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TEDH, 5ª Secção, Ismayilova c. Azerbaijão, Acórdão de 10 de janeiro de 2019

23 jan 2019

CEDH, Artigo 8º Par. 1 Direito à vida privada e familiar, Art.º 10.º, direito à liberdade de expressão. Jornalista de investigação reconhecida internacionalmente que investigou sobre as práticas de políticos no poder e as suas famílias. Sanções no domínio da vida privada com intrusão de vigilância não legítima no domicílio. Publicação de conteúdos de natureza sexual, de natureza a influenciar a jornalista. Prática de atividades suscetíveis de dissuadirem outros autores de exercerem a sua liberdade de expressão. Duas violações do art.º 8.º CEDH, e uma violação do artigo 10.º CEDH.

Uma cidadã do Azerbaijão, Ismayilova, jornalista de reconhecido mérito internacional, levou a cabo uma investigação em 2010 e em 2011 sobre a vida do presidente do Azerbaijão, e das suas filhas, tendo apurado ligações ao mundo das empresas. Nomeadamente, obtiveram licenças, com demasiada facilidade para uma companhia de mineração que se dedicava à prospeção no país; tinham investimentos na República Checa e contas na titularidade de sociedades off-shore, domiciliadas em paraísos fiscais.

Na sequência da publicação destes artigos, foi alvo de ameaças e, um dia, recebeu por correio de Moscovo, um vídeo mostrando-a em relações sexuais com o namorado, em casa, acompanhado da mensagem "Bruxa abstém-te do que fazes, ou serás castigada”. O vídeo foi entretanto enviado a jornais da oposição de grande tiragem que não o publicaram e acabou por constar de várias páginas na internet.

Ismayilova queixou-se ao Ministério Público de Baku, o qual a informou de que tudo isto era chantagem em razão da sua atividade, e iniciou uma investigação criminal. Entretanto o debate em seu redor aumentou, com pessoas a favor e contra, e alguns artigos de opinião foram publicados em jornais, criticando-a.

Após a abertura da investigação criminal, a Requerente veio a descobrir, com o auxílio de amigos, que a sua casa e o seu quarto estavam cheios de câmaras. Existia uma linha de telefone duplicada e cabos de fibra ótica, que Ismayilova nunca instalara em casa, asseguravam a transmissão dos conteúdos da sua vida privada. Este trabalho fora efetuado por um funcionário da Baktelekom, o qual não veio a ser interrogado e cujo próprio reconhecimento dos factos não foi considerado. Ismayilova pediu a realização de perícias ao seu apartamento, o qual foi visitado, sem quaisquer comentários pelo Ministério Público. Sabe-se que foram ordenadas perícias aos vários suportes, vídeo e áudio, mas não ficou registo destas perícias no processo. 

Ismayilova queixou-se então da inefetividade da investigação do MP e publicou uma dura crítica na imprensa. Queixou-se à Procuradoria-geral da República da inércia do Ministério Público de Baku. A PGR não reagiu. Pediu informações sobre o decurso da investigação e a fase em que se encontrava, tendo sido informado que esta seguia o seu curso… Ismayilova acionou então o mecanismo da supervisão do processo, um instituto processual existente ainda hoje nalguns países da antiga URSS, tendo este seu novo pedido sido rejeitado.

Entretanto, o Ministério Público sentiu-se incomodado com as declarações de Ismayilova e publicou um relatório de investigação, no qual concluía que a queixosa e o seu advogado tinham publicado notícias de conteúdo falso sobre o processo, com a finalidade de criar, em torno deste, “uma opinião negativa”. Segundo o relatório, as autoridades teriam respondido a todos os pedidos O relatório ainda continha informações sobre o seu apartamento, e divulgava vários dados pessoais da Queixosa. Segundo o relatório teriam sido interrogadas muitas testemunhas, a Queixosa teria faltado às inquirições e o relatório concluía que a sua publicação era necessária e que se justificava, uma vez que a Requerente se queixava da inércia do MP.

Ismayilova procurou reagir, intentando junto da jurisdição cível (a título informativo, se esta ação fosse proposta em Portugal, seria competente o Tribunal Administrativo), uma ação de responsabilidade extracontratual do Estado. Com efeito, a publicação do relatório do MP teria causado grave prejuízo à sua vida profissional e pessoal, e ter-lhe ia causado um forte dano moral. Nomeadamente, o relatório constituía uma interferência negativa na sua vida privada. O tribunal rejeitou a ação. Entendeu que o relatório do MP era de conteúdo genérico e que, por isso, não ofendia a sua vida privada.

No fim, Ismayilova acabou por ser condenada em sete anos e meio de prisão por ter incitado um colega a suicidar-se. A pena acabou por ser reduzida a três anos e meio e Ismayilova acabou por ser colocada em liberdade condicional.

O TEDH considerou no seu exame do caso, a Recomendação CM/Rec(2016)4 sobre a proteção e a segurança dos jornalistas, a qual contém em anexo diretrizes detalhadas. Também consultou os Relatórios sobre o Azerbaijão do Comissário do CoE para os Direitos Humanos, no qual se conclui pela existência de práticas de intimidação dos jornalistas. ONG’s internacionais, terceiros intervenientes no processo de queixa junto do TEDH, revelaram uma lista de jornalistas vítimas de ataques à sua liberdade de expressão no Azerbaijão.

Examinando a questão na perspetiva do Direito, o TEDH apensou as duas queixas de Ismayilova (uma de 2013 e outra de 2014) e repartiu a análise do artigo 8.º (excluindo o exame do artigo 13.º que também tinha sido invocado pela queixosa) entre a questão da filmagem do vídeo em casa de Ismayilova e da sua divulgação, e os efeitos da publicação do relatório do MP na vida privada e familiar de Ismayilova.

Sobre a primeira questão (captação e publicação do vídeo/áudio), o TEDH admitiu de imediato a aplicabilidade do artigo 8.º por se tratar de uma jornalista. Tratando-se de uma intromissão na vida privada desta, uma vez que não se sabe quem são os autores destes vídeo, nem, ao certo se são agentes do Estado, na impossibilidade de acusar diretamente o Estado, é possível destacar obrigações positivas decorrentes do artigo 8.º, a cargo do Estado neste tipo de casos:

- a investigação deve ser efetiva,

- há que verificar se a ameaça está em relação com a atividade profissional da jornalista,

- não houve apresentação de documentos de suporte pelo Governo, sendo que estes eram de apresentação obrigatória,

- o depoimento do funcionário da Baktelekom não foi suficientemente considerado pelas autoridades, ora havia que conceder a maior importância a um depoimento desta natureza,

- não se procurou saber quem foi a entidade ou a pessoa que enviou a correspondência desde Moscovo, e existia também aqui o imperativo de o fazer,

- não houve qualquer investigação às várias ligações da internet que publicaram o vídeo, e também aqui era essencial proceder a esta investigação.

Por estas razões, verificou-se a violação do artigo 8.º da CEDH, quanto ao fundo, no tocante ao vídeo/gravação.

Quanto à publicação do Relatório do MP sobre a investigação por este conduzida, o TEDH entendeu, depois de admitir também este segmento da queixa, que o conceito de vida privada é amplo e que por isso também pode merecer proteção no contexto da publicação de um relatório de atividade, pelas autoridades. Aqui, a descrição da morada, com dados além da morada exata, de natureza particular, da jornalista, nomeadamente o seu relacionamento com o namorado, as suas várias atividades profissionais e extraprofissionais, eram de natureza a violar o direito à vida privada da Requerente.

Com efeito, esta publicação interferiu com a vida privada de Ismayilova, a qual demonstrou que a medida não tinha cobertura legal, nem na Constituição nacional nem em qualquer texto legislativo. O Governo não foi capaz de justificar a necessidade da publicação deste relatório de investigação. Nem o fim legítimo, nem a necessidade da medida. A queixosa de resto, nem se queixou, como podia ter feito segundo o TEDH, da publicação deste relatório, mas tão-somente da abundância de dados sobre a sua vida privada. Também aqui se verificou a violação do artigo 8.º da CEDH.

O TEDH examinou a seguir o outro fundamento da queixa, a violação alegada do direito à liberdade de expressão de Ismayilova.

Realçou para o efeito, o papel fundamental da liberdade de expressão numa sociedade democrática; que o intervir nesta liberdade pode ter um efeito dissuasor no exercício da mesma, por outras pessoas, no futuro. Entretanto, o TEDH tomou em conta as fontes referidas acima, dos relatórios do Comissário do CoE para os Direitos humanos e da lista de jornalistas vítimas de ataques à sua liberdade de expressão no Azerbaijão. Considerou ainda que a jornalista tem o seu mérito profissional reconhecido, nomeadamente no plano internacional, onde lhe foram atribuídos vários prémios de investigação; a jornalista conseguiu ainda demonstrar a existência de receios fundados em razão da sua atividade de jornalista, fazendo uma ligação prima-facie que o Governo não conseguiu desfazer, entre o que lhe aconteceu e a sua atividade profissional.

Nesta conformidade, as ameaças e as publicações de que foi vítima deviam ter sido encaradas pelo Governo como estando em relação com a sua profissão, e ela era merecedora de proteção das autoridades. O Governo falhou, assim, na sua obrigação positiva de proteger os jornalistas, tendo-se verificado a violação do artigo 10.º da CEDH.

Enfim, Ismayilova também se queixou no plano do processo de responsabilidade civil extracontratual do Estado, de ter sofrido um processo civil iníquo, no qual não se atendeu ao pedido nem à causa de pedir e em que as decisões judiciais careceram de qualquer fundamento. O TEDH, à luz das conclusões anteriores, escolheu não considerar este ponto da queixa.

O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem votos concordantes ou concordantes parciais. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos