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TEDH, 23 de fevereiro de 2016, Çam c. Turquia.

29 fev 2016

Jovem invisual que gostava de frequentar o curso do Conservatório de música de Istambul. Aptidão revelada em concurso de admissão com aproveitamento. Exigência de documento médico. Não aceitação da candidatura. Princípio da acomodação razoável. CEDH, Protocolo n.º 1, artigo 2.º, CEDH, artigo 14.º, violação.

Çam, uma jovem invisual que tocava uma guitarra turca conhecida por baglama, concorreu ao Conservatório de música de Istambul para aí seguir a sua formação musical.

Fez o concurso de admissão e foi julgada apta pelo júri de seleção, tendo sido publicada lista de candidatos admitidos e excluídos em que o seu nome constava entre os candidatos admitidos.

Foram exigidos determinados exames médicos que concluíram que apesar da cegueira, Çam estava em condições de praticar o instrumento e de seguir uma formação musical. Na redação dos resultados destes exames, a comissão médica de avaliação concluía que seria necessário submeter Çam a uma junta médica que a avaliasse mais em profundidade.

O diretor do Conservatório escreveu uma carta aos pais em que dizia não ser possível Çam frequentar os cursos por não ter entregue um relatório médico completo e detalhado. No mesmo dia, o conservatório enviou um ofício ao hospital, que tinha procedido à avaliação de Çam, informando que qualquer curso do conservatório de música exigia a aptidão visual e que, nesta conformidade, não existia a possibilidade de integrar uma pessoa cega no rol dos alunos.

Seguiu uma longa batalha judicial nos tribunais administrativos turcos, uma vez que o Conservatório estava integrado na estrutura do ensino público. A Constituição turca não só proíbe a discriminação com fundamento na deficiência, como existe uma lei específica proibindo esta discriminação. O advogado da família citou, em petição e em sucessivas alegações, os nomes de célebres músicos turcos cegos e de alunos sofrendo de cegueira que haviam frequentado com sucesso o Conservatório de música. A família chegou a pedir a suspensão da eficácia do ato administrativo de recusa da inscrição com fundamento em ilegalidade e no prejuízo irreparável que Çam iria sofrer com a não frequência do curso escolhido para cuja prática fora admitida nos exames de seleção.

Neste contexto, o relatório médico foi modificado; onde constava que Çam podia receber instrução “nos domínios em que a visão não fosse necessária”, passou a constar que “não estava em condições de receber qualquer instrução”.

A família foi seguindo de derrota judicial em derrota judicial, mas destacaram-se tomadas individualizadas de posição, neste percurso, que davam alguma possibilidade a Çam de obter o reconhecimento do seu direito. Assim, em voto de vencido, o presidente do Tribunal Administrativo afirmou que era possível oferecer um ensino de música adaptado, que existiam músicos conhecidos que eram cegos, e que negar o direito destas pessoas à instrução não era compatível com o Estado social de direito. O Conselho de Estado que veio a examinar o recurso, também expendeu argumentação nesse sentido, afirmando embora que a decisão do tribunal administrativo não enfermava de ilegalidade, não desconhecia as regras de processo e entrava dentro das competências deste tribunal.

No final foi apresentada uma queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Este examinou com cuidado o ordenamento jurídico turco e considerou-o suficientemente apetrechado para responder ao problema da deficiência e da sua necessária superação. Verificou ainda que o problema do acesso ao ensino estava no conservatório que exigia um certificado médico atestando a aptidão do aluno e que se dizia não estar em condições de acolher uma pessoa deficiência, fosse esta qual fosse.

O problema para o TEDH foi assim o de verificar se o Estado, aceitando oferecer um ensino musical especializado, podia recusar o acesso a este ensino a um grupo de pessoas. E recordou que embora na sua jurisprudência, o TEDH não acolha o princípio do tratamento mais favorável em relação a um grupo, ainda que vulnerável, a CEDH não admite, de todo, uma qualquer discriminação que venha a resultar num tratamento menos favorável de um grupo social.

Chegou à conclusão que a cegueira foi o motivo determinante da não admissão de Çam ao ensino da música. Mas verificou que no exame, Çam foi inicialmente considerada apta ainda que com a condição de uma avaliação mais profunda, no plano do atestado médico e que foi admitida no teste de entrada para o conservatório.

No plano do direito, o TEDH verificou ainda que a Turquia ratificou a maior parte dos instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos, dentro dos quais os vários instrumentos relativos à não discriminação e ao tratamento igual das pessoas com deficiência, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência. E observou que o direito internacional deve ser interpretado de modo uniforme. Ou seja as regras da CEDH relativas à não discriminação devem interpretadas nomeadamente de acordo com os instrumentos em vigor no plano das Nações Unidas. E que para qualquer Estado que ratifique estes instrumentos, a vinculação deste Estado ao direito assim criado deve obedecer ao patamar de proteção imposto por estes instrumentos, sem o que estes perderiam o seu efeito útil.

Uma acomodação razoável podia então ser exigida às autoridades do ensino público turco, tanto mais que não se vislumbrava materialmente uma dificuldade insuperável no acesso ao ensino, da parte de Çam. Era exigível do Conservatório uma atitude de disponibilidade para proceder às adaptações necessárias, de resto ligeiras face ao problema da queixa, para que Çam pudesse receber a instrução musical a que aspirava.

O Tribunal entendeu assim que Çam não foi inscrita no curso do Conservatório, apenas pela sua cegueira e que as autoridades nacionais não encararam em nenhum momento a acomodação razoável dos direitos e das necessidades de Çam, adaptando a sua prestação de ensino à condição desta. Esta recusa careceu de uma justificação objetiva e razoável. Para o TEDH Çam foi, assim discriminada no seu acesso ao ensino em razão da sua deficiência, o que constitui da parte da Turquia uma violação do artigo 14.º da CEDH (proibição da discriminação) combinado com o artigo 2.º do Protocolo n.º 1 à CEDH (direito ao ensino).

Hoje Çam frequenta com sucesso o curso de música da faculdade de belas artes da Universidade de Marmara.

Pela importância do tema seja nos permitido recordar que o princípio da acomodação razoável é ainda de utilização recente no continente europeu, apesar de já possuir algumas décadas de existência jurisprudencialmente consolidada nos E.U.A. Além da sua manifesta utilidade no campo da diferença e da vulnerabilidade tem também uma forte suscetibilidade de utilização no direito do trabalho, como o demonstra o Acórdão do Tribunal Constitucional português proferido no processo n.º 544/2014, de 15 de Julho, nos termos do qual foi possível adaptar a prestação de trabalho às práticas religiosas de uma requerente.

Trabalhos recentes do Conselho da Europa dedicados às Sociedades culturalmente diversas têm procurado consagrar este princípio com caráter de generalidade no espaço europeu.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira