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TEDH, 3ª Secção, Mityanin e Leonov c. Rússia, Acórdão de 7 de maio de 2019

15 maio 2019

CEDH, Artigo 5.º§§ 1 e 3. Prisão preventiva sucessivamente renovada, junção de prisão preventiva pela suspeita da prática de outro crime à prisão preventiva inicial. Prorrogações de prisão preventiva sem justificação judicial atempada. Violação. Art.º 5.º § 4, inexistência de recurso da prisão preventiva disponível, adequado e suficiente, violação. Art.º 5.º § 5, desrespeito do direito à compensação pela prisão preventiva injustificada. Violação. Art.º 6.º § 1. Iniquidade de um processo civil de responsabilidade extracontratual do Estado por não condução do recluso às audiências de julgamento, violação. Art. 6.º § 2. Direito á presunção de inocência. Queixa tardiamente apresentada. Não violação. Artigo 8.º § 1. Fundamentação da condenação pelo crime em notícia de imprensa. Vida privada. Não violação.

Mityanin e Leonov tiveram dois trajetos processuais penais que desembocaram nas respetivas queixas contra a Rússia, o que justificou a apensação das suas queixas pelo TEDH. No caso de Mityanin, este foi detido na sua cidade pela suspeita do cometimento de um crime (de roubo). Foi sujeito a termo de identidade e residência e veio posteriormente a ser preso preventivamente. Entretanto, foi descoberta a possibilidade de ter cometido outro crime noutra localidade, pelo qual veio a ser preso preventivamente, somando-se a sua nova detenção preventiva à anterior. Estas prisões preventivas foram sendo sucessivamente renovadas, tendo as autoridades, a cada renovação, esperado pelo fim do período legal de prisão preventiva, e só depois de algum tempo, face à complexidade do processo, o receio de fuga e o perigo de destruição de prova, vindo a renovar os períodos de prisão preventiva, por meio das necessárias decisões judiciais. Entretanto, decorridos vários anos após a sua inicial detenção, mas ainda em prisão preventiva, as autoridades abriram um novo processo contra ele, por que veio a ser condenado, com fundamento numa notícia de jornal que descrevia uma rede de crime organizado, da qual constavam a sua fotografia e o seu nome, embora sem referências diretas à sua pessoa. Transpirava deste artigo que poderia ter participado nesta rede criminosa.

Leonov conheceu um percurso próximo. Foi preso preventivamente por um primeiro crime numa localidade, veio a ser constituído arguido por outro crime, tendo-se somado as duas prisões preventivas pelos dois crimes, as quais foram sendo longa e sucessivamente renovadas, sem decisão judicial que as fundamentasse, no momento da sua expiração, e próprio para a sua renovação, ocorrendo esta decisão judicial, justificando a recondução da prisão preventiva, bem depois do término do prazo do anterior período.

Recorreram a vários títulos sem sucesso e queixaram-se ao TEDH com fundamento nas violações alegadas dos artigos 5.º, 6.º e  8.º da CEDH.

O TEDH estudou as violações alegadas, admitiu em parte as queixas (na medida em que os requerentes haviam esgotado os recursos adequados e disponíveis) e, observando a violação alegada do artigo 5.º § 1 da CEDH, direito à liberdade e segurança, foi sensível, ao facto de que os Requerentes se queixaram da violação deste preceito, em razão das sucessivas reconduções dos seus períodos de prisão preventiva. Para o TEDH, apesar de a prisão preventiva ser lícita, à partida, nada justifica que as sucessivas renovações o sejam. Isto porque, antes de serem validadas as reconduções das detenções preventivas, os tempos legais anteriores de detenção foram ultrapassados e não houve o cuidado em proceder à sua renovação atempadamente. Pelos períodos de detenção sem justificação, a Rússia violou o artigo 5.º § 1 da CEDH, direito à liberdade e à segurança.

Olhando para o artigo 5.º § 3, dever de apresentação a um magistrado, os queixosos alegaram que houve falta de diligência no tratamento dos seus processos penais, o que conduziu à sua condenação. Para o TEDH, sempre em relação com as renovações sucessivas e com as próprias circunstâncias da detenção inicial, o TEDH entendeu que o processo foi conduzido de modo negligente, em particular a ausência das renovações no próprio tempo veio equivaler à falta de apresentação a magistrado para validar a detenção. Neste sentido, também aqui, se verificou a violação do artigo 5.º § 3 da CEDH.

O primeiro Requerente, Mityanin, esgotou o meio previsto no art.º 5.º § 4 da CEDH, tendo procurado opor-se à sua detenção.  A sua pretensão ficou desatendida, nem sequer tendo merecido exame, tendo assim ficado desprovida de sentido a disposição interna que prevê o recurso da detenção. Verificou-se, também aqui, a violação do artigo 5.º § 4. Ambos os queixosos pediram a compensação pela prisão preventiva ilegal. Para os tribunais russos, estes não falharam. Não tendo sido, segundo eles, ilegal, a detenção, não concederam qualquer compensação. Já para o TEDH, que verificou existirem várias violações da CEDH em torno destas prisões preventivas, era devida uma compensação pela prisão ilegal.  Verificou-se, assim, a violação do artigo 5.º § 5 da CEDH. O segundo Requerente, Leonov, queixou-se, a propósito destas reconduções da prisão preventiva, em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado.  A sua ação cível avançou, tendo acabado por não ter êxito.  Queixou-se da iniquidade deste processo civil, na medida em que não pôde assistir às audiências. Estando em prisão preventiva, deveria ter sido conduzido às audiências de julgamento para nelas tomar parte.  Tal não sucedeu.  Para o TEDH também aqui se verificou a violação do artigo 6.º § 1 da CEDH, no tocante à iniquidade do processo civil de Leonov contra o Estado.

No tocante ao artigo 6.º § 2, foi levantada a questão do respeito da presunção de inocência, na pessoa do primeiro Requerente, por este ter sido condenado com fundamento numa notícia de imprensa, num dos três processos penais que correram contra ele. No entanto o TEDH verificou que Mityanin não respeitou o prazo de seis meses necessário para apresentar a queixa, uma vez que este começava a correr a partir do momento em que tinha sucumbido no seu processo interno por difamação. O TEDH não admitiu este segmento da queixa.

A última disposição da CEDH examinada pelo TEDH foi a do artigo 8.º, direito à vida privada e familiar, o qual assume relevância neste quadro processual penal porque Mityanin veio a ser condenado com fundamento numa notícia de imprensa. O TEDH admitiu este segmento de queixa porque o Requerente havia esgotado os recursos internos tendo proposto a ação por difamação. Em termos de prazo, aceitou, nesta parte, uma vez que a decisão judicial fundamento da queixa já não é a ação por difamação, mas a própria sentença definitiva, contendo a condenação penal, em relação à qual Mityanin ainda estava dentro do prazo de queixa quando acionou a justiça europeia, a queixa como admissível. Quanto ao fundo entendeu que a situação é diferente da liberdade de expressão concedida aos jornalistas. No quadro desta liberdade, alguém se queixa por ter sido impedido de falar ou por ter sido castigado por falar. No quadro da proteção do direito à vida privada e familiar, se alguém não se expôs de ânimo próprio ao escrutínio da crítica pública, tem direito à sua não exposição. É o caso do arguido que não pretendeu uma carreira pública ou política, ou que, ele próprio, não comunicou de forma a merecer uma crítica da imprensa, não se tendo colocado na arena pública. Para mais, estava particularmente indefeso, na medida em que já se encontrava em prisão preventiva, por conseguinte, sem qualquer possibilidade de se movimentar, pelo menos em igualdade de circunstâncias com os demais cidadãos, no respeitante a esta notícia.  Mas para o TEDH, que leu a notícia de imprensa em questão, embora o nome e a imagem do Requerente constassem da notícia e ele pudesse ser associado à comunidade criminosa que se entendia perseguir, não havia nada no texto que o pudesse ofender.  Por outro lado, a junção desta notícia aos autos para efeitos incriminatórios era legítima e foi lícita (embora possa não ter sido lícita a limitação do fundamento da condenação apenas a este texto), sendo frequentes os processos criminais nacionais em que artigos de imprensa são juntos aos autos para melhor enquadramento e esclarecimento da matéria incriminatória. Neste sentido, embora o conteúdo da notícia, neste contexto, surja como muito forte, o TEDH entendeu não existir a violação do artigo 8.º § 1.

Na sua opinião dissidente, o juiz De Gaetano entendeu que se verificou também a violação do direito à vida privada vertido no artigo 8.º, na pessoa de Mityanin, na medida em que bastou um artigo de imprensa para fundamentar a sua condenação. Mityanin não era uma figura pública nem política, estava em prisão preventiva, e, neste sentido encontrava-se numa especial situação de vulnerabilidade.

Na sua opinião dissidente, o juiz Dedov entendeu que as queixas não deveriam ter sido atendidas porque, segundo ele, todas elas, nos seus vários segmentos, ultrapassaram o prazo de seis meses. Este magistrado debruçou-se ainda sobre a questão da disponibilidade de remédio interno para a reparação do dano moral resultante da responsabilidade civil extracontratual do Estado, em torno de considerações próprias ao processo civil russo. A questão da reparação pelo dano moral dependia, segundo ele, da interposição dos vários recursos das decisões de detenção, a seu tempo (existindo este acionamento prévio da justiça penal em torno das reconduções das detenções, teria sido, segundo ele, possível fundamentar a ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo dano moral perante a instância cível com maiores possibilidades de êxito).


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos