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TEDH, 2.ª S., Gülbahar Özer e Yusuf Özer c. Turquia, Acórdão de 29 de maio de 2018

12 jun 2018

CEDH, Artigo 8.º, direito à vida privada – direito a enterrar os corpos de crianças mortas às mãos das autoridades em cemitério da escolha da família.

Manifestações de cidadãos de etnia curda. Repressão pelas autoridades do Estado. Falecimento de três adultos enterrados em Diyarbakir e de duas crianças cujos pais solicitaram o enterro em Siirt. Manifestações no cemitério. Recusa das autoridades em proceder ao enterro em Siirt. Solicitação dos queixosos, de se proceder ao enterro em Batman. Nova recusa não fundamentada das autoridades. Enterro administrativo sem a presença da família em Ehruh. CEDH, artigo 8.º, direito à vida privada e familiar: violação.

No decurso de manifestações em localidade no Sudeste da Turquia (região do Curdistão Turco, cuja capital é Diyarbakir, uma cidade de passagem da rota da seda), alguns manifestantes foram mortos pelas autoridades turcas quando controlavam estas manifestações. Além de três adultos, que viriam a ser enterrados em Diyarbakir, faleceram duas crianças, os filhos do casal de Requerentes.

Os pais quiseram enterra-las na cidade de Siirt, mas, por ter havido manifestações junto ao cemitério, o Governador da Região determinou que fossem enterradas no local indicado no seu registo de nascimento. A caminho de Siirt, a viatura dos queixosos, onde seguiam os corpos das crianças foi mandada parar por soldados, que indicaram que estas deviam ser enterradas nos lugares indicados nos seus registos de nascimento. Os Requerentes protestaram por não terem mais ligações com estas localidades e informaram que estas localidades haviam sido evacuadas pelas autoridades em 2005, pelo que nada justificava o enterro dos corpos das crianças aí. Os soldados apreenderam os corpos e levaram-nos.

Em requerimento dirigido ao Governador no mesmo dia, os queixosos pediram que os corpos fossem enterrados na cidade de Batman. As autoridades, que não responderam a esta solicitação, acabaram por enterrar administrativamente os corpos das crianças no cemitério de Ehruh sem cerimónia religiosa e sem a presença dos pais.

Estes pediram, diante do Tribunal Administrativo de Diyarbakir, a anulação da decisão do Governador de Siirt, a exumação dos corpos antes do seu apodrecimento, para o que pediram o deferimento de uma providência cautelar, e a autorização para proceder ao enterro em cemitério da sua escolha.

O tribunal administrativo de Diyarbakir rejeitou o pedido e indeferiu a providência cautelar. Os vários recursos de apelação e perante o STA turco foram rejeitados. Os Requerentes queixaram-se por violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar, ao TEDH.

Para este Tribunal, o direito a enterrar integra a noção de vida privada e familiar dos queixosos. Houve interferência das autoridades na vida privada e familiar destes. O TEDH aceita que esta interferência estava prevista na lei e que teve o fim legítimo da prevenção da desordem (a manifestação dos cidadãos de etnia curda junto ao cemitério de Siirt).

Numa sociedade democrática, a medida, para ser proporcional, deve corresponder a uma “necessidade social premente” e as razões que a fundamentam devem ser “relevantes e suficientes”.

Apesar das razões de ordem pública, o TEDH entendeu que a apreensão dos corpos das crianças e o seu enterro administrativo num cemitério pelas autoridades, impedindo assim os queixosos de celebrarem uma cerimónia própria em cemitério da sua escolha (opção possível na Turquia), constituiu uma interferência particularmente grave no seu direito à vida privada e familiar, garantido pelo artigo 8.º.

Ao pedirem a celebração do enterro em Batman, os queixosos ofereceram às autoridades uma alternativa válida (e sem desordem) ao enterro em Siirt. A recusa em proceder-se ao enterro neste outro lugar não foi fundamentada pelas autoridades. Além do mais, as autoridades nem sequer asseguraram a presença dos familiares das crianças (os queixosos) em Ehruh. Houve assim a violação do artigo 8.º da CEDH.

Na sua opinião concordante, o juiz Lemmens discorda da exigência do TEDH de que o Estado deva escolher a medida menos gravosa para os direitos humanos. A razão é que esta exigência afastaria a margem de apreciação dos Estados e contrariaria a natureza subsidiária do controlo operado pelo TEDH. Além do mais, o TEDH não deveria sugerir aos Estados o que estes teriam de fazer. São sempre merecedoras de respeito estas posições dos Magistrados do TEDH. Talvez, ainda assim, não fosse necessário insistir tanto na subsidiariedade do controlo do TEDH e na ampla margem de apreciação dos Estados numa época marcada em todos os horizontes por dificuldades colocadas aos direitos humanos, e por um relativo recuo da intervenção, nestas matérias, das instâncias internacionais. O próprio juiz Lemmens diz que, neste caso, a intervenção das autoridades foi de tal maneira brutal que a violação do artigo 8.º da CEDH nem sequer se prestava a discussão, e por isso, o acórdão foi adotado por unanimidade pela Seção.

Autor: Paulo Marrecas Ferreira  Clique aqui para introduzir texto.

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos  Clique aqui para introduzir texto.