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TEDH, 4.ª S., Vlase c. Roménia, Acórdão de 24 de julho de 2018

12 set 2018

CEDH, Artigo 2.º, Direito à vida, dimensão processual. Dever de investigar para determinar a extensão da eventual responsabilidade a que possa haver lugar.

Vlase, apelido da mulher e da filha de NV falecido num hospital militar romeno, queixaram-se na dimensão processual da violação do direito à  vida de NV, subsumindo esta violação a disposições de vários artigos da CEDH, além do próprio art.º 2.º (direito à vida), nomeadamente o art.º 6.º (iniquidade e à demora do processo) e o art.º 13.º (ausência de recurso efetivo para pôr termo às violações verificadas).

NV sofreu de uma infeção bacteriana que lhe causou uma úlcera gastroduodenal, tendo sido recomendada a prática de uma cirurgia, que teve lugar, na sequência da qual se verificaram complicações que justificaram quatro cirurgias. Acabou por sofrer de klebsiella pneumoniae, uma bactéria sensível à antibioterapia, e, no fim de complicações múltiplas, veio a falecer.

Uma empresa de verificações relativas a doenças oportunistas em ambiente hospitalar notou várias deficiências de funcionamento no hospital onde NV veio a falecer, e no tempo e no serviço onde este fora tratado.

As Senhoras Vlase apresentaram uma queixa-crime contra o hospital por homicídio por negligência. Foram encetadas diligências de investigação, embora fosse negado o acesso a determinada documentação às queixosas e, num primeiro momento, lhes fosse também negada a participação do perito por elas designado na autópsia feita ao corpo de NV.

O Instituto de Medicina Legal, entretanto convocado para proceder à supervisão do sucedido, concluiu que tudo estivera bem e que não fossem as intervenções, o paciente teria falecido mais cedo.

Entretanto foi autorizada a participação nos exames do perito das queixosas, o qual verificou negligências graves que provocaram a peritonite, da qual a vítima veio a falecer.

As queixosas acrescentaram à sua queixa inicial, uma nova queixa, relativa à demora da investigação.

O processo penal por homicídio negligente foi arquivado por falta de prova, mas reaberto mediante um recurso apropriado das queixosas. Acabou por ser definitivamente arquivado, tendo entretanto sido aberto um processo penal contra os médicos que trataram NV.

Examinando o Direito, o TEDH requalificou a queixa, circunscrevendo-a unicamente ao direito à vida na sua dimensão processual. Constatou liminarmente que o facto de após alguns anos o processo penal ainda pender contra os médicos, revela uma falta de prontidão da justiça. Além do mais elencou um conjunto de elementos que se traduzem em falhas processuais que demonstram que a questão não foi corretamente investigada e condenou a Roménia por violação do direito à vida (art.º 2.º), na sua dimensão processual, ou seja pela deficiente investigação conduzida sobre a morte de NV, não se considerando competente para examinar a questão quanto ao fundo, a saber a eventual dimensão substancial da violação do direito à vida de NV, por negligência médica, a qual compete às autoridades romenas.

O problema que este acórdão traz à luz, para os leitores da jurisprudência do TEDH é transversal, e verifica-se nalguns países, com semelhanças no seu ordenamento jurídico, na Europa. Revela a deficiência consistente em a responsabilidade civil extracontratual do Estado apenas ser operável mediante a comprovação da culpa do agente do setor público, às mãos do qual a situação aconteceu. Ora é concebível, e existe implementada noutros países europeus, a existência de uma culpa funcional do Estado, uma culpa pelo seu deficiente funcionamento, como no caso o revelou a auditoria da empresa independente de verificações, independentemente da concreta responsabilidade penal de um agente, a qual pode nem sequer suceder ou ser difícil de estabelecer com exatidão, na medida em que o feixe de causalidades do acidente pode ter origem em diversas fontes, mas ser, ainda assim estabelecido, com fundamento nas regras da experiência que conduzem a ter como estabelecida a culpa funcional do Estado. Esta responsabilidade, na medida em que se verifica um funcionamento deficiente da instituição, não deveria ainda ser confundida com a responsabilidade objetiva: depende da concretização material daquilo que se poderia designar por culpa funcional, uma culpa originária no deficiente funcionamento dos serviços. Deixaria a função médica de viver no terror da perseguição criminal e as vítimas seriam mais facilmente atendidas, no terreno jurídico, mediante a verificação, por um tribunal, desta culpa funcional da instituição. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos