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TEDH, 20 de dezembro de 2016. Shiosvili e outros c. Rússia

27 dez 2016

Mãe grávida de nacionalidade georgiana com 5 filhos. Práticas de assédio contra os georgianos pelas autoridades russas. Expulsão coletiva de estrangeiros. Interrupção da viagem de partida feita a expensas da família. Manutenção num centro de imigração em condições desumanas de frio e de tensão emocional. Bébé nado-morto. Proibição de expulsões coletivas de estrangeiros, CEDH P. 4, art.º 2.º, violação. Restrições à livre circulação de pessoas, CEDH P. 4, art.º 4.º, violação. Tratamentos cruéis desumanos e degradantes, violação do art.º 3.º Ausência de recurso efetivo, art.º 13.º combinado com o artigo 3.º, violação. 

Num contexto de práticas de assédio conduzidas contra a população georgiana imigrada na Rússia, documentada no acórdão do TEDH, Geórgia c. Rússia n.º 1, um casal com cinco filhos, de nacionalidade georgiana, dos quais a mulher e quatro filhos estavam em condição documental irregular, veio a ser perseguido pelas autoridades russas, deslocando-se de cidade em cidade até a que a mãe venha ser expulsa. Um dos filhos do casal nasceu em território russo mas não foi registado por receio de expulsão. A família resolveu separar-se, após a mãe ter sido alvo de uma decisão de expulsão, cumprindo esta decisão e deslocando-se até ao Azerbaijão com quatro dos seus filhos.  Nesse momento, a mulher estava grávida de oito meses.  Os quatro filhos não haviam sido alvo de expulsão mas planavam dúvidas sobre a legalidade da sua permanência e a mãe resolveu não se separar deles. O comboio em que seguiam viagem foi mandado parar à chegada ao Azerbaijão, e a pequena família foi conduzida ao centro de detenção para migrantes de Derbent, em condições de grande frio, devendo deslocar-se a pé. Aí tiveram de aguardar alguns dias até poderem seguir viagem, uma espera que teve cobertura mediática de tal modo era sentida pela opinião pública como desproporcional. Sempre que a família pretendia resolver algum problema, como de transporte ou alojamento, devia custeá-lo ela própria, sofrendo sempre um quadro processual de assédio da parte das autoridades.

O bébé veio a nascer sem vida tendo sido documentada, em relatório médico, como causa da morte, a muito grande tensão emocional sofrida pela mãe; uma criança desenvolveu um quadro de psicose em relação às práticas dos agentes da imigração russos e outra contraiu uma pneumonia.

Quando conseguiu chegar à Geórgia, a Sra. Shioshvili queixou-se à Procuradoria-geral da Federação Russa, obtendo após insistência a resposta de que o seu caso iria ser examinado.  Seguiu-se depois um silêncio apenas colmatado pela resposta do Agente do Governo russo às observações da Sra. Shiosvili perante o TEDH.

A queixa de Shiosvili veio a ser admitida pelo TEDH que determinou que o processo fosse suspenso até à decisão do caso Geórgia c. Rússia (1), um caso de contornos semelhantes apresentado pela Geórgia contra a Rússia. Uma exceção do Sr. Agente do Governo russo foi a de que havia dupla condenação, ao que o TEDH na sua decisão da admissibilidade respondeu, observando que não havia identidade de sujeitos, uma vez que a queixosa não era nenhuma das pessoas abrangidas pela queixa da Geórgia contra a Rússia.

Quanto ao mais, num contexto que se pode apelidar de crueldade administrativa, depreende-se do acórdão que houve uma decisão de expulsão contra a mãe, que esta cumpriu, levando consigo quatro dos seus filhos, uma vez que os sentia colocados numa situação de ilegalidade à luz das práticas das autoridades de migração russas. A decisão de expulsão da mãe traduziu-se numa expulsão coletiva de estrangeiros, proibida à luz do artigo 4.º do Protocolo n.º 4 à TEDH, pelo que o TEDH entendeu que a mãe das crianças não podia ser alvo de censura por ter decidido levar os quatro filhos com ela.

Em contrapartida, e isto revela de certo modo a perversidade das práticas administrativas de que a pequena família foi alvo, a proibição de saída e a sua detenção em Derbent quando em cumprimento de uma ordem de expulsão, representaria pelo menos uma situação de inalegabilidade, um venire contra factum proprium, da parte das autoridades russas: com efeito, tendo decidido a expulsão a ele não se deveriam opor. O TEDH, embora frequentemente seguidor de doutrinas oriundas do espaço da common law, como a do estoppel, não optou por esta via. Bastou-se em observar singela e verdadeiramente, que ao proibir a saída do território russo quando as autoridades haviam decretado a expulsão, a Rússia estava em violação do direito das pessoas a circularem livremente assente no art.º 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH relativo à liberdade de circulação de pessoas.

A situação de detenção “ao ar livre” em que a família foi obrigada a apresentar-se no centro de detenção de Derbent sem que lhe fosse dado abrigo, o que obrigou a mãe a suportar até ao limite dos seus meios um arrendamento enquanto se prolongava o processo perante aquele centro, foi considerada em violação do artigo 3.º da CEDH que proíbe a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Enfim, a impossibilidade de reagir, pedindo por meio da ordem jurídica socorro contra esta situação processual levada ao extremo, consubstanciou a violação do art.º 13.º combinado com o art.º 3.º da CEDH, falta de recurso ou meio judicial adequado para pôr termo a estes maus tratos, ocorridos na situação de retenção administrativa em Derbent.

Por fim, embora resulte claro do texto do acórdão que se verificou nos anos em que os factos ocorreram (2006), uma verdadeira situação de assédio administrativo aos cidadãos georgianos em território sob jurisdição russa, o TEDH não se pronunciou sobre a possível violação do artigo 14.º da CEDH em conjunção com as várias violações que o acórdão documenta, violação do direito à não discriminação.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira