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TEDH, 2.ª Secção, Kilicdaroglu c. Turquia, Acórdão de 27 de outubro de 2020

29 out 2020

CEDH, Artigo 10.º, Direito à liberdade de expressão. Eventuais limites deste direito em razão de norma de proteção. Art.º 8.º CEDH, proteção da vida privada e familiar. Não preenchimento da norma de proteção contida no par. 2 do art.º 10.º.  A liberdade de expressão em razão da confrontação de dois opositores na arena pública estando em relação com a razão desta exposição, não pode ser restringida.  Se o insulto tiver uma função de chamariz da opinião pública, mais do que visar o núcleo intimo profundo da personalidade do visado, o insulto é legítimo. Violação do direito à liberdade de expressão consagrado no art.º 10.º § 1 da CEDH.

Kilicdaroglu, Secretário-geral do Partido Popular Republicano, Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) proferiu dois discursos dirigidos ao seu grupo parlamentar, no interior da Assembleia da República, e no quadro dos trabalhos desta instituição, em que criticava o Presidente do Conselho da República da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. O primeiro destes discursos continha críticas relativas à construção de barragens em ambientes humanos e ecológicos frágeis e a decisões judiciais bem como fortes críticas ao Presidente do Conselho. No mesmo discurso acusava este e o regime de ter deixado sacrificar, às mãos das forças ocidentais, um milhão e meio de muçulmanos no Iraque, de ter assistido impávido, tendo chegado a aplaudir, à morte indecente de Khadafi, e falta de sinceridade e de honestidade, praticando um desvio do poder institucional que, mediante as eleições, o Povo lhe confiara.

O Presidente do Conselho apresentou uma queixa-crime por difamação e o queixoso foi condenado no pagamento de uma compensação elevada, pelo prejuízo à dignidade, honra, consideração e capacidade profissional daquele. O queixoso recorreu, tendo-lhe a segunda instância reconhecido parcialmente razão e atenuado o montante indemnizatório. Não conformado, o queixoso recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça (o STJ), que manteve o decidido. O queixoso proferiu, a seguir, um novo discurso em contexto de trabalhos parlamentares, no interior da Assembleia da República, sempre perante o seu grupo parlamentar, em que novamente criticava o Presidente do Conselho. Neste caso o discurso dirigia-se mais uma vez à passividade do Presidente do Conselho perante os abusos cometidos pelas Forças Armadas turcas, na Região da Anatólia, aí torturando e matando cidadãos inocentes.  Matar pessoas não é coisa boa, mas o regime promove, pela sua passividade, estes excessos, consolidando-se mediante esta inércia, a qual favorece a corrupção. Neste discurso, o chefe de fila era o Presidente do Conselho. Este voltou a queixar-se por difamação com relevância criminal e o queixoso foi, mais uma vez, condenado pelo crime de difamação e a uma multa de elevado montante pelo prejuízo à dignidade humana, à consideração e à capacidade profissional do Presidente da República. O queixoso defendeu-se no processo, com a alegação de que proferira o discurso controvertido na sequência de bombardeamentos da Força Aérea turca, em que 34 pessoas perderam a vida.  O Presidente do Conselho nem sequer tinha pedido desculpa à população civil, ou apresentado condolências às famílias das vítimas. Era normal, neste contexto, o queixoso criticar o Presidente do Conselho por ter deixado esta tragédia acontecer. A crítica à postura religiosa do Presidente do Conselho, que tecera no discurso em questão, decorria naturalmente da situação, uma vez que o Islão não tolerava semelhante insensibilidade, para mais da parte do máximo dirigente com funções executivas da Nação. Isto era tanto mais evidente quanto o Presidente da República havia vencido as eleições com base no desejo de instituir na Turquia, uma geração amante de Deus. Neste contexto, em seu entender, a contradição era insuperável. Novamente a segunda instância reduziu o montante da multa. Sempre inconformado, o queixoso recorreu para o STJ, mas sem sucesso.

O queixoso recorreu então de amparo (uma queixa constitucional por violação dos direitos fundamentais, inexistente entre nós) perante o Tribunal Constitucional (o TC). A Seção a que o recurso de amparo constitucional foi distribuído entendeu não se verificar qualquer violação da Constituição. O queixoso não avançou para o Pleno do TC e queixou-se ao TEDH, que, examinada a matéria de facto, se debruçou sobre as questões de direito.

O queixoso alegara a violação do Art.º 10.º da CEDH, relativo à liberdade de expressão. Embora o Governo turco tenha excecionado à invocação deste artigo o princípio da subsidiariedade, segundo o qual as jurisdições nacionais teriam esgotado a questão por a terem examinado na totalidade, o que excluiria a competência do TEDH, este remeteu o exame desta exceção para o exame do mérito da causa. Admitida a queixa, o TEDH estudou, no plano do fundo, a questão de saber se se verificou uma ingerência da autoridade na autonomia jurídica do interessado. Verificou que esta ingerência ocorreu efetivamente e perguntou pela sua previsão legal. Aceitou a resposta afirmativa, uma vez que nenhuma das partes contestou a sede legal, no Código penal, das decisões judiciais alvo da presente queixa (o serem as decisões judiciais neste caso, a matéria da queixa ao TEDH, não faz deste um tribunal de recurso. É necessário ter esta dimensão em consideração, no estudo do processo de queixa).

A questão seguinte foi a de saber se a ingerência das autoridades na autonomia jurídica do queixoso prosseguia um fim legítimo. Também aqui, pelo reconhecimento na disputa entre as partes, que as queixas-crime tinham por fundamento a “proteção da reputação ou dos direitos de outrem”, o TEDH aceitou a prossecução desta finalidade legítima, da parte das autoridades.

A grande questão deste processo de queixa passou a ser a última deste método do TEDH, em que este tribunal examinou as várias dimensões em que uma intervenção da autoridade pode merecer a sua sanção judicial, ou seja a da sua proporcionalidade, a saber, se “era necessária numa sociedade democrática”. O TEDH indicou como jurisprudência de referência os casos Hachette Filipacchi associes c. França, 2015 , Morice c. França, 2015 , Pentikainen c. Finlândia, 2015, Medzlis Islamke; Delfi AS c. Estónia e Bédat c. Suíça, 2016 (dos quais os casos Hachette, Morice e Bedat foram objeto a seu tempo de divulgação nesta página). Em termos de princípios gerais, no tocante aos reparos que atingem a reputação de uma pessoa, o TEDH distingue entre juízos de facto e juízos de valor. Enquanto as imputações de facto podem ser verificadas, já os juízos de valor são relativos por natureza.

A proporcionalidade da ingerência vai, então, depender da existência de algum fundamento de facto na imputação feita. A não existir este fundamento, o juízo de valor pode ser excessivo (Morice). Além deste critério, o TEDH deve ainda ter em conta outros elementos que, por vezes, ofuscam este primeiro critério, a saber a medida da exposição pessoal do sujeito. Tratando-se de um personagem político, ele próprio se colocou na arena pública, o que diminui a medida da sua suscetibilidade de ser protegido perante o exercício do direito de criticar. Nesta última dimensão é necessário observar maior tolerância em relação ao exercício da liberdade de expressão. Neste momento, é importante atentar em que o merecimento de proteção da esfera individual pode recair no núcleo essencial do art.º 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar. A exigência de proteção dos direitos de outrem prevista no artigo 10.º que admite esta necessária proteção como limite ao exercício do direito à liberdade de expressão, enquadra este segmento do preceito, como muitas das normas constantes da CEDH, na categoria das normas de proteção (com alguma correspondência com a doutrina alemã relativa a estas normas que designa por Schutznormen). Neste momento é imperioso para o TEDH, na congruência da aplicação do seu método, verificar se as autoridades procederam a um balanceamento equitativo (“a fair balance”) dos interesses em presença. Por um lado, a indispensável proteção da liberdade de expressão, art.º 10.º; da outra parte a proteção do próprio direito à intimidade da vida privada, art.º 8.º da CEDH. Num raciocínio extremamente claro, com valor pedagógico muito relevante para o estudioso do direito europeu, o TEDH concretizou este exercício de ponderação equilibrada dos interesses em presença (liberdade de expressão vs. proteção da vida privada do destinatário da imputação) em seis passos merecedores de exame:

- primeiro, a contribuição da imputação para um debate de interesse público;

-segundo, o grau de notoriedade da pessoa atingida, bem como o tema da imputação tornada notícia (saber em que medida esta imputação está associada à razão da notoriedade da pessoa, o que tem relevância no caso de esta, por exemplo, em razão de funções públicas ou políticas de relevo, se ter colocado voluntariamente na esfera pública);

- terceiro, a anterior conduta da pessoa atingida (ainda que se tenha colocado na esfera pública o comportamento honesto e transparente desta pessoa não deveria permitir quaisquer vexames ou imputações);

- quarto, o modo de obtenção da informação que fundamentou a imputação e a sua verdade (estamos aqui no domínio da base factual da imputação que a pode legitimar, havendo, quanto à obtenção desta base factual, que observar o cuidado máximo, em razão da necessária proteção dos chamados whistleblowers);

- quinto, o conteúdo, a forma e as consequências da publicação (nomeadamente em que medida provocaram a devastação da intimidade da vida privada da pessoa destinatária).

E por fim – sexto, a severidade da sanção imposta (uma pena desproporcional na medida do castigo retira razão às autoridades, ainda que os anteriores requisitos estejam todos satisfeitos).

Observando rigorosamente o seu método, o TEDH passou à verificação do preenchimento destes 6 requisitos. Estabeleceu que, no caso da queixa, os discursos controvertidos eram de natureza a contribuir para o debate de interesse geral; que, quanto à sua condição pessoal, o queixoso era membro do Parlamento e o seu opositor era o Presidente do Conselho de Ministros da República turca. Os protagonistas atuavam ambos na arena pública e os discursos estavam em relação com a razão da sua notoriedade, a atividade política, com a exposição pública que provoca. Sobre a natureza dos reparos, estes não eram dirigidos à intimidade da vida privada do Presidente do Conselho (caso em que teria sido despoletada a norma de proteção contida no art.º 10.º da CEDH, a proteção dos direitos e interesses legítimos de outrem), ainda que o “estilo”, ou seja a maneira como as imputações foram proferidas, desse a aparência de insultos.

Para avaliar a relevância do insulto na proteção da vida privada do Presidente do Conselho, o TEDH socorreu-se da sua jurisprudência, proferida nos Acórdãos Roseiro Bento c. Portugal, 2006, Jerusalem c. Áustria, 2001, Athanasios Makris c. Grécia, 2017 e Lacroix c. França. Foram ainda citados Skalka c. Roménia, 2003 e Nadtoka. A vulgaridade de uma expressão não é decisiva só por si, quando esta expressão seja empregue apenas para um efeito de estilo. Em particular, reparos proferidos de uma determinada maneira, destinados a atingir a atenção do público não podem, só por si, levantar uma questão à luz da própria jurisprudência do TEDH (Hachette), não sendo o uso de frases vulgares decisivo na avaliação da importância, à luz da proteção da intimidade da vida privada, de um interessado que seja destinatário de determinadas imputações. Em particular, foram relevantes, no caso sub judice, o facto de as questões serem de interesse geral e de os contendores se situarem ambos na arena pública, tendo as imputações controvertidas uma ligação clara com a razão da sua notoriedade. As jurisdições nacionais não inseriram os conteúdos ofensivos no seu contexto e não deram a necessária relevância à sua dimensão de estilo, no sentido de captar o interesse do público para questões de interesse geral. 

Por fim, quanto à proporcionalidade em si considerada, por terem sido aplicadas multas, os processos assumiram uma dimensão civil, mais do que propriamente penal, no entender do TEDH. Ainda assim, mesmo que o queixoso pudesse, pela sua condição social, pagar os respetivos montantes, a sua aplicação, em sede de interpretação e integração do direito e de adjudicação da resposta judicial, era de natureza a dissuadir outros intervenientes da participação na liça política, em razão da atividade dos vários intervenientes na vida pública e política. Verificou-se, assim, a violação do art.º 10.º da Convenção, direito à liberdade de expressão.

O Acórdão foi adotado por unanimidade, tendo merecido uma opinião concordante parcial do juiz Yuksel. Este magistrado aceitou a conclusão da violação do direito à liberdade de expressão neste caso; aceitou as deficiências observadas na intervenção das autoridades judiciais turcas, mas manifestou desconforto no tocante à distinção feita no Acórdão, entre imputações ou juízos de facto e juízos de valor. Para este magistrado, a apresentação da relevância da matéria das imputações como tendo uma base factual, ou como sendo simplesmente valorativa e, por isso, relativa pela sua natureza, é da competência das autoridades judiciais internas, não do TEDH.

Embora numa primeira leitura desta opinião parcialmente discordante, o leitor do Acórdão pudesse opor que assim se privaria o TEDH de um importante instrumento de avaliação do grau de legitimidade da própria imputação alvo de sanção judicial interna; e, com efeito, esta objeção procede, sendo importante não privar o TEDH deste instrumento de avaliação; o juiz Yuksel mitiga a sua crítica e a sua afirmação de que esta matéria é da exclusiva competência das autoridades judiciais internas. Insiste em que a exigência do TEDH é superior, em muito, à do direito interno e nesta diferencia de fasquia da exigência acaba por estar, para ele, a dificuldade. Novamente o leitor sente-se chamado a intervir, pois compreende-se esta diferença de nível, uma vez que o TEDH, com a defesa dos direitos humanos, acaba por proceder à harmonização (o ideal antigo da unificação do direito é hoje, reconhecidamente inalcançável) do direito europeu (no sentido dos direitos nacionais dos Estados europeus, formando um corpus harmonizado de direito) nestas matérias. É por isso importante, para além da muito mais urgente necessária proteção séria dos direitos humanos, ser o critério dos direitos humanos do TEDH mais elevado do que nos Estados Parte no Estatuto e na Convenção europeia dos direitos humanos.

Neste sentido o juiz Yuksel concluiu que a Turquia deveria ter sido condenada por violação do direito à liberdade de expressão, apenas na vertente processual deste direito, e não na vertente substantiva, como foi. Muito modestamente, o leitor, estudioso do direito europeu dos direitos humanos, entende que a maioria decidiu bem. Trata-se mesmo, pelos contornos do caso, de uma violação substancial do art.º 10.º da CEDH. 

Naturalmente, tanto para vencedores, como para as minorias na decisão, o direito à liberdade de expressão está amplamente tutelado, e bem, no direito europeu dos direitos humanos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos