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TEDH, 3ª Secção, A. c. Rússia, Acórdão de 12 de novembro de 2019

20 nov 2019

CEDH, Artigo 3.º § 1, Tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, Artigo 13.º recurso efetivo das práticas de maus tratamentos, artigo 8.º direito à vida privada e familiar. Criança que assistiu à prisão violenta do pai. Stress pós traumático.  Art.º 3.º § 1, vertentes substancial e processual, violação.

A. queixou-se contra a Rússia, em abril de 2009, pela detenção e prisão violenta do seu pai, na sua presença. 

Em maio de 2008, o pai de A., que era funcionário de polícia, fora detido e preso pelo Serviço federal de controlo da droga após uma operação-teste de aquisição de droga. O pai de A. era acusado de vender ilicitamente droga.

A sua detenção e prisão aconteceu quando levava a menina, então com nove anos de idade, a uma celebração escolar para marcar o fim do ano letivo. Segundo A., a detenção do seu pai foi particularmente violenta, implicando, nomeadamente agressões físicas a este, bem como o seu espancamento, uma vez caído no chão. Um dos polícias agressores terá gritado à criança para se calar e entrar no carro do pai, o que esta fez.

A menina teve náuseas, acabou por fugir, após terem levado o seu pai, e foi acolhida em estado de choque por um tio. Na sequência desta agressão violenta do seu pai, a menina passou a urinar na cama, a sofrer pesadelos e a ter ataques de pânico, sempre que deixada sozinha. Deixou de comunicar com as outras crianças e perdeu a sua vivacidade. Embora fosse uma estudante feliz na música, perdeu o interesse pelo instrumento que praticava.

Passou a ser acompanhada por psicólogos e por médicos, em razão, quanto a estes, de uma disfunção cardíaca que adquiriu com este evento de vida.

Mais tarde, o seu pai veio a ser colocado em liberdade e a condição da sua filha melhorou. Ainda assim, o seu sofrimento prolongou-se por dois anos, tendo os médicos concluído existir uma relação de causa a efeito entre a prisão do pai da menina e o quadro patológico que esta atravessou.

A mãe queixara-se entretanto da violência das agressões ao seu marido e do sofrimento que o seu presenciar causou à sua filha. As autoridades concluíram que os factos, a existir, se qualificariam dentro do instituto jurídico do desvio de autoridade, mas entenderam que a qualificação não era aplicável por falta de prova. Foram instadas a reabrir a investigação, após a terem encerrado uma primeira vez, e ouviram a mãe e a filha bem como várias testemunhas entre as quais, o tio da menina. Ouvido o professor de música, este confirmou que a criança, que recebera um prémio de música, não desempenhava mais como dantes a sua prestação musical. Apesar destes testemunhos, a investigação foi novamente arquivada por falta de prova. Após novas insistências, a investigação foi reaberta uma terceira vez, mas face a depoimentos, considerados muito coerentes e em uníssono, dos vários polícias envolvidos, concluiu-se novamente pelo arquivamento por falta de prova.

O processo criminal contra o pai da menina foi arquivado, também ele, por falta de prova. Esta prova que fora obtida por meio da ação de agentes infiltrados não correspondera às exigências legais. Nomeadamente não existiram suportes materiais como registo, nomeadamente áudio e vídeo, da prática do crime imputado a este agente.

A menina veio a queixar-se por tratamentos cruéis, desumanos e degradantes que resultaram para ela da detenção e prisão do seu pai, nos termos do artigo 3.º § 1 da CEDH, na ausência de recurso efetivo contra esta violência que lhe foi imposta (art.º 13.º CEDH) bem como na violação do seu direito à vida privada e familiar (art.º 8.º CEDH).

Após ter declarado a queixa admissível e procedido ao seu exame, o TEDH destacou os seguintes princípios gerais:

O artigo 3.º da CEDH proíbe a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, em termos absolutos, sejam quais forem as circunstâncias e o comportamento da vítima;

Sempre que um particular se queixe de maus tratos praticados por agentes da autoridade, tem de existir uma investigação oficial capaz de conduzir à identificação e à punição do responsável.

O critério da prova é o da prova segundo as regras da experiência. Feita a prova prima facie pelo queixoso, compete às autoridades a contra prova para além de toda a dúvida razoável.

No tocante às crianças, as quais são particularmente vulneráveis, as medidas de investigação devem incluir a prevenção da continuação dos maus tratos e, se possível, do sofrimento. Devem estar orientadas à promoção do melhor interesse da criança e da dignidade humana.

Segundo a jurisprudência do TEDH, proferida no caso Gutzandi, este tribunal concluiu que o testemunho, por uma criança, de uma detenção violenta corresponde a um tratamento desumano.

Aplicando estes princípios ao caso, apesar da coerência invocada dos depoimentos dos vários polícias, o TEDH identificou algumas incoerências nos depoimentos destes, como “o preso tentou fugir, por isso foi necessário o recurso à força” e “não foi feito qualquer uso de força contra o preso”. Um eletricista que trabalhava perto testemunhou que o detido sofreu vários golpes, após ter sido atirado para o chão. Por fim, alguns dos polícias que disseram que os factos se passaram sem violência eram oficiais que chegaram após o pai da menina ter sido detido e preso.

No quadro da acusação contra o pai da menina, um dos polícias reconheceu que prestara um depoimento falso no contexto da operação anti droga, ao ter afirmado que vira a entrega da droga e o recebimento do dinheiros, pelo pai da menina.

Além do mais, o TEDH verificou que todos os polícias presentes no local da detenção sabiam da presença da menina.

O TEDH observou, ainda, que as investigações empreendidas falharam sempre e que não foram nunca tidos em conta os interesses da menina, então de nove anos de idade.

Observou, enfim, que o pai da criança não opôs nenhuma resistência à sua detenção e prisão, contrariamente a certas testemunhas que disseram que teria resistido.

Por tudo isto se verificaram os maus tratos impostos à criança na vertente substancial (art.º 3.º § 1 CEDH) bem como na vertente processual (art.º 3.º § 1 CEDH), uma vez que as investigações não foram efetivas.

O TEDH não considerou ser necessário proceder ao exame da questão à luz do artigo 13.º (direito a  um recurso efetivo), nem do artigo 8.º (direito à proteção da vida privada e familiar) da CEDH, à luz das conclusões a que chegou,  a propósito das dimensões substantiva e processual do art.º 3.º da CEDH.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos