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TEDH, 26 de abril de 2016. Murray c. Países Baixos

9 maio 2016

Homicídio qualificado. Especial perigosidade do agente. Problemas do foro psiquiátrico com existência de responsabilidade. Fracasso em proporcionar a reabilitação do preso. Pena de excecional duração. Doença grave. Falecimento do detido por doença prolongada. CEDH, artigo 3.º, violação. O problema da não atribuição pelo TEDH de indemnização pelo dano moral.

Murray, um homem com uma personalidade narcísica marcada e deficiente socialidade, matou uma criança de seis anos, sobrinha da namorada que acabara de o deixar, como ato de retaliação pelo fim do namoro.

Perante este facto, que ocorreu nas Antilhas holandesas, os tribunais concluíram, após as competentes perícias psiquiátricas, pela existência de graves problemas do foro psiquiátrico, onerando a personalidade de Murray. Apesar de uma relativa diminuição de imputabilidade, este mantinha, contudo, a sua capacidade para ser responsável pelo que, face à inexistência naqueles territórios de estruturas psiquiátricas adequadas, decidiram manter Murray na prisão.

A pena de prisão perpétua que foi, assim, aplicada em Outubro de 1979, vigorou até ao ano de 2013, apesar de sucessivos pedidos de perdão da parte de Murray ao Governador, os quais foram sempre negados, por as perícias psiquiátricas denunciarem uma relativa perigosidade deste, a qual era agravada pela falta de alternativas. Ou seja, os territórios onde Murray cumpria a pena, e onde residia e cometera o seu crime, não estavam apetrechados com os competentes serviços psiquiátricos, que teriam as condições de melhorar a patologia do preso e de o ressocializar.

Este estado de coisas foi atestado pelos sucessivos exames ao preso, no quadro do cumprimento de pena, aí se reconhecendo que o recluso era perigoso, por não existirem alternativas de tratamento e, estas não existindo, mantinha-se perigoso, pelo que não podia sair do quadro da execução de pena em regime de prisão.

Murray veio a entrar num quadro depressivo grave, a sua deficiente socialidade agravou-se, embora se tivesse tornado num preso pouco violento e passados trinta anos de execução de pena, contraiu uma doença oncológica, de que viria a falecer.

Entretanto teve ainda tempo, nos seus últimos quatro anos de vida, para apresentar uma queixa ao TEDH, que veio a reconhecer a qualidade de vítima aos seus filhos que prosseguiram a queixa por ele, uma vez falecido.

Nesta sua jurisprudência, que é considerada pelos juízes que a subscreveram como de fundamental importância, o TEDH analisa o quadro do cumprimento da pena em concreto, e considera inaceitável que uma pessoa reclusa em cumprimento de pena não tenha a possibilidade de merecer um esforço de ressocialização promovido pelas autoridades. Assim, não foi aceitável, para o TEDH, que o recluso tenha continuado em prisão por não existirem alternativas, e, por estas não terem existido, ter sido mantido em prisão. Por outro lado, em final de vida e num quadro de doença confirmada terminal, apesar da decisão do alto tribunal regional competente no sentido da sua libertação, Murray não beneficiou de uma colocação em liberdade, que operaria como uma graça, concedida face à sua nova patologia, da qual viria a falecer. Enfim, o receio social que a sua libertação traria, bem como o choque que esta causaria na família da pequena vítima, foram sobreavaliados, o que não facilitou o fim de vida de Murray.

Por estas razões, o TEDH entendeu que os Países Baixos violaram o artigo 3.º da CEDH direito a não ser submetido a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Não esteve sequer em causa a condenação em pena perpétua, não admitida nalguns ordenamentos jurídicos, como o português, mas o facto de esta prisão perpétua, a que Murray foi condenado, não ter admitido a esperança, ainda que abstrata, da sua colocação em liberdade, situação de que este tomou consciência, e certamente agravou severamente o seu quadro depressivo em fim de vida.

Uma nota: conformando-se com jurisprudência anterior exarada em caso semelhante, ainda que o TEDH tenha inovado nesta dimensão concreta do controlo de convencionalidade, este Alto Tribunal não concedeu às vítimas nenhuma indemnização a título de danos morais, entendendo que a sentença reparava suficientemente estes danos.

Ora, os juízes Spielman, Sajó, Karakas e P.Pinto de Albuquerque entenderam, quanto a esta questão sensível, que Murray sofreu efetivamente com esta situação, para além de qualquer dano material que pudesse ter ocorrido. Neste sentido, aquilo que em certos países é designado pelo dinheiro do sofrimento, a reparação pelo dano moral, deveria ter sido atribuído a Murray, este caso diferenciando-se do caso Vinter e Outros c. o Reino-Unido e aproximando-se de Avci e Outros c. Turquia, em que por terem falecido durante o processo – aqui Murray faleceu em cumprimento de pena num quadro de excecional duração da pena – foi reconhecido a estes o dinheiro do sofrimento.

Uma nota que pode trazer alguma luz a este delicado problema das penas de muito longa duração, independentemente da admissibilidade ou não de penas de duração perpétua, está na expressão atribuída a J. P. Costa, antigo juiz francês do TEDH, de que nenhuma pessoa, por hediondo que tenha sido o crime que cometeu pode ser considerada “lixo humano”.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira