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TEDH, 4ª Secção, Boljevic c. Sérvia, Acórdão de 16 de junho de 2020

29 jun 2020

CEDH, Artigo 8.º§1, Direito à vida privada e familiar. A não reabertura de um processo após o falecimento do pai presumido que o havia proposto no sentido de não ser reconhecido pai, após o falecimento deste, existindo possibilidades novas de investigação da paternidade, representando uma excessiva rigidez do princípio da certeza e da segurança jurídica, ofendeu o artigo 8.º § 1 da CEDH.

Boljevic queixou-se, contra a Sérvia, ao TEDH por não lhe ter sido reconhecida, por decisões judiciais proferidas após o falecimento do seu pai presumido, a possibilidade de efetuar testes ADN, o que o impediu de conhecer as suas origens.

Boljevic nasceu de uma união natural e sempre tomara um certo A. como seu pai, até que em 1971, o tribunal distrital de Zrenjanin decidiu que este A não era o pai de Boljevic. Embora Boljevic, então criança, não tivesse disso consciência, o registo civil da então Titograd (hoje Podgorica) apagou do seu assento de nascimento a filiação de A. Este processo fora movido pelo próprio A. contra a mãe de Boljevic e contra este, e era apenas relativo à questão da paternidade de A. O tribunal supremo de Vojvodina, a quem mãe e filho recorreram da decisão do tribunal distrital de Podgorica, manteve a decisão recorrida.

A. veio a falecer em 2011 e foi então que Boljevic descobriu a existência do processo decidido nos anos 70 relativo à paternidade de A. Até então, Boljevic acreditara firmemente ser A. o seu pai biológico. Boljevic e a sua mãe tentaram reabrir o processo em 2012. Avançaram com os argumentos de que Boljevic sempre acreditou ser A. o seu pai, e que ninguém lhe dissera o contrário, que do registo anterior à acção judicial de 1971 sempre constara a sua filiação em relação a A., e que em 1971 ainda não existiam testes ADN.

O tribunal de Zrenjanin recusou a reabertura do processo em 9/01/2012, com o fundamento de que o representante judicial do menor exercera todos os direitos processuais que a este competiam (representação do menor, condução da lide, interposição de recursos), que não existia suspeita de ilicitude do julgamento e que, por estas razões, a que acrescia o decurso do tempo (cerca de quarenta anos), estava prescrita qualquer acção judicial respeitante à paternidade de Boljevic. Mãe e filho recorreram, tendo o recurso sido julgado improcedente. Queixaram-se, em regime de amparo constitucional (uma figura inexistente no direito português), ao Tribunal Constitucional (o TC), o qual rejeitou a queixa por considerar que a tentativa de reabrir o processo já tinha sido examinada por dois graus de jurisdição, em 1ªinstância e em apelação, e que nada apontava para a ilicitude das decisões judiciais. Digno de nota, ainda assim, é o facto de os tribunais, nas suas decisões, terem reconhecido que o registo assentara a paternidade de A. em relação a Boljevic e que o registo apenas fora revogado mediante a decisão judicial de 1971.

Boljevic queixou-se ao TEDH da violação do seu direito ao estabelecimento da identidade do seu pai biológico, ou seja do seu direito ao estabelecimento da sua filiação, radicado no seu direito a conhecer as suas origens tutelado pelo art.º 8.º §1 da CEDH, direito à vida privada e familiar. O TEDH admitiu a queixa considerando estar o direito a conhecer as origens abrangido pelo art.º 8.º § 1 CEDH.

Apesar da oposição, pelo representante do Governo sérvio, da exceção relativa à existência de uma ação específica de investigação de paternidade (diversa da reabertura do processo ou revisão de sentença pelo invocado direito a conhecer as origens e o agora disponível teste ADN), aquela deveria ter sido esgotada por Boljevic; o TEDH reconheceu o dever a cargo dos queixosos de esgotar os recursos judiciais internos disponíveis, os quais, queixosos, devem arguir em substância o fundamento de queixa tal como ela será posteriormente apresentada ao TEDH; mas afirmou que estes queixosos apenas devem, ainda assim, esgotar os recursos necessários, suficientes e adequados, não sendo de esgotar um recurso disponível que poderá não ser adequado a trazer a resposta ao problema invocado.

Uma vez que o representante do Governo, não tendo feito nenhuma demonstração válida de que a investigação de paternidade, cujo esgotamento necessário opôs, seria efetiva; e que o queixoso logrou provocar o exame, embora com resultados negativos, da sua causa pelas instâncias nacionais, este esgotou os recursos internos.

Quanto ao mérito da questão, o TEDH perguntou se o caso revela uma obrigação positiva a cargo do Estado, ou alguma ingerência deste na vida privada e familiar do queixoso. Concluindo que a existência desta obrigação positiva é possível, o TEDH questionou se a recusa em reabrir o processo de 1971 prosseguia um fim legítimo. Na medida em que não se descortinou ilicitude nas decisões judiciais transitadas em julgado e, na medida em que este instituto se destina a promover a paz jurídica, não permitindo a constante reabertura dos processos, a recusa em reabrir o processo foi legítima.  A questão seguinte, no método do TEDH, foi a de saber se um justo equilíbrio foi garantido com esta recusa em reabrir o processo. Além da investigação da paternidade ser um direito que compete tanto ao filho quanto ao pai e à mãe, o momento em que o filho toma consciência do problema da sua filiação, é também de considerar. É certo que em determinados países existem presunções legais que vedam o acesso ao conhecimento da filiação. Ainda assim, também quanto a estes países, o TEDH considerou que uma aproximação demasiado rígida viola a CEDH, ao impedir ao filho o conhecimento das origens.

Para o TEDH, o direito ao conhecimento das origens pertence ao núcleo essencial dos direitos tutelados pelo artigo 8.º § 1 da CEDH. Apesar do decurso do tempo, o filho apenas tomou consciência do problema com o falecimento do pai. Por outro lado, a vida privada e familiar deste já não merecia, porque tinha falecido, uma proteção tal que vedasse o acesso ao conhecimento das origens do filho. Enfim, o princípio da certeza, da segurança e da paz jurídica, mediante o instituto do caso julgado transformou a aproximação do problema, pelas instâncias judiciais, em 2012, numa aproximação legalista que pecou pela rigidez do seu excessivo formalismo.

Por estas razões existia uma obrigação positiva de velar pelo direito do filho ao conhecimento das origens, que não foi cumprida, dando lugar à violação do artigo 8.º § 1 da CEDH.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos