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TEDH, 1ª Secção, SA Capital Oy c. Finlândia, Acórdão de 14 de fevereiro de 2019

20 fev 2019

CEDH, Artigo 6º§1 e 3d). Direito a um processo equitativo, em particular a contrainterrogar as testemunhas. Não violação. Alegação de inversão do ónus da prova em processo penal (art.º 6.º § 2). Não verificação desta inversão, inadmissível.  

Sa Capital Oy, uma sociedade anónima, queixou-se contra a Finlândia, ao TEDH, em 25 de janeiro de 2010, da violação do seu direito a um processo equitativo (art.º 6.º §§ 1 e 3d), com fundamento em que foi condenada a pagar multas, num quadro de um processo penal de concorrência, na base de declarações para memória futura (hearsay evidence), sem ter podido contra interrogar as testemunhas, que prestaram declarações num sentido incriminatório. Segundo ela, este modo de conduzir o processo teria conduzido a uma inversão do ónus da prova (geralmente a cargo da promoção pública penal), o que teria ainda violado o seu direito à presunção de inocência (artigo 6.º § 2).

 O processo resultava de práticas concertadas que tinham conduzido a restrições à concorrência entre várias empresas que foram acusadas de operarem em cartel, a nível nacional, no domínio do setor do asfalto.

No plano nacional, a Autoridade da Concorrência (AdC) e os tribunais chegaram à conclusão da existência de fortes provas no sentido da acusação. Em 2004 a AdC instaurara no tribunal administrativo um processo penal contra a Cia requerente. O Tribunal da concorrência deu a matéria como provada e aplicou uma multa de 75 000€. O STA, em recurso da AdC, agravou a pena para 500 000€, tendo em conta o papel liderante da empresa nestas práticas.

Para o STA, a prova para além de toda a dúvida razoável não seria aplicável a estes casos, em oposição ao direito penal em geral, por a Finlândia ter incorporado o direito europeu da concorrência. Assim, se a Comissão da UE concluísse no sentido da infração, ao tribunal nacional não caberia contrariar esta prova, a oposição a esta prova estando então a cargo da empresa interessada. Na realidade, a decisão contestada adveio da AdC, e uma vez que esta estabeleceu a infração, não caberia ao tribunal nacional, por aplicação dos critérios da jurisprudência do TJUE, que concede à prova feita pela AdC o valor probatório da prova feita pela Comissão da UE, afastar esta prova. Este afastamento, se for necessário, estará a cargo da empresa interessada (no fundo, a AdC operaria um pouco como o MP em matéria penal, deduzindo a acusação e provando o crime contra o arguido).

Deste conjunto processual resultaram vários processos contra as empresas do cartel, que as obrigaram a desembolsar vários milhões de Euros. Esgotados os recursos internos, a empresa queixou-se ao TEDH.

Alegou a violação do artigo 6.º §§ 1 e 3 d), violação do direito a um processo equitativo na medida em que não pôde contra interrogar certas testemunhas. Este segmento da queixa foi admitido pelo TEDH, o qual, quanto ao fundo, definiu a matéria como penal, sendo necessário, em processo penal, assegurar a equidade do processo. A competência para julgar estes casos pode caber a tribunais administrativos, no caso, um tribunal da concorrência de que se recorre para o STA. A avaliação da equidade afere-se pela possibilidade de o arguido contrariar a prova feita contra ele. É então necessário avaliar as razões do modo de examinar esta prova.

Sucede que a prova foi globalmente coligida pela AdC. Feita a prova em 1ª instância, o agravamento da pena no STA ficou a dever-se a questões de direito, que esta instância ponderou diversamente do tribunal da concorrência. Em todas as etapas do processo, a Requerente pôde examinar a prova e contestar. Logo, para o TEDH, o modo como a prova foi examinada (matéria complexa de concorrência) foi justificado.

Existiu ainda um problema de prova indireta, que foi aquele sobre o qual a Requerente se louvou para alegar a violação do artigo 6.º §§ 1 e 3 d) e 6.º§2 CEDH. O TEDH aceitou como válida a alegada inversão do ónus da prova a que procedeu o STA. O problema estava em que a AdC ouviu os ex-diretores e outros quadros qualificados da empresa que a denunciaram e permitiram à AdC sustentar em parte a sua posição. É aqui que a Requerente invoca a violação do artigo 6.º§§ 1 e 3d) porque alega não ter tido a possibilidade de contrainterrogar estas testemunhas. O TEDH verificou que, ainda assim, esta prova, pelos antigos quadros superiores da empresa, apenas corroborou uma abundante e contra examinada prova que a AdC carreou para o processo – logo, a prova indireta não foi decisiva para o resultado do processo, a pena em que incorreu SA Capital Oy.

O TEDH ocupou-se, a seguir, de avaliar a equidade geral do processo. Para ele, o STA ponderou toda a prova e explicou as relações entre o direito nacional e o direito comunitário. O conjunto principal da prova foi contestado pela empresa, sabendo que as alegações de pessoal qualificado em declarações feitas perante a AdC para memória futura, eram apenas marginais no conjunto da prova. Assim sendo, para o TEDH, tanto no processo oral, como reduzido a escrito, a empresa pôde contestar a prova feita. Não se registou, assim, para o TEDH, a violação do artigo 6.º§§ 1 e 3 d).

Debruçando-se sobre a mais concreta questão da violação alegada do direito à presunção de inocência da empresa, por meio da inversão alegada do ónus da prova (a violação alegada do art.º 6.º § 2, presunção de inocência), o TEDH registou que, segundo a queixosa, o ónus da prova teria estado a seu cargo, o que teria contrariado a repartição do ónus da prova europeu, segundo prova prima facie vs. prova para além de toda a dúvida razoável. Para a empresa, o Estado não teria feito a prova além de toda a dúvida razoável, tendo deixado este encargo à empresa, procedendo assim à inversão do ónus da prova, tal como ele é distribuído. O TEDH examinou esta questão apenas no plano da admissibilidade deste segmento da queixa.

Para o TEDH, compete às jurisdições nacionais aplicar o ónus da prova, segundo as regras próprias do seu direito. A equidade do processo implica a prova. Em matéria penal, o ónus da prova compete à acusação. O caso contrário seria a violação da presunção de inocência. Contudo, o silêncio não pode beneficiar o arguido, apesar do seu direito ao silêncio, sempre que a sua intervenção seja necessária para entender o que se passou.

Sucede que a AdC carreou exaustiva prova e que o STA explicou as regras da prova no processo. E que, enquanto a AdC provou abundantemente a existência de práticas restritivas da concorrência, as empresas não conseguiram demonstrar a inexistência destas.

Nestas circunstâncias, e uma vez que a AdC desenvolveu um forte esforço probatório, não se pode concluir que o STA tenha invertido o ónus da prova que se manteve a cargo da AdC enquanto parte acusatória, e que esta cumpriu. Por esta razão, este segmento de queixa foi declarado inadmissível.

Por unanimidade o TEDH decidiu que não se verificou a violação do artigo 6.º § 1 (em articulação com o § 3d) e declarou tudo o mais inadmissível.

Os juízes Wojtyczek e Koskelo emitiram os seus votos concordantes separados.

O juiz Wojtyczek concorda com o resultado a que o Acórdão chegou, mas tem reservas sobre o seu raciocínio. A questão anda em torno do princípio da imediação que rege a matéria do debate probatório e da prova testemunhal em processo penal. A observação do seu respeito nunca competiria ao TEDH, mas sempre aos tribunais nacionais, contrariamente ao que o Acórdão parece sugerir. Logo o TEDH nunca poderia controlar, à luz da CEDH, a aplicação deste princípio.

No seu voto concordante, o juiz Koskelo emite uma posição, a meu ver, mais fina. Sempre em torno das declarações para memória futura, no caso dos autos, dos quadros superiores que denunciaram as práticas da empresa à AdC. A situação é diversa da matéria geral em que pessoas são ouvidas no processo, para mais tarde poder ser utilizado em audiência o seu depoimento. Aqui, a AdC socorreu-se de depoimentos testemunhais, embora em pequena quantidade, num quadro extrajudicial, na medida em que a AdC é parte no processo. E põe-se o problema de saber, então, se estas pessoas, que depuseram da forma descrita (nos escritórios da AdC, por exemplo, sem presença de um magistrado para avaliar ou controlar os seus depoimentos), têm um estatuto judicial de testemunhas no processo, ou se permanecem terceiros em relação a este.

A questão é delicada porque houve um afastamento das regras da prova testemunhal, de certas testemunhas da acusação. Teria sido desejável, sem que o TEDH modificasse o resultado do seu Acórdão, que se pronunciasse mais detalhadamente, e abrisse a porta à elaboração jurisprudencial sobre o regime destes depoimentos, prestados desta forma, à luz das normas da CEDH. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos