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TEDH, 22 de novembro de 2016. Kaos GL c. Turquia

22 nov 2016

Número de revista da comunidade gay e lésbica dedicado à relação da pornografia com a arte e os seus diferentes públicos. Apreensão deste número pelas autoridades. Invocação da obscenidade da publicação e da moral pública. Critérios que permaneceram na vacuidade. CEDH, art.º 10.º, Liberdade de expressão, violação.

Kaos Gl é uma associação da comunidade lésbica e gay, na Turquia, que publica regularmente uma revista, com uma tiragem dedicada aos membros da comunidade, relativa aos assuntos que a ocupam. O n.º 28 da Revista foi dedicado à relação da pornografia com a arte e os seus diferentes públicos.  Junto a um dos artigos escritos de teor considerado não pornográfico, foi publicada uma pintura de dois homens na prática de um acto sexual.  Não constava a indicação, que o autor desejaria que constasse, de que esta imagem não deveria ser vista por um público de menores de dezoito anos.

O Ministério Público ordenou a apreensão de todos os exemplares do n.º 28 da revista Kaos e o diretor da Revista, também um elemento importante na Associação, foi alvo de um processo penal. Central na promoção penal foi o argumento de que a publicação em causa atingia a moral pública.

O diretor da Revista acabou por ser ilibado e foram-lhe entregues os exemplares da publicação controvertida, no termo de um processo judicial que levou algum tempo. A Associação Kaos queixou-se ao TEDH, alegando que a passagem do tempo havia tornado a publicação inútil em relação ao seu objetivo, de aumentar a consciência da comunidade de interessados da importância da relação entre a arte e a pornografia e os diferentes públicos-alvo (a comunidade gay e lésbica, as mulheres, os homens). Salientou a violação da sua liberdade de expressão, a não admissibilidade do emprego de um critério vago como o da “obscenidade da publicação” e a também grande vacuidade da noção demasiado genérica de “contrariedade à moral pública”.

O TEDH examinou os diferentes elementos da queixa e do processo, e aceitou como válida a alegação da passagem do tempo. Embora no final do processo interno o diretor da revista tenha sido absolvido e os exemplares apreendidos da publicação lhe tenham sido devolvidos, a passagem de um tempo relativamente longo entre o momento previsto para a publicação e a devolução dos exemplares apreendidos, tinha produzido um efeito sobre o conjunto de estudos inseridos na revista, tornando-os inúteis porque muitos deles já estavam desatualizados. Este elemento foi,  para o TEDH, bastante para indiciar uma violação do direito à liberdade de expressão, havendo que verificar se a medida estava prevista na lei e se era necessária numa sociedade democrática.  Ora, sucede que o artigo 28.º da Constituição turca admite a apreensão de publicações sempre que se mostre um perigo superior à vantagem trazida pela publicação, de ofensa à moral pública. Face a este argumento acabava por ser irrelevante a questão de saber se foi ou não relevante o critério vago da “obscenidade da publicação”: ou seja, mesmo que os conteúdos da publicação fossem mais marcadamente artísticos do que propriamente obscenos, ainda poderia haver legitimação da medida face às necessidades da moral pública.

Atenuava, contudo a dimensão do público em geral, o facto de a publicação se dirigir à comunidade gay e lésbica da Turquia.  Tratando-se de um público específico, a ofensa à moral pública deveria ser particularmente importante para extravasar dos interesses desta comunidade e atingir o conjunto da sociedade. E, consultando o processo penal, os juízes do TEDH verificaram que, em nenhum momento, os juízes nacionais se preocuparam em dar concretização à ofensa da moral pública.    Em nenhum momento os juízes nacionais abandonaram a noção genérica de moral pública, não dizendo nunca em relação a que elemento da publicação ou em relação a que elemento da sociedade, para além da comunidade gay e lésbica turca, a moral pública iria ser concretamente ser atingida. Pelo que não houve concretização da disposição do artigo 28.º da Constituição turca, tendo o critério da contrariedade à moral pública permanecido no domínio das noções gerais e abstratas, sem qualquer elemento de ligação com a vida real, da sociedade turca. E por isso entenderam os juízes de Estrasburgo que houve violação do direito à liberdade de expressão da Associação Kaos, por parte da Turquia.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira