televisão croatas.

Mraovic ainda apresentou uma queixa ao Tribunal constitucional (empregando a figura do recurso de amparo constitucional, um meio de reposição do direito inexistente entre nós) e queixou-se ao TEDH depois do Tribunal constitucional ter rejeitado a sua queixa por improcedente.

Materiais relevantes do direito internacional público relativos a esta matéria, constam da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 65/228, intitulada “Strengthening crime prevention  and criminal justice responses to violence against women”, e da Convenção de Istambul de 5 de maio de 2011, do Conselho da Europa, a Convenção para a prevenção da violência contra as mulheres e a violência doméstica. Esta última entrou em vigor na Croácia em 1 de outubro de 2018.  A Recomendação Rec(2006)8 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre assistência às vítimas do crime tem importantes disposições relativas à vitimização e à prevenção do crime (nomeadamente quanto à sua repetição), as quais incluem a proteção da identidade e da vida privada da vítima.

Quanto à UE existe a Diretiva CE do Parlamento europeu e do Conselho n.º 2012/29, a qual foi adotada já depois da prática do crime, que estabelece padrões mínimos para os direitos, apoio e a proteção às vítimas na identificação das necessidades de proteção pessoal destas. Dela consta a proteção da identidade e da vida privada das vítimas.  Uma das medidas de proteção elencadas é a realização da audiência à porta fechada nos processos relativos aos crimes de que são vítimas.

O TEDH admitiu a queixa e aceitou a justificação do problema como relevando do artigo 6.º § 1 da CEDH, iniquidade processual. Delineou os princípios gerais de acordo com os quais o direito à publicidade da audiência é um direito fundamental reconhecido no artigo 6.º § 1 da CEDH. Ao tornar a justiça transparente, o Estado faculta a possibilidade de um julgamento equitativo acontecer. Mas a regra da publicidade também compreende a exceção da proteção da vida privada e familiar, em particular, o processo nunca pode ser organizado de tal maneira que ponha em perigo a vida, a liberdade, a segurança das testemunhas, em especial daquelas que são chamadas a depor sobre os interesses em juízo, e mais ainda quando tal as possa atingir nos domínios mais íntimos da sua vida privada e familiar. Os interesses da defesa devem ser colocados em ponderação com a proteção das testemunhas nestes casos. Sempre que possa existir uma contradição entre os interesses da defesa a um processo justo e a proteção das testemunhas, é necessário assegurar a proteção destas.

Elencado o princípio geral e a correspondente exceção, o TEDH debruçou-se sobre os contornos do caso. Colocou o pressuposto da importância da proteção dos direitos das vítimas de crimes sexuais e articulou-o com os materiais extraídos do direito internacional público vigente. Não apenas é necessário proteger a identidade das vítimas, mas prevenir que não voltem a ser vítimas de outra agressão sexual.

O sistema de justiça penal não pode ser um sistema de justiça que aumente o sofrimento das vítimas de crimes sexuais. A natureza sensível do depoimento da vítima da violação justificava as limitações à publicidade da audiência. O exercício do poder discricionário conferido pela lei croata ao juiz foi justificado, nada tendo o seu exercício demonstrado de arbitrário.

Além da base legal e da justificação material do exercício do poder discricionário, a decisão de realizar a audiência à porta fechada foi objeto de um recurso judicial para o Supremo Tribunal croata, o qual examinou a questão e, fundamentando, manteve o decidido.

Curiosamente, a difusão da leitura da sentença pelos três canais televisivos veio dar a publicidade que faltou à audiência, no final, compatibilizando a audiência à porta fechada com o direito à publicidade da mesma audiência. Segundo o TEDH, o que tornou este caso específico, foi o facto de a vítima da violação ter proferido entrevistas a jornais no decurso do processo, enquanto não foi possível ao queixoso fazer o mesmo publicamente, desde a sala de audiência.

Apesar da dificuldade agora aparente, o Tribunal europeu entendeu que a gravidade do crime de violação pelo qual, de resto, o queixoso veio a ser condenado, é suficientemente importante para superar esta mesma dificuldade. O tribunal croata podia assim considerar legitimamente que a exclusão do público no processo criminal do queixoso era exigida pela necessidade de proteger a vítima da violação. Não se verificou, assim, a violação do artigo 6.º § 1 da CEDH.

O juiz Koskelo emitiu uma opinião dissidente. Para ele a violação do artigo 6.º § 1 teve realmente lugar, por as características específicas do caso não terem sido corretamente ponderadas.

Concorda com a maioria no que respeita à importância da proteção das vítimas de crimes sexuais, mas foi sensível à veemência com que o queixoso pediu a publicidade da audiência. Por um lado, as entrevistas da vítima à imprensa agravaram segundo ele a posição do queixoso. Por outro, a publicidade na leitura da sentença não compensaria, segundo o juiz Koskelo a natureza secreta da audiência. Neste sentido, a decisão não teria sido proporcional nem necessária.

Ainda assim, há que notar que o queixoso veio a ser condenado pela violação. E, salva a relevância eventual de um sempre possível erro judiciário, esta condenação é, em si, suficientemente grave para estabelecer com alguma segurança a necessidade e a proporcionalidade da realização da audiência à porta fechada (a gravidade do crime de violação, tendo Mraovic acabado por ser condenado explica por si só, e justifica, a necessidade da realização da audiência à porta fechada para a proteção da vida privada e familiar da vítima, naquilo que de mais intimo tem, uma vez que a denúncia desta não foi leviana).


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos