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TEDH, 2 de março de 2017, Talpis c. Itália

6 mar 2017

Casal de nacionalidade moldava com dois filhos, que emigrou para a Itália na perspetiva de uma vida melhor. Antecedentes de violência doméstica. Alcoolismo.  Episódios crescentes de violência, em Itália, que culminaram com a morte do filho e a agressão da mulher, provocadas pelo pai e marido. Obrigações positivas a cargo do Estado. CEDH, artigos 2.º (direito à vida), violação; artigo 3.º (proibição dos maus tratos), violação; combinados com o artigo 14.º (proibição da discriminação), violação por discriminação contra as mulheres.

Num quadro de vida pessoal com história de violência conjugal e familiar, um casal emigrou da Moldova para a Itália, na perspetiva de uma vida melhor. A partir de 2011, o ano em que emigraram para a Itália onde se instalaram, se veio a verificar um quadro crescente de violência doméstica, num contexto de forte alcoolismo do marido, que se destacou por três episódios. Um primeiro, em 2012, em que o marido agrediu violentamente a mulher e esta foi aconselhada a ir às urgências pela polícia, depois de se ter queixado. Num primeiro momento não foi informada da existência de abrigos para mulheres vítimas de violência; e teve de regressar a casa, suportando o marido e fugindo, para viver na cave do apartamento. Numa segunda agressão, o marido, AT, desafiou-a a ter relações sexuais com amigos e nesse segundo momento, a mulher, Talpis acabou por sair de casa para viver por três meses numa casa abrigo pertencente a uma ONG. Esta, face às suas necessidades de trabalho e por os seus recursos não serem ilimitados, deixou de abrigar Talpis ao fim de três meses. Talpis dormiu na rua, viveu em casa de uma amiga, encontrou emprego como auxiliar de enfermagem para pessoas idosas e conseguiu alugar um apartamento.

Ouvida pela polícia sete meses após a sua primeira queixa, em 2013, Talpis atenuou as queixas relativas ao marido. A tal ponto que o Ministério Público arquivou a parte da queixa relativa à violência familiar e apenas manteve a parte relativa às ofensas corporais agravadas.

O julgamento relativo a estas ofensas veio a concluir-se já em 2015, e AT foi condenado no pagamento de uma multa de  2000 €.

Entretanto, Talpis voltou a viver com o marido, na casa de morada da família.

Mas AT foi informado da acusação e da pronúncia neste julgamento em 18 de novembro de 2013. E desenvolveu um quadro, que se pode dizer louco, de violência. Esta culminou em 25 de novembro de 2013. E desenrolou-se em três fases. Num primeiro momento dessa noite, Talpis chamou a polícia que veio ao domicílio conjugal. As autoridades verificaram que a porta do quarto estava partida e que se amontoavam as garrafas de álcool no chão do mesmo quarto. O filho afirmou que o pai não exercia violência contra ele. AT foi levado, ébrio, para o hospital. Na segunda fase, saiu na mesma noite pelo próprio pé do hospital, e seguiu para uma sala de jogo. De regresso a casa foi identificado pela polícia que notou o seu estado de embriaguez, ao ponto de andar com dificuldade e de quase não se conseguir manter de pé.

Na terceira fase, AT regressou a casa, ébrio, pelas 5 da manhã. Agrediu a mulher com uma faca, mas o filho interpôs-se, recebendo três facadas, de que veio a falecer. A mulher ficou ferida no peito.

AT acabou por ser detido, correu seus termos um novo processo penal que culminou com a sua condenação em prisão perpétua, confirmada em recurso, e ainda numa condenação em indemnização de 400 000 € pela morte do filho, a pagar à mulher.

Talpis queixou-se da violação por parte da Itália dos artigos 2.º (direito à vida), 3.º (proibição dos maus tratos), 14.º (discriminação por ser mulher) e 13.º (não efetividade das vias de recurso internas).

O TEDH considerou admissível a queixa na medida em que apesar das objeções do Governo italiano, Talpis queixou-se dentro de um prazo de seis meses a contar da morte do filho. E examinou a queixa, requalificando-a. Nomeadamente resolveu não examinar a queixa ao abrigo do art.º 8.º da CEDH (direito à vida privada e familiar), entendendo que esta dimensão da queixa era consumida pelo exame à luz dos artigos 2.º e 3.º da CEDH. No fim, veio também a afastar a queixa na parte relativa ao artigo 13.º, na medida em que já havia julgado a justiça italiana ineficiente ao condená-la pelas violações dos artigos 2.º , 3.º e 14.º.

E nesta sede, o TEDH considerou que, mesmo no quadro de violência não imputável ao Estado que acontece às mãos dos particulares, cabem ao Estado obrigações positivas, como que deveres de proteção a partir das normas dos artigos materiais da CEDH, que o Estado deve respeitar, com a condição de conhecer a situação que envolve os particulares. O conhecimento de uma situação particular concreta é o patamar da exigibilidade do cumprimento das obrigações positivas a cargo do Estado.

Ora as autoridades conheciam a situação desde 2012, momento em que conduziram Talpis para as urgências e abriram o processo relativo às ofensas corporais de gravidade que veio a culminar com o tardio, no entender do TEDH, julgamento de 2015 em que AT foi condenado em 2000 € de multa. Acompanharam a situação na medida em que tiveram a oportunidade de ouvir Talpis no quadro do primeiro interrogatório policial que só realizaram sete meses depois da queixa, o que para o TEDH representa uma gravíssima ineficiência por, manifestamente, esta família estar em perigo. O TEDH aproveitou aliás este passo do seu julgamento para alertar os Estados para a natureza urgente dos processos por violência doméstica ou de género e para o facto de não poderem ser sujeitos a demora, devendo ser tratados com prioridade. Tiveram conhecimento das dificuldades de alojamento de Talpis e a queixa pela segunda ocorrência também foi feita às autoridades competentes. Por fim, tiveram conhecimento do quadro trágico da noite de 25 de novembro de 2013, em que a mulher as chamou a casa, um momento em que levaram AT ao hospital; e em que, num segundo momento, verificaram que AT regressava totalmente ébrio a casa, na mesma noite em que fora conduzido ao hospital por embriaguez. Por todas estas razões, as autoridades conheciam abundantemente a situação. As medidas de proteção teriam passado por um acompanhamento da situação, gradual, à medida em que ela se ia agravando. E por conseguirem impedir o desfecho trágico daquela noite. Ora, a incapacidade em ouvir, antes de decorridos sete meses desde a primeira queixa, e o arquivamento parcial do processo (no tocante à violência familiar), bem como uma atitude de negligência na própria noite de 25 de novembro de 2013, levaram o TEDH a concluir pelo não cumprimento da parte das autoridades italianas do dever de proteção a seu cargo, do seu não cumprimento das obrigações positivas que lhes cabiam à luz dos artigos 2.º e 3.º da CEDH. Por isso verificou-se, para o TEDH a violação material do artigo 2.º e do art.º 3.º da CEDH na pessoa de Talpis.

Quanto à discriminação contra as mulheres, esta foi uma decisão com que o TEDH completou o seu exame. Entendeu que o quadro factual correspondeu aos registos em relatórios relativos à violência doméstica e de género na Itália. Logo, para o TEDH, Talpis não foi melhor atendida por ser mulher, verificando-se na sua pessoa uma discriminação proibida pelo artigo 14.º da CEDH lido em conjugação com os artigos 2.º e 3.º da CEDH.

Num voto dissidente parcial, o juiz Spano entende dever ser de mitigar o Acórdão do TEDH, no que é acompanhado num voto concordante parcial do juiz Eicke. Para estes juízes, quanto ao artigo 3.º, há violação. Mas já não necessariamente quanto ao art.º 2.º. Porque em seu entender o perigo era crescente e grave, mas, porque foi crescendo, nunca teria chegado a ser iminente. Ou seja teria sido muito difícil para as autoridades preverem o momento exato em que o risco se viria a concretizar, por ele se ter vindo a agravar, num contexto em que nunca teria estado verdadeiramente na iminência de acontecer. Até que aconteceu, e por isso nos sentimos confortados pelo Acórdão que considerou violado o artigo 2.º da CEDH.

Quanto à discriminação contra Talpis como espelho de uma discriminação contra as mulheres, estes magistrados entendem que os próprios direitos humanos têm limites e não são capazes de atender nem de resolver todas as situações. Mesmo que se aceitasse, para estes juízes, a negligência da parte do Estado, não haveria aqui discriminação, nem os números italianos que permitiram ao TEDH alicerçar esta conclusão no caso concreto, seriam tão elevados quanto isso. Tudo é suscetível de debate. Mas, como o diz o TEDH no início da parte substantiva do seu julgamento, é necessário atender ao facto de que Talpis foi colocada, pela própria violência que sofreu e a ausência imediata de respostas, como a da ausência de uma alternativa de alojamento, no quadro inicial da violência, ao tempo da primeira queixa, numa situação de vulnerabilidade. Ou seja, pelo quadro de que padecia, Talpis era uma pessoa vulnerável. E esta situação de vulnerabilidade não terá sido atendida pelas autoridades. Por isso houve discriminação.

 

por: Paulo Marrecas Ferreira