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TEDH, 2ª Secção, Alparslan Altan c. Turquia, Acórdão de 16 de abril de 2019

29 abr 2019

CEDH, Artigo 5.º§ 1. Detenção inicial em esquadra de polícia. Não violação. Prisão preventiva decidida por recurso a interpretação muito extensiva da noção de flagrante delito, art.º 5.º § 1, violação. Suspeita ainda não razoável no momento da decisão da prisão preventiva. CEDH, art.º 5.º §§ 1 c e 3, violação.

Na noite de 15 para 16 de julho de 2016, registou-se a tentativa de golpe de Estado militar na Turquia para derrubar o regime político constitucional e democrático vigente neste país. Nessa noite morreram mais de 250 pessoas e mais de 2500 ficaram feridas. A organização da tentativa foi imputada a Fetullah Güllen, a residir nos E.U.A. Foi decretado o estado de emergência e procedeu-se a uma “limpeza” na alta função pública do Estado: 3000 juízes e procuradores foram presos, entre eles, 2 do Tribunal Constitucional. 160 magistrados dos tribunais superiores foram presos e ainda 30 juízes de tribunais superiores, que não eram supremos tribunais.

Alparslan Altan é um dos dois juízes do TC que foi detido, tendo sido preso nas primeiras horas do dia seguinte à tentativa de derrube do regime, assim que o golpe de Estado foi dado como fracassado. O Requerente sempre contestou a sua prisão, quer no tocante à licitude da sua detenção na esquadra de polícia, quer quanto à prisão preventiva; quer no tocante à sua prisão subsequente à sua condenação. Pediu, ainda, a sua colocação em liberdade, mediante caução. Formulou um recurso de amparo constitucional ao TC Turco, o qual foi rejeitado por falta de fundamento. Encontra-se, hoje, numa prisão, na Turquia, em cumprimento de pena.

Os seus pedidos foram sempre rejeitados, tanto os referentes às falhas procedimentais, quer os relativos à falta de fundamento da sua prisão e da sua condenação. Queixou-se ao TEDH.

Entretanto foi acusado de tentar derrubar a ordem constitucional vigente por meio da sua participação no golpe de Estado. Um relatório de investigação do Ministério Público aponta para a pertença do requerente à organização terrorista a que é imputada a tentativa de golpe de Estado, tendo os seus diversos instrumentos de comunicação sido cuidadosamente vistoriados. No plano da prova, testemunhas anónimas depuseram contra ele, colegas seus do TC, antigos Procuradores junto do TC – um destes também alvo de promoção penal com fundamento em alegada participação na tentativa fracassada – depuseram contra ele, e verificou-se que o Requerente utilizava o sistema encriptado de comunicações ByLock, tendo as transcrições dos registos destas comunicações revelado elementos incriminatórios. Várias comunicações telefónicas anteriores do Requerente foram também matéria incriminadora. O Requerente sustentou, em sua defesa, ser um praticante regular de votos de vencido e opiniões dissidentes, as quais costumava fundamentar, de maneira detalhada, com alguma profundidade. Isto não teria agradado ao regime, em particular aos seus colegas do TC, que não hesitaram em o acusar de algo muito mais grave, a participação na tentativa de derrube do regime. Acabou por ser condenado em 15 de Janeiro de 2018, do crime de terrorismo. O STJ turco, em julgamento, condenou o Requerente a 11 anos e 3 meses de prisão por pertença a uma organização terrorista armada.

O TEDH considerou duas fontes documentais no quadro desta queixa. A Rec CM (2010)12, “juízes, independência, eficiência e responsabilidade” e a comunicação da Turquia de 21 de Julho de 2016, pela qual a Turquia comunicou ao CoE a derrogação da CEDH, justificada ao abrigo do art.º 15.º da CEDH, que prevê a derrogação por estado de emergência, suspendendo os direitos e garantias constantes deste instrumento de Direito internacional.

Examinando o direito, o TEDH debruçou-se sobre a situação na Turquia, justificativa da derrogação à luz do art.º 15.º da CEDH. As derrogações são aceitáveis apenas na medida do estritamente necessário, não sendo admitidas derrogações ao art.º 2.º (vida), ao art.º 4.º (escravatura) nem ao art.º 7.º (nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege). Para o TEDH, a questão foi a de saber se, na prática, estavam reunidas as condições do artigo 15.º. A Turquia não enunciou que direitos suspendia, mas o Requerente reconheceu que existia estado de emergência. O TEDH acabou por aceitar que estavam verificadas as condições do acionamento do art.º 15.º mas, ainda assim, notou que a detenção do Requerente ocorreu imediatamente após a neutralização do golpe abortado.

O TEDH entendeu que o Requerente não tinha esgotado os meios judiciais internos no respeitante à prisão na esquadra de polícia. Já sobre a questão da prisão preventiva, limitou o seu exame da causa a esta, e admitiu a queixa. Notou que a queixa do Requerente reside na fundamentação deficiente da sua prisão preventiva, que este qualifica como arbitrária. Fixou um primeiro elemento de partida. Para o TEDH, a certeza e a segurança jurídicas impõem textos legais claros. A prisão preventiva deve efetuar-se de acordo com um procedimento prescrito por lei e este princípio pode revelar a qualidade da lei. Podia existir uma razão para a detenção, mas esta foi deficientemente fundamentada. Na verdade, o Requerente não foi detido em flagrante delito, foi detido por suspeita. Os magistrados turcos alargaram a noção de flagrante delito constante do Código de Processo Penal, para justificarem decisões rápidas. De outro modo, o processo legal a observar poderia ser demorado e frustrar-se o fim da prisão preventiva (perigo de fuga e de destruição da prova). Apesar da preocupação legítima dos magistrados que prenderam o Requerente, estes procederam a uma interpretação demasiado flexível da noção de flagrante delito, constante da lei. E esta interpretação extensiva fez com que tenham recorrido a um instituto jurídico cujo desenho já não correspondia ao desenho plasmado no CPP. Uma vez que o processo – por se tratar de um juiz conselheiro do TC – decorreu perante o STJ, foi o próprio STJ quem procedeu a esta demasiado extensiva interpretação da noção de flagrante delito. Ora, aqui, interfere outro parâmetro. O de o Requerente ser ele próprio um magistrado. A proteção dos magistrados está ligada à garantia da independência da função e da sua imparcialidade. A extensão da noção de flagrante delito foi, assim, manifestamente desrazoável.

O TEDH ainda procurou enquadrar esta solução dada pelo STJ no art.º 15.º da CEDH. Aqui, a questão era a de saber se as medidas foram rigorosamente aplicadas, ou seja, se a derrogação, apesar de o ser, respeitou, ainda assim, os ditames do art.º 15.º da CEDH. Os decretos de estado de sítio e de emergência fragilizaram, em excesso, a proteção dos cidadãos contra os abusos. Neste contexto, a interpretação extensiva muito lata da noção de flagrante delito denegou as garantias processuais de que os arguidos devem beneficiar em processo penal, em particular os magistrados. Verificou-se assim, a violação do artigo 5.º § 1 pela interpretação muito lata da noção de flagrante delito, a qual não encontra abrigo no seio da declaração do estado de sítio e de emergência. Não foi, assim, fundamentada a prisão preventiva do Requerente.

A outra grande questão que o TEDH delineou foi, em relação com a primeira, a falta de uma suspeita razoável de o magistrado ter cometido um crime. É a questão da aplicação do artigo 5.º §§ 1c) e 3, da CEDH. O TEDH seguiu dois princípios de base: não tem de existir toda a prova do cometimento de um crime no momento da detenção; mas a suspeita deve ser razoável, no sentido de ser fundamentada. O TEDH observou que o Requerente foi preso no dia a seguir ao golpe militar falhado; que a prova contra ele só foi muito posteriormente coligida, colocando-se a questão de saber se já se dispunha, no momento da detenção, de suficientes elementos objetivos para justificar a prisão: o facto de posteriormente se terem reunido provas, não isenta as autoridades de terem uma justificação para prender o arguido no momento inicial em que a detenção opera; não foram fornecidos suficientes elementos para apoiar a alegada pertença do juiz à alegada organização terrorista; a detenção não assentou, assim, numa suspeita razoável para o efeito do artigo 5.º § 1 c). Novamente, o TEDH examinou a situação em relação com o estado de emergência e o artigo 15.º da CEDH. Para esta alta jurisdição, a suspeita razoável não pode assentar simplesmente no estado de emergência. Embora o contexto fosse de violência e de urgência, não existia suficiente prova para justificar a prisão. A prisão preventiva do Requerente não foi, assim, justificada, tendo-se verificado a violação do artigo 5.º §§ 1 c e 3 da CEDH. 

O alargamento muito amplo, por meio da interpretação do conceito de flagrante delito, que tornou possível a detenção imediata do arguido; e a ausência de suspeita razoável, para proceder à detenção, no momento desta, uma vez que a prova só a seguir se foi construindo, retiraram, assim, qualquer fundamento à prisão preventiva do arguido, em violação do art.º 5.º § 1 e do art.º 5.º §§ 1 c) e 3 da CEDH, direito à liberdade e à segurança.

O juiz ad-hoc turco Mert lavrou uma opinião dissidente. O seu argumento repousou no facto de a ofensa imputada ao juiz ser continuada e, nesse sentido, de certo modo, o flagrante delito poderia ser reconstruído (e note-se é precisamente aqui que a maioria critica a Turquia) e por esta mesma razão, a suspeita acabaria por encontrar a sua validade, acabando a sua razoabilidade por se consolidar ao longo do tempo (e, mais uma vez, é aqui que a maioria discorda; existe o dever de encontrar ab initio alguma fundamentação, a qual não se pode ir construindo ao longo do processo). 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos