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TEDH, 5ª Secção, Hirtu e outros c. França, Acórdão de 14 de maio de 2020

20 maio 2020

CEDH, Artigos, 3.º Proibição da tortura e tratamentos desumanos, cruéis ou degradantes. Art. 8.º §1. Direito à vida privada e familiar.  Art.º 13.º Direito a um recurso efetivo. 3.º Não violação, 8.º e 8.º+13.º violação. Despejos e expulsões de migrantes de etnia cigana de terrenos por estes ocupados. Courneuve, região de Paris, França.

Sete cidadãos romenos queixaram-se contra a França, ao TEDH, pela violação dos artigos 3.º (proibição da tortura e tratamentos desumanos, cruéis ou degradantes), 8.º (direito à vida privada e familiar) e 13.º (em relação com os precedentes, direito a um recurso efetivo das violações) em razão da sua expulsão do acampamento em que estavam instalados.  Os queixosos são de etnia cigana, tendo sido representados pelo European Roma Rights Centre (ERRC).

Viveram em França por longos períodos (nalguns casos superiores a 10 anos) e eram titulares de autorizações de residência para cidadãos da EU, válidos por 10 anos. Um anterior acampamento fora desmantelado pelas autoridades e, por esta razão, os queixosos, que faziam parte de um grupo de 43 caravanas e cerca de 141 pessoas, das quais cerca de 50 crianças, instalaram-se num terreno municipal em Courneuve, perto de Paris.

Dois destes queixosos tinham-se candidatado a alojamento social, junto dos municípios territorialmente competentes, pedidos que permaneceram sem efeito.

Em 29/03/2013, um despacho do Governador Civil (Préfet) de Seine-Saint Denis, notificou as pessoas no acampamento da sua decisão de expulsão deste local, devendo a intimação ser cumprida no prazo de 48 horas, sob pena de evacuação forçada. O despacho fundamentava-se em que o terreno não dispunha de água potável canalizada, nem de sistema de esgoto, e era, por isso, perigoso para a saúde pública. Além do perigo para os acampados existia perigo para os vizinhos, por existir um bairro residencial e uma escola na vizinhança.

Hirtu foi o único a reclamar do Despacho (os outros não o puderam acompanhar pela brevidade do tempo que mediou entre a notificação e execução desta), sustentando que o Despacho não lhe era aplicável, pois, sendo a sua caravana insuscetível de se deslocar, ele não podia ser considerado um “viandante” (gens du voyage) para o efeito deste Despacho. Alegava a violação do art.º 8.º da CEDH e do seu direito à habitação. O tribunal administrativo de Montreuil, acionado com esta reclamação entendeu que a oposição ao despacho do Governador Civil não era de admitir pois o reclamante não fazia a prova de uma morada sedentária própria, tendo utilizado a morada de terceiro, um residente na localidade, que ajudou Hirtu no seu propósito.  Este recorreu ao tribunal de segunda instância administrativa de Versailles, o qual anulou o julgamento do tribunal de Montreuil, pois a qualidade de ocupante não titulado de Hirtu não fora afastada e este possuía, assim, legitimidade processual.  Apesar deste ponto, o tribunal de segunda instância de Versailles rejeitou a oposição de Hirtu ao despejo, por improcedente, pois a ocupação não era titulada e a caravana de Hirtu podia adquirir mobilidade, se for colocada num veículo trator, como sucede em França nas comunidades de viandantes. O Conseil d’Etat, a última instância administrativa, rejeitou o pedido de apoio judiciário de Hirtu para recorrer a esta instância e rejeitou o recurso que Hirtu apresentou entretanto, por não existir nenhum fundamento sério de revogação do acórdão da segunda instância administrativa de Versailles.

Outros ocupantes do terreno de Courneuve pediram uma providência cautelar ao juiz dos référés (o juiz destas providências) junto do tribunal administrativo. Avançavam que o perigo na demora era condição preenchida, que o Despacho do Governador Civil violava os art.ºs 3.º e 8.º da CEDH, e que ofendia vários dos seus direitos fundamentais, entre os quais o direito à vida privada e familiar, em particular na vertente do melhor interesse da criança, pois existiam crianças no acampamento. O Provedor de Justiça (le Défenseur des Droits) interveio no procedimento cautelar na qualidade de amicus curiae. Opôs ao Despacho de expulsão os textos internacionais pertinentes, entre os quais a Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança, e concluiu que a execução de Despacho de expulsão devia ser suspensa, para permitir aos ocupantes encontrarem outro local de acampamento e saírem em condições decentes. Era importante, nomeadamente, assegurar a continuação, sem perturbações, da escolaridade das crianças.  O juiz das providências cautelares (le juge des référés), rejeitou, apesar destes argumentos, estes pedidos e estas observações. Os requerentes da providencia ainda procuraram acionar o Conseil d’Etat, mas acabaram por desistir.

Pediram ao TEDH a aplicação de uma medida provisória, nos termos do art.º 39.º do Regulamento do Tribunal, de suspensão do despejo a proferir por este tribunal, sob a condição da apresentação a seguir da queixa. O representante do ERRC informou que no lapso de tempo em que os queixosos pediram a aplicação da medida provisória pelo TEDH, os viandantes foram visitados pela polícia e saíram por vontade própria tendo-se instalado um pouco mais longe. Na manhã seguinte, a polícia acompanhada por cães, invadiu os terrenos da nova instalação temporária dos viandantes e forçou-os a fugir, tendo nomeadamente procedido à apreensão da maior parte das caravanas, deixando os viandantes temporariamente sem abrigo. Apenas uma família conseguiu manter a sua caravana.

Apesar das diligências da parte da Sra. Diretora da Escola onde as crianças seguiam a sua escolaridade, não foi concedido aos viandantes qualquer alojamento temporário. Nesta conformidade, o pedido de medidas provisórias ficou entretanto sem objeto, o TEDH recebeu a queixa e informou o Governo francês. Alguns viandantes regressaram para a Roménia de onde não voltaram mais. Alguns ocuparam com as respetivas caravanas (entretanto devolvidas) o acampamento dos Coquetiers num terreno municipal próximo. Uma família mereceu um alojamento social que aceitou, uma outra família que fora para a Roménia, acabou por regressar a França. Em 2014 foi decidida a expulsão dos viandantes dos Coquetiers, tendo sido dirigido ao TEDH um novo pedido de medidas provisórias. O Governo, informado pelo TEDH, assumiu perante este  que não procederia à expulsão na pendência da presente queixa e que se a expulsão viesse a ter lugar, os viandantes seriam protegidos, segundo as disposições sociais do direito francês. O juiz único de admissibilidade, em permanência, no TEDH arquivou esta segunda queixa face ao compromisso do Governo.

Examinando a queixa (relativa à primeira expulsão do terreno da Courneuve) o TEDH arquivou-a quanto à família que regressou definitivamente à Roménia, por esta não ter mantido o contacto com o representante legal para o efeito da queixa, nos termos da CEDH. Examinou a exceção de não admissibilidade oposta pelo Governo, a qual invocava a pendência do processo diante do tribunal administrativo de 2.ª instância de Versailles. O TEDH observou que este proferiu, entretanto, a sua decisão e rejeitou a exceção de inadmissibilidade do Governo. Debruçando-se sobre a violação alegada do artigo 3.º da CEDH, o TEDH admitiu este segmento da queixa e recordou que o direito a não sofrer maus tratos é um valor essencial da CEDH, mas que, para que a proteção convencional possa assumir relevância, a violação deste preceito deve atingir um mínimo de gravidade. Apesar da violência da expulsão e do seu contexto (em particular o facto de ter ocorrido de forma particularmente intimidatória na pendência da decisão, pelo TEDH, de uma medida provisória), o TEDH entendeu que as autoridades teriam dado previsibilidade aos viandantes quanto à realização do despejo (48 horas entre a notificação e a execução) e vieram a realojar alguns dos viandantes, não tendo o Acórdão do TEDH registado a violação do artigo 3º CEDH.

Examinando a violação alegada do artigo 8.º da CEDH, o TEDH admitiu este segmento de queixa e definiu a noção de domicílio como a de um lugar de vida que não tem de corresponder aos critérios do direito interno. Socorrendo-se da sua jurisprudência, observou que os viandantes ocupavam o terreno de Courneuve havia menos de 6 meses e por isso não se tinha consolidado na sua esfera jurídica, para o efeito da Convenção, a noção de domicílio. Não podiam, assim, evocar a violação do domicílio, apesar de terem sido temporariamente apreendidas as caravanas onde viviam e de terem ficado temporariamente sem abrigo. Pelo que apenas ficou ao TEDH o exame de um núcleo mais restrito da vida privada e familiar. Houve, segundo o TEDH, uma ingerência das autoridades na vida privada e familiar dos viandantes, sendo a primeira questão a merecer resposta, a de saber se a medida estava prevista na lei. Apesar da posição dos queixosos, entendeu que a ingerência estivera prevista na lei que foi aplicada ao despejo. A indagação seguinte era relativa ao fim legítimo da ingerência. O TEDH aceitou que o fim de proteção da saúde pública avaliado pelas autoridades era um fim legítimo. Havia, ainda, que justificar a necessidade da ingerência. O TEDH procedeu a uma distinção interessante entre a noção de “expulsão” e a noção de “modalidades de expulsão”. Para o TEDH não há dúvidas que o Governo tinha legitimidade para expulsar à luz do fim legítimo da medida, da sua previsão legal, e do facto de a ocupação do terreno não ter ainda 6 meses: os viandantes não tinham constituído, ainda, um domicílio relevante para o efeito da aplicação da CEDH. Mas quanto às “modalidades de expulsão”, esta não foi precedida de decisão judicial, tendo operado mediante decisão administrativa. Foi onerada por um prazo de notificação extremamente curto, as caravanas foram apreendidas com exceção de uma, deixando, ainda que temporariamente, as famílias sem abrigo, a expulsão determinou a interrupção do ano letivo escolar das crianças. O que significa que as autoridades não ponderaram as consequências do despejo do terreno. Como, por virtude de o acto de expulsão ter sido um acto administrativo, não foi possível um exame judicial ex-ante da proporcionalidade da medida, o qual teve de ser feito depois de esta estar já consumada. Além disso, é jurisprudência do TEDH o dever ter-se em conta a vulnerabilidade da minoria cigana na tomada de decisões que a afetam. Esta tomada em consideração também não teve lugar. Verificou-se, assim, a violação do art.º 8.º § 1 da CEDH, direito à vida privada e familiar dos queixosos.

Quanto à violação do art.º 13.º em combinação com os artigos 3.º e 8.º, apenas podia existir em combinação com o artigo 8.º, pois a violação não foi verificada quanto ao 3.º (o artigo 13.º, direito a um recurso efetivo, bem como o art.º 14.º da Convenção, proibição da discriminação devem operar em combinação com um outro artigo de substância da CEDH que tenha sido violado). Após ter admitido este segmento da queixa, o TEDH observou que, apesar dos queixosos terem acionado os recursos legais correspondentes a esta disposição, estes permaneceram inoperantes, tendo-se registado a violação do art.º 13.º da CEDH, combinado com o art.º 8.º da CEDH.

Os queixosos ainda invocaram outras violações como a do direito de propriedade sobre as caravanas em relação à sua apreensão temporária, invocações a que o TEDH não pôde atender por não terem sido esgotadas perante as jurisdições nacionais.

O Acórdão foi adotado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos