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TEDH, 5ª Secção, Faller e Steinmetz c. França, Decisão de 22 de outubro de 2020

16 nov 2020

CEDH, Protocolo n.º 7, art.º 4.º, Direito a não ser julgado e condenado duas vezes pela mesma infração. Um processo disciplinar de que resulte uma sanção de gravidade não desproporcional sem caráter marcadamente penal, pela violação de deveres deontológicos da profissão médica, não assume natureza jurídica criminal pelo que não se sobrepõe a uma condenação de natureza penal pelo mesmo ilícito proferida por um juízo criminal.  Não violação do direito a não ser julgado e punido duas vezes pela mesma infração (ne bis in idem).

Faller e Steinmetz, dois médicos fisiatras e osteopatas, são sócios de uma clínica de reeducação funcional, que operam em comum. Recebem os seus vencimentos sob a forma de honorários em regime de profissão liberal. Em 1993 a sua clínica adquiriu um equipamento de radiografia, o qual era utilizado, para os fins do trabalho, pelos empregados da clínica, sob a supervisão de um ou outro dos médicos.

Um terceiro médico, na condição de paciente desta clínica, entendeu ter pago prestações não devidas por serviços não prestados e queixou-se, requerendo o exame da documentação em seu poder à Caixa Primária de Seguro de Doença, no contexto da Segurança Social em França (a CPAM) de Colmar, a qual emitiu um Parecer nos termos do qual os Queixosos Faller e Steinmetz lhe tinham cobrado prestações indevidas. Teriam nomeadamente procedido ao cúmulo não devido de honorários de consulta da especialidade e de actos técnicos (radiografia, impressão da radiografia, relatório da radiografia, etc…), os quais teriam sido atribuídos ao médico que não tinha procedido em substância à consulta, nem tinha sequer contactado, de algum modo, o paciente. Para a CPAM haveria dupla faturação pelo acto clínico da consulta imputado ao médico concretamente examinado e pelos exames médicos praticados, os quais teriam sido contabilizados com muito detalhe, e imputados ao médico que não tinha procedido ao atendimento e consulta do paciente. Este processo de faturação dupla era contrário ao artº. 11.º do Regime jurídico da homologação dos atos profissionais, o NGAP para que remetiam as disposições aplicáveis do Código da Segurança Social.  Estes normativos estabelecem que, em caso de consulta da especialidade acompanhada por actos clínicos de exame, não pode existir faturação dupla, mas apenas uma única fatura, a qual é passada para o acto médico de valor mais elevado, neste caso, os exames radiográficos.

A CPAM imputou aos Queixosos uma prática reiterada de faturação dupla, de modo organizado e sistemático. A CPAM acusou ainda os Queixosos de desrespeitarem a regra que impõe o Percurso coordenado da prestação de cuidados, na medida em que procediam à angariação de clientes, sem que o médico que receitara o tratamento tivesse indicado a sua clínica, sendo esta indicação, e o respetivo cumprimento, imperativos no regime legal aplicável.  A Ordem dos Médicos instaurou um processo disciplinar contra os Queixosos, tendo o Conselho geral Distrital da Alsácia concluído no sentido da violação, pelos Queixosos, do dever de Honestidade, ao procederem ao desvio sistemático do Percurso coordenado da prestação de cuidados médicos estabelecido por lei. Tinham, ainda, desconsiderado a profissão médica ao procederem a manipulações na base da documentação imprecisa relativa aos exames radiográficos e tinham faturado exames que não tinham prestado, com a intenção de contornar o Regime geral dos actos médicos em vigor (o CCAM). Os Queixosos acionaram, em apelação, a Seção do Seguro Social do Conselho nacional da Ordem dos Médicos, que revogou parcialmente as decisões do Conselho geral Distrital da Ordem dos Médicos, na Alsácia. Esta instância deontológica de apelação reduziu a pena de suspensão da atividade que fora aplicada, de 24 (dos quais 12 em regime de pena suspensa) para 12 meses; para 4 meses, dos quais 2 em regime de pena suspensa. Mas, na mesma sentença, a Seção do Seguro Social da Ordem dos Médicos confirmou a conclusão no sentido da falta dos Queixosos ao dever de probidade, nos termos em que o havia feito o Conselho Distrital da Ordem. Em contrapartida, mitigou a conclusão relativa à manipulação documental em torno dos exames radiográficos, entendendo que este segmento da Decisão do Conselho Distrital devia ser revogado, por falta de prova. O órgão de acusação da Seção Distrital da Alsácia da Ordem dos Médicos, com a qualidade de Chefe de serviço num hospital, recorreu para o Conseil d’Etat, o qual rejeitou todos os recursos interpostos (incluindo os dos Queixosos), no terreno da admissibilidade, pois nenhum dos seus fundamentos estava contido na previsão legal de natureza processual, que admite estes recursos para o Conseil d’Etat.

Por seu turno a CPAM de Colmar queixou-se criminalmente contra os Queixosos.  O juiz de instrução criminal afastou liminarmente qualquer responsabilidade criminal dos empregados, mas entendeu ser de julgar os queixosos pelo juízo correcional, por burla e por exercício ilícito da profissão de eletrorradiologia médica, por terem delegado nos seus empregados, sem formação certificada, a prática dos exames radiológicos. O juízo correcional de Colmar (um juízo hoje inexistente no regime processual penal português) absolveu os arguidos da burla em torno da faturação dupla, mas condenou-os por burla no tocante ao desrespeito de Percurso médico coordenado e pelo exercício por pessoas não autorizadas da profissão de manipulador de eletrorradiologia. Condenou cada um dos Queixosos em pena suspensa de 4 meses de prisão e no pagamento de multa no valor de 25.000€. Os queixosos recorreram para a Segunda instância criminal, também sedeada em Colmar, a qual manteve o decidido em relação ao desrespeito do Percurso médico coordenado, mas modificou a sentença no segmento relativo à burla em torno da faturação dupla, por esta parte da decisão judicial não estar corretamente fundamentada, julgando os Queixosos culpados também nesta sede, e condenou-os em pena de 18 meses de prisão, a qual foi suspensa, manteve a multa de 25.000€ e condenou-os na inibição do exercício da atividade profissional por um ano. No quadro das suas competências de adjudicação cumulativa da matéria cível, condenou os Queixosos no pagamento de 674 184,75€ pelo dano moral e em 8000€ a título de custas de parte, aos assistentes no processo penal, as CPAM do Alto e do Baixo Reno.  Os Queixosos recorreram à Seção criminal da Cour de Cassation, a qual rejeitou o recurso por improcedente. Da fundamentação desta sentença constava a observação de que não fora desconhecida, pelas jurisdições, a proibição do cúmulo das condenações e das penas (ne bis in idem) pela mesma infração, o qual se limita às condenações e às penas decididas em processo penal, não tendo o processo disciplinar junto da Ordem dos Médicos natureza penal.

Os Queixosos queixaram-se ao TEDH da violação do seu direito a não serem julgados e punidos duas vezes pela mesma infração, constante do artigo  4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH. O TEDH apensou as queixas dos dois médicos e observou que a França fizera uma Reserva ao título do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH.  Dispensou o exame da aplicabilidade desta reserva face às circunstâncias do caso, à luz das conclusões que veio a retirar com apoio na jurisprudência de referência proferida no caso Durand c. França, 2012.

Para o efeito da integração e aplicação do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 às circunstâncias deste caso, o TEDH qualificou a Sentença proferida pelo juízo correcional do Tribunal de Colmar como tendo natureza penal e colocou a questão de saber se o processo conduzido perante a Ordem dos Médicos, e decidido pelos seus órgãos competentes teria natureza penal. Esta questão foi formulada, tendo em conta que o artigo 4.º do Protocolo n.º 7 proíbe expressamente a duplicação de julgamentos e de condenações em matéria penal. A jurisprudência basilar de referência é aqui a resultante do muito conhecido Acórdão proferido no caso Engel c. Países-Baixos, 1976, o qual define a noção de acusação em matéria penal para o efeito da integração e interpretação desta cláusula geral no artigo 6.º § 1 da CEDH, sendo a noção que a integra e lhe permite a determinação do conteúdo em sede de interpretação, a que é relevante para a integração e interpretação do segmento que lhe corresponde na letra do artigo 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH. Embora possa suceder que um processo disciplinar, pela sua gravidade e consequências, assuma, em casos excecionais, a natureza jurídica, para o efeito da aplicação da CEDH, de um processo penal, um processo disciplinar não é, geralmente, um processo de natureza penal. Assim sucede com o processo disciplinar aplicável aos médicos pela violação das disposições do Código da Segurança Social e suas derivadas (o caso dos autos), como o decidiu o TEDH, na queixa Quendeno c. França, 2001. Segundo os critérios da jurisprudência Engel, os Queixosos não foram arguidos de uma infração penal segundo o direito francês, no quadro do processo disciplinar que lhes moveu a Ordem dos Médicos. Para o TEDH, a noção mesma de infração, constante das disposições do Código da Segurança Social e derivadas aplicadas, não tem natureza penal. Por uma parte, não se dirige à população como um todo; por outro lado, não tem as finalidades de prevenção geral e especial das penas, mas destina-se a proteger a honra e a reputação dos profissionais de medicina no seu conjunto ao não permitir desvios de alguns destes profissionais, bem como a manter a confiança do público nestes profissionais. Enfim, no tocante à sua severidade, as penas resultantes do direito da Segurança Social aplicável, vão da advertência à inibição temporária do exercício da profissão, com eventual reembolso do enriquecimento sem causa. As primeiras relevam por natureza do direito disciplinar. O reembolso corresponde ao direito à repetição do indevido.

Por estas razões, não se verificou a violação por parte da França, do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH.  Esta Decisão do TEDH não reveste a natureza de um Acórdão deste Tribunal porque a queixa foi rejeitada pelos fundamentos expostos no plano da admissibilidade.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos