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TEDH, 2ª Secção, A.S. c. Noruega, Abdi Ibrahim c. Noruega, Acórdãos de 17 de dezembro de 2019

10 jan 2020

CEDH, Artigo 8.º § 1, Direito à vida privada e familiar, na vertente do direito à preservação dos vínculos entre os pais e os filhos, em particular as mães, em caso de confiança da criança à guarda de uma família de acolhimento. Nos dois casos, violação.

Nestes dois processos de queixa, que correram os seus termos na mesma seção e que o TEDH resolveu não apensar, mas que mereceram a sua decisão judicial no mesmo dia, A.S., uma cidadã polaca a residir na Noruega e Abdi Ibrahim, uma cidadã da Somália a residir na Noruega, queixaram-se contra este Estado pela violação do seu direito à vida privada e familiar em razão da retirada da guarda da sua criança e da entrega definitiva desta a uma família de adoção, com um corte tendencialmente absoluto de relações entre as mães e os filhos.

No caso de A.S., a Polónia interveio no contexto da intervenção de terceiros e no caso de Abdi Ibrahim, o Estado que exerceu esta faculdade processual foi a República Checa.

A.S. já a residir na Noruega, deu à luz um filho atingido de dismaturidade. Os serviços de assistência à infância repararam que, a partir de quatro meses de idade da criança, a mãe mostrava desinteresse por esta. Foi, assim, a criança colocada por um período de tempo indefinido em apoio institucional, separando-se a criança da mãe. Ao longo de um processo administrativo e judicial complexo foi-se adensando a convicção das autoridades em relação à incapacidade da mãe em cuidar da criança, e A.S. foi perdendo os processos judiciais que entretanto ia instaurando. A.S. acabou por se queixar da violação do seu direito à vida privada e familiar ao TEDH.

Após ter admitido a queixa, o TEDH debruçou-se sobre o fundo da questão. Exprimindo as suas posições, a requerente sustentou a sua tese, o Governo polaco, na sua qualidade de terceiro interveniente, solicitou ao TEDH que analisasse a questão, na medida da severidade da solução encontrada, à luz do seu interesse, justificação e necessidade numa sociedade democrática, incidindo esta análise, em particular, na questão de saber se não teria sido possível aplicar uma medida menos intrusiva na vida destas pessoas, mãe e filho.

O TEDH reconheceu a interferência, a sua necessidade e o seu fim legítimo, passando a colocar a questão da sua proporcionalidade. Referiu o seu Acórdão de referência proferido em setembro de 2019 no caso Strand Lobben e outros c. Noruega. Para o TEDH, o direito ao respeito da unidade familiar e o direito à reunificação familiar são inerentes ao respeito da vida privada e familiar vertido no artigo 8.º, n.º1 da CEDH. Existe, nestes termos, uma obrigação positiva, a cargo do Estado, de promoção da reunificação familiar, assim esta seja possível. Além do mais, o artigo 8.º exige que sempre que o melhor interesse da criança e os direitos dos pais estejam em conflito, seja feita uma ponderação cuidadosa dos interesses em confronto. Neste contexto, embora ainda exista, a margem de apreciação do Estado é particularmente reduzida.

Aplicando estes princípios ao caso, o TEDH observou que as instâncias nacionais que o trataram inicialmente foram muito cuidadosas e deram uma grande importância ao problema. Ainda assim, o TEDH notou que a situação da mãe evoluiu ao longo do processo, e que os tribunais apenas consideraram os dados inicialmente recolhidos, sem cuidarem da sua evolução. Não foi nomeadamente concedida nenhuma das avaliações independentes que A.S. veio a pedir no decurso do processo. Por outro lado, a avaliação de certas reações emocionais de A.S. no contexto das visitas em ambiente institucional não podia receber uma leitura única. Segundo alguns especialistas, tanto podiam resultar da rejeição da criança pela mãe, como parecera inicialmente, como do incómodo desta perante a pressão dos agentes administrativos. Por todas estas razões se verificou a violação do artigo 8.º § 1 da CEDH, direito à vida privada e familiar.

Não houve opiniões concordantes ou concordantes parciais neste Acórdão, que foi votado por unanimidade.

No caso de Abdi Ibrahim, esta queixou-se contra a Noruega pela violação do artigo 8.º e do artigo. 9.º, direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Abdi Ibrahim teve a sua criança, no Quénia, em condições traumáticas. Imigrou para a Noruega, onde ficou, e aí procurou o apoio institucional para a ajudar com a criança. A instituição social entendeu que a criança corria perigo e promoveu a retirada da guarda da mãe. Esta queixou-se e opôs-se e, nestes processos, aceitando que a criança pudesse ser confiada a uma família de acolhimento, pediu que esta fosse pelo menos da Somália ou de confissão muçulmana (como isto não veio a acontecer, queixou-se posteriormente também da violação do art.º 9.º da CEDH). No final, a mãe acabou por ter direito apenas a seis visitas anuais nunca superiores a uma hora, esta decisão louvando-se na necessidade e na vulnerabilidade da criança. No processo, que acabou por ser longo, os tribunais verificaram o afeto da criança à sua família de acolhimento e foram reduzindo progressivamente os direitos de Abdi Ibrahim (visitas, acompanhamento, presença).

Os tribunais acentuaram o facto de que a mãe era muito jovem à sua chegada e que revelara inabilidade para cuidar da criança. Apesar de a mãe ter evoluído, nomeadamente, em termos de estabilidade emocional, este aspeto foi ignorado. No final, perdeu em todas as instâncias, tendo o Supremo Tribunal negado a autorização para apresentar um último recurso. Diante do TEDH, Abdi Ibrahim invocou a violação dos artigos 8.º e 9.º da CEDH.

No tocante ao artigo 8.º da CEDH (direito à vida privada e familiar, o TEDH admitiu este segmento da queixa bem como a intervenção de terceiro da República Checa, que propôs que os direitos da criança não sejam sempre interpretados no sentido, cegamente, de ser destruída a relação com os pais biológicos.

O TEDH reconheceu a existência de uma interferência, lícita e prosseguindo um fim legítimo, e questionou a sua proporcionalidade. Voltou a referir a jurisprudência Strand Lobben e considerou que, à partida, os tribunais procuraram avaliar cuidadosamente a situação da criança e da mãe. No entanto, verificou a aplicação de um regime muito restritivo na confiança da criança à família de acolhimento, na medida das restrições muito fortes impostas ao direito de visitas e de acompanhamento da mãe. O amadurecimento da mãe, ao longo dos vários processos judiciais, que foram morosos, também não foi considerado. Neste sentido, o TEDH observou que, em vez de o regime de contactos aumentar, como é o seu propósito em direito internacional, os vínculos familiares; a escassez de contactos promovida pelo regime de visitas operacionalizado pelos tribunais teve por efeito um enfraquecimento forte dos laços entre a mãe e o filho. Por estas razões, o TEDH entendeu, por unanimidade, existir a violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar.

O TEDH acabou por não se pronunciar, nem sequer no plano da admissibilidade, sobre o segmento de queixa relativo ao artigo 9.º da CEDH.

O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos