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TEDH, 4ª seção, Baralija c. Bósnia Herzegovina, Acórdão de 29 de outubro de 2019

7 nov 2019

CEDH, Protocolo n.º 12, Artigo 1.º, direito à não discriminação, violação. CEDH, art.º 46, execução do Acórdão do TEDH, medidas legislativas a tomar no prazo de seis meses a contar da data em que o Acórdão se tornar definitivo.

Irma Baralija, uma cidadã da Bósnia Herzegóvina queixou-se ao TEDH da violação do seu direito a não ser discriminada, constante do art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à CEDH em razão de, sendo cidadã eleitoral, e presidente da seção local de um determinado partido político, lhe estar vedado o acesso à participação eleitoral ativa e passiva. A queixosa é residente em Mostar, uma cidade com relevância política, social, económica e cultural na Bósnia Herzegovina e sucede que o último acto eleitoral para as autarquias locais em Mostar teve lugar em 2008.

Mediante requerimento de um partido político, o Tribunal Constitucional da BH declarou certas partes da lei eleitoral para as autarquias locais inconstitucionais, bem como a inconstitucionalidade de certos segmentos do Estatuto de Mostar. No seu Acórdão, o TC determinou que o Parlamento nacional deveria proceder à modificação das disposições legais declaradas inconstitucionais no prazo de seis meses a contar da publicação do seu Acórdão. Aos órgãos da Cidade de Mostar caberia então, no prazo de três meses a contar da entrada em vigor da lei, posta em conformidade com o Acórdão do TC pelo Parlamento, o dever de modificar o Estatuto de Mostar de modo a pô-lo em conformidade com a lei assim modificada. Este Acórdão foi adotado em 2010.

Em 2012, verificando que o seu Acórdão de 2010 ainda não fora executado, o TC adotou um Acórdão de execução do primeiro, e determinou que as disposições legais declaradas inconstitucionais deixassem de gozar de qualquer eficácia jurídica. A perda de eficácia das disposições em questão ocorreu em 28 de fevereiro de 2012. Esta situação teve por consequência a não participação da Cidade de Mostar nos ciclos eleitorais de 2012 e 2016. Segundo as informações que o Governo prestou ao TEDH no quadro do litígio que o opôs à Requerente, em 13 de setembro de 2019, as disposições necessárias à produção do acto eleitoral ainda não tinham sido adotadas.

O Presidente da Câmara de Mostar em funções, fora eleito pelo Conselho da Cidade em 2009 e vem exercendo um “Mandato Técnico” desde 2012, em razão da ausência de eleições locais. Os orçamentos locais são adotados pelo Presidente da Câmara mediante acordo com o Parlamento nacional que abre exceções anuais.

Organizações, de tipo universal e regional, de Direitos Humanos tomaram conhecimento e vêm-se pronunciando há alguns anos sobre a crise de Mostar. Assim, na conformidade com o art.º 25.º do PIDCP, que garante o direito a eleger e a ser eleito, o qual tem um Comentário Geral, também n.º 25, do CDH para explicar o seu sentido e alcance, dois relatórios do representante especial do SG das NU junto do Conselho de Segurança, os Relatórios n.ºs 54 e 55, de 2018 e 2019 respetivamente, dão conta da situação em Mostar.

No âmbito do CoE, a Carta europeia da autonomia local define o que é governo local no seu art.º 3.º rezando que é constituído por eleitos locais. Uma recomendação do Congresso das Autoridades Regionais e Locais de 30.03.2017 pede a realização das necessárias eleições locais em Mostar, às autoridades competentes para estas as organizarem de acordo com os métodos constitucionais e legais previstos. A Rec. 2201 (2018) da APCE de 24 de janeiro de 2018 também exige a realização destas eleições. Enfim, a Comissão da UE também se pronunciou sobre o assunto, no mesmo sentido, em 29 de maio de 2019.

A Requerente queixou-se de discriminação uma vez que, sendo residente em Mostar, não beneficia do mesmo ativo direito de votar e de ser eleita, do mesmo modo que qualquer outra cidadã da BH residente em qualquer outra cidade da BH. Ao nível da admissibilidade, o Governo (Gv) opôs a exceção da ação popular, o que a CEDH não admite, alegando que a queixosa se estaria a queixar por todos. O TEDH, entendendo que a vítima deve ser diretamente afetada por uma medida ou pelo incumprimento de um dever, o que significa a exclusão da ação popular, entendeu que a Requerente foi suficientemente atingida no seu direito de participação política para ser considerada vítima direta. A queixa foi, assim, admitida no tocante a esta exceção. O Gv também levantou a exceção de não esgotamento dos recursos internos, o qual esgotamento tem por função dar oportunidade ao Estado de reparar a violação em curso. A Requerente deveria, para o efeito, ter-se queixado ao TC, o que não fez. Mas pelo facto de existirem dois Acórdãos do TC, o último dos quais de execução do primeiro, e entendendo que a regra do esgotamento dos recursos internos não deve ser considerada de modo demasiado inflexível, o TEDH admitiu a queixa também no tocante a esta exceção.

Quanto ao fundo, são de interesse os princípios gerais em matéria da discriminação que o TEDH elencou. Contrariamente ao art.º 14.º da CEDH que faz depender a alegação da discriminação da violação de um outro artigo da CEDH, o art.º 1.º do Protocolo 12 não depende da violação de qualquer outra disposição da CEDH. Quanto à discriminação, para esta poder existir, as condições das pessoas devem ser análogas. É apenas por meio da verificação da existência de uma característica particular das pessoas que se dizem ser discriminadas, que lhes seja comum, e as distinga de outros grupos de pessoas, que se pode aferir a existência da discriminação.

O tratamento diferenciado de pessoas com características comuns em situações análogas será, assim, discriminatório, se não tiver um fundamento objetivo; ou seja, se não prosseguir uma finalidade legítima ou se não for proporcional o meio empregue, em relação ao fim almejado.

Por fim, compete ao Gv, segundo as regras da prova segundo a experiência da vida (prova prima facie contra prova para além de toda a dúvida razoável), a prova da inexistência de discriminação no caso concreto.

A questão da discriminação coloca-se por a Requerente ser cidadã de Mostar e estar impossibilitada de participar ativamente nos actos eleitorais locais, enquanto uma outra cidadã da BH que resida em qualquer outra cidade do país, tem a possibilidade de participar ativamente nos actos eleitorais locais da sua cidade.

Apesar da argumentação do Gv segundo a qual a execução dos dois Acórdãos do TC levaria o seu tempo, o TEDH observou que o último acto eleitoral teve lugar em 2008, que o primeiro Acórdão do TC é de 2010 e o segundo Acórdão, de execução, é de 2012. A dificuldade em executar não justifica o lapso de espera, o qual é demasiado longo, e por isso, desrazoável. Verificou-se, assim, a violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à CEDH.

Em sede de execução do Acórdão do TEDH (art.º 46.º CEDH), o TEDH determinou a modificação da lei eleitoral nacional e do Estatuto da Cidade de Mostar, segundo as determinações do TC,  no prazo de seis meses a contar da data em que o Acórdão do TEDH se tornar definitivo, de modo a permitir a realização das eleições locais em Mostar e de estas terem lugar. O CM assegurará a supervisão desta disposição do Acórdão do TEDH.

O Acórdão foi votado por unanimidade. Não houve opiniões concordantes ou concordantes parciais. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos