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TEDH, 5ª Secção, Moustahi c. França, Acórdão de 25 de junho de 2020

7 jul 2020

CEDH, Artigo 3.º§1, Tortura e tratamentos cruéis desumanos e degradantes, art.º 5.º § 1f, proibição da expulsão não justificada de migrantes, art.º 5.º § 1 direito ao recurso da detenção. Art.º 8.º § 1 direito à vida privada e familiar, na vertente da reunificação familiar, artigo 4.º do protocolo 4.º, proibição da expulsão coletiva de estrangeiros. Artigo 13.º em relação com todas estas disposições, direito a um recurso efetivo. Violações várias. Pai migrante regular que procura acolher filhos migrantes irregulares de menor idade. Expulsão não justificada dos menores.

Três cidadãos das Comoras, Mohamed Moustahi e os seus dois filhos, queixaram-se ao TEDH, contra a França, em 20 de janeiro de 2014. A queixa foi apresentada pelo pai, em nome dos seus dois filhos, com idades de 5 e de 3 anos no tempo dos factos (quando foram expulsos) e em nome do próprio pai. Queixaram-se das condições em que as crianças, as quais foram intercetadas pelas autoridades aquando da sua entrada ilegal no território de Mayotte e foram colocadas em retenção administrativa, juntamente com adultos que não conheciam. Foram associadas, de modo arbitrário, a um destes e foram reenviadas, de modo expedito, para as Comoras, sem qualquer exame individualizado e pormenorizado da sua situação (art.º 3.º). Além do artigo 3.º, os outros fundamentos de queixa radicaram na retenção administrativa (art.º 5.º § 1f, detenção injustificada de migrantes), na ausência de recurso da detenção (art.º 5.º § 4), na expulsão coletiva (Protocolo n.º 4 à CEDH, art.º 4.º), na violação do direito à vida privada e familiar na vertente da reunificação familiar (das crianças com o pai, art.º 8.º § 1) e na indisponibilidade de um recurso efetivo (art.º 13.º CEDH + 3.º e 8.º e CEDHP4, art.º 4.º).

O pai entrara em Mayotte, em 1994, e aí reside desde então, na condição de regular, mediante uma autorização de residência temporária várias vezes renovada. Os filhos nasceram da união do pai com uma mulher também das Comoras, a qual se encontrava em Mayotte na condição de irregular. Em 2011, a mãe e os filhos foram expulsos. A mãe confiou os filhos à avó paterna e regressou a Mayotte. Em novembro de 2013 os filhos menores viajaram, sem acompanhamento, a bordo de uma jangada designada por Kwassa na região, com o fim de se reunirem com o pai, em Mayotte, a pedido deste. 17 pessoas estavam a bordo. Foram todas interpeladas, no mar, pelas autoridades francesas, na manhã do dia 14 de novembro de 2013. As 9:00 desse mesmo dia foram desembarcados na praia onde foi feito um controlo de identidade. Foram levados para o hospital de Dzaoudzi, para um controlo sanitário, e foram reconduzidas à fronteira, no mesmo dia, tendo sido retidas durante 1 hora e 45 minutos nas instituições da polícia de Pamandzi. As crianças foram confiadas a um passageiro da embarcação que declarara que as trouxera. O pai foi avisado e deslocou-se à polícia de Pamandzi mas não foi autorizado a contactá-las. Recorreu para o Governador Civil (Préfet) pedindo a suspensão da decisão de expulsão. Na mesma tarde acionou o tribunal administrativo (na pessoa do juiz das medidas urgentes/ procedimentos cautelares, le juge des référés), no sentido de suspender a expulsão. Fez valer as condições deficientes da retenção e a associação dos filhos a um desconhecido. As crianças foram colocadas num ferry e reenviadas às Comoras. Este navio transportava 58 adultos, 43 crianças e 2 bebés. No final do dia as crianças foram desembarcadas no porto de Mutsamudu e foram hospedadas nesse porto, por alguns dias, até que a avó as viesse recolher.  Dois dias após o expirar do prazo para a emissão de decisões urgentes o juiz das medidas urgentes rejeitou o pedido do pai, reconhecendo que, no momento da emissão da sentença as crianças já estariam com a avó, a qual cuidava delas há alguns anos, que elas conheciam a avó e que esta era uma pessoa com quem elas se davam bem.

Em dezembro de 2013, o queixoso recorreu do despacho do juiz das medidas urgentes para o Conseil d’Etat que rejeitou o seu pedido. Em janeiro de 2014 o queixoso pediu a reunificação familiar das crianças com o pai às autoridades francesas, pedido que foi concedido. As crianças obtiveram os seus vistos e o pai e os filhos vivem juntos, em Mayotte, desde setembro de 2014.

O TEDH referiu materiais de direito internacional público para informar a sua decisão: a jurisprudência (sua) de referência é o caso AB e outros c. França. Documentos dos direitos humanos: a Recomendação CM/REC(2019) 11 aos Estados parte sobre o regime de acompanhamento e tutela das crianças não acompanhadas e os menores separados em contexto de emigração (de 11/09/2019). Segundo este documento as crianças são os migrantes mais vulneráveis.

Debruçando-se sobre o Direito, o TEDH fez a seguinte observação preliminar: existe uma particularidade de Mayotte, o ser território ultramarino sob jurisdição da França, que significa que os Estados têm o direito de controlar os estrangeiros e bem assim, a entrada destes em território nacional.

Debruçou-se, a seguir, sobre a violação alegada do art.º 3.º da CEDH, na pessoa dos 2 filhos menores (expulsão contrária ao art.º 3.º da CEDH). O Governo opôs uma exceção, segundo a qual, como os meninos acabaram por se reunir com o pai, em Mayotte, a questão dos maus tratos teria sido superada. Neste sentido teriam perdido a qualidade de vítimas, no sentido do art.º 3.º O TEDH entendeu que a emissão dos vistos para as crianças, posteriormente alcançada, e a reunificação familiar entretanto ocorrida, não sanava por isso as violações invocadas do art.º 3.º

No tocante ao mérito foram 3.ºs intervenientes Le Gisti, La Cimade e a LDH, bem como a Commission Nationale Consultative des Droits de l’Homme. O Défenseur des droits afirmou que era conhecido que a retenção administrativa na esquadra de Padmanzi oferecia condições indignas de detenção.

Sobre este tema o TEDH elencou alguns princípios gerais: a proibição do art.º 3.º não admite exceções; a retenção administrativa de crianças coloca graves e especiais problemas, a criança é um estrangeiro particularmente vulnerável, há violação sempre que inexistam medidas de enquadramento e de garantia em caso de refoulement contestado.  No caso, as partes opõem-se sobre a questão de saber se as crianças estavam acompanhadas por um desconhecido ou uma pessoa delas conhecida.  O facto de um Estado confiar crianças a um adulto no quadro da gestão dos fluxos migratórios é uma decisão politicamente grave. Os terceiros intervenientes foram concordantes em denunciar a prática administrativa recorrente em Mayotte de associar menores a desconhecidos no contexto do refoulement. Nada sustenta a tese – que nem sequer é sustentada pelo Governo – segundo a qual os menores conheciam o acompanhante de anteriores episódios da sua vida, anteriores à viagem. Não podia caber ao maior acompanhante contestar a decisão das autoridades, de confiança dos menores. A associação das crianças a um desconhecido foi arbitrária, segundo o TEDH.  Quanto às condições de retenção dos menores, estes tinham no momento dos factos (a sua entrada irregular em Mayotte e a sua interceção) 3 e 5 anos. Eram estrangeiros irregulares em país desconhecido. Não foram acompanhados por adultos, nem na viagem, nem por decisão das autoridades. Isto é, segundo o TEDH, suficiente para compreender que foram submetidas a um stress fortíssimo. Quanto às condições do reenvio dos menores, além de terem sido confiados a um desconhecido e de terem passado por um centro de retenção de condições deficientes, os menores não foram separados dos adultos, e chegaram de noite às Comoras, sem que ninguém esperasse por eles. Por estas razões verificou-se a violação do artigo 3.º da CEDH. O TEDH observou, a seguir, a violação do art.º 3.º na pessoa do pai. Estabeleceu os princípios gerais segundo os quais um pai pode ser vítima dos maus tratos infligidos às crianças, por ser pai e este sofrimento o colocar num profundo desespero (désarroi). O modo como as autoridades reagiram aos pedidos do pai, nestas circunstâncias, permitem avaliar a intensidade da violação se esta se verificar. No caso sub judice, apesar das autoridades dizerem que a relação pai-filhos não era intensa, embora no ano seguinte tivessem emitido vistos para a reunificação familiar de pai e filhos, precisamente por esta contradição, não se sustenta esta tese. Mas para o TEDH apesar deste argumento a retenção de 1:45’ foi de duração relativamente curta. O pai não teria grande motivo de preocupação, pois sabia que a sua mãe, avó dos meninos se iria reencontrar com estes. Por estas razões, não se verificou a violação do art.º 3.º na pessoa do pai, uma conclusão algo contraditória na medida em que se pôde avaliar a intensidade do momento em que o pai está separado das crianças e estas estão detidas e se entende ser por aí possível medir o desespero do pai. Ainda que curta, eventualmente a passagem pelo desespero (sem dever deixar de contar com o facto de que era incerto naquele momento se as autoridades viriam a conceder posteriormente os vistos), o certo é que ele permite avaliar segundo o próprio TEDH o sofrimento. Contradictio in terminis.

O TEDH abordou, a seguir, a questão da privação irregular de liberdade de estrangeiros para fins de expulsão, a qual só é permitida pelo artigo 5.º §1 f se for regular. Admitiu a queixa. E ouviu os terceiros, entre os quais o Provedor de Justiça (Le Défenseur des Droits) que sustentou que a colocação de menores não acompanhados em retenção não se coaduna com o artigo 5.º § 1 da CEDH.  Estabeleceu o TEDH, a seguir, a lista de princípios gerais que regem esta matéria, a saber, a lista de fundamentos de privação de liberdade constante do artigo 5.º § 1 é exaustiva; os Estados podem controlar as entradas e saídas de estrangeiros do seu território. Uma privação de liberdade neste quadro deve ser feita segundo as vias legais dentro de um processo que responda às exigências de qualidade da lei. No caso, a colocação de menores em retenção foi privação de liberdade. As crianças deveriam ter sido reunidas com o pai e não foram, o que aumentou a gravidade da sua detenção. Por isto se verificou a violação do art.º 5.º § 1 da CEDH. O TEDH ocupou-se, a seguir, da questão do recurso da detenção (art.º 5.º § 4 da CEDH) na pessoa dos menores. Admitiu a queixa. Quanto ao mérito, estabeleceu previamente os princípios gerais da lawfulness, para regularidade e licitude que tem o mesmo sentido no artigo 5.º § 1 e no art.º 5.º §4. O detido tem o direito a provocar o controlo da legalidade da sua detenção pelas autoridades nacionais. No caso concreto, a própria lei francesa não admite a colocação de menores em retenção. As crianças ficaram, assim, num vazio legal que não lhes permitia questionar a detenção. Não houve nenhuma decisão das autoridades que referisse expressamente a situação dos menores e desse, assim, apoio a um controlo da detenção. O terceiro acompanhante não possuía autoridade legal para agir em seu nome. Foram, assim, privadas do direito de recorrer. Verificou-se, assim, a violação do artigo 5.º § 4 da CEDH. Seguiu para o TEDH a questão da violação do art.º 8.º da CEDH (direito à vida privada e familiar). As autoridades recusaram entregar os filhos ao pai quando este se apresentou, privando a todos (pai e filhos) da reunificação familiar. Admitiu este segmento da queixa. Quanto ao mérito elencou os seguintes princípios gerais. O artigo 8.º visa prevenir o indivíduo contra ingerências arbitrárias dos poderes públicos na sua vida privada. No caso, a existência de uma vida privada e familiar no sentido do Acórdão Marckx c. Bélgica (13.06.1979) não levanta dúvidas no caso. Fechar elementos da família em centro de retenção enquanto outros (o pai) ficam de fora é ingerência na vida privada e familiar (de todos, tanto dos que estão dentro quanto dos que estão fora). Tendo havido violação do direito à liberdade e segurança (art.º 5.º 1f) das crianças, houve uma ingerência não prevista na lei na vida privada e familiar dos requerentes. Não existia base legal para a situação das crianças e muito menos para a sua manutenção em retenção quando o pai as reclamava. Verificou-se, assim, a violação do artigo 8.º da CEDH. Quanto à violação do art.º 4.º do Protocolo n.º 4 à CEDH (proibição da expulsão coletiva de estrangeiros), o segmento de queixa foi admitido.  Quanto ao fundo, os terceiros intervenientes denunciaram que não existiu qualquer exame individual de qualquer um dos estrangeiros intercetados a bordo do Kwassa. O TEDH estabeleceu os seguintes princípios gerais. A expulsão coletiva é uma expulsão de vários estrangeiros, sem fundamento legal. Coletivo implica a existência de um grupo de pessoas, não tem de ser um grupo coeso, por exemplo em relação à etnia, basta serem vários não examinados individualmente. A proibição da expulsão coletiva tem o sentido de evitar que não seja feito o exame individual de cada situação pessoal. O TEDH foi chamado a pronunciar-se apenas sobre a expulsão de 2 menores. Os menores, segundo o direito francês não podem nunca ser objeto de uma medida individual de afastamento devendo ser sempre religados ao pai ou a um acompanhante (serão então expulsos por este ser expulso e juntamente com este). Se esta pessoa puder opor-se validamente à expulsão e o fizer não se verifica a expulsão coletiva, ainda que todos sejam expulsos, pois o seu caso, de cada um individualmente considerado, acabou por ser examinado. Não foi concedido aos menores qualquer exame da sua situação pessoal. Verificou-se, assim, a expulsão coletiva de estrangeiros em violação do art.º 4.º do Protocolo n.º 4 à CEDH.

A seguir o TEDH ocupou-se da violação dos vários preceitos em relação com o artigo 13.º. Sobre o art.º 3.º em relação com o artigo 13.º na pessoa das crianças, o TEDH admitiu as queixas e ouviu os terceiros intervenientes, para os quais não há prazo dentro do qual um estrangeiro não pode ser afastado pelo que pode sempre sê-lo, apesar da pendência de uma medida urgente, a qual não tem efeito suspensivo. Além disso certas figuras como o référé liberté suspensivo não oferece completas garantias e é de acionamento difícil pelo migrante. Para o TEDH, em termos de princípios gerais, o direito a um recurso efetivo, significa que este deve ser disponível e eficaz. Para que seja eficaz, segundo o próprio TEDH (recordando a sua já antiga [2011] jurisprudência Gebremehdin, embora num caso de asilo) o recurso deve ser suspensivo na situação dos autos. No caso, os queixosos tinham um argumento sustentável que lhe permitiu acionar o recurso, a necessidade de o recurso ser suspensivo neste caso está em relação com o dar a possibilidade ao tribunal administrativo de examinar o pedido sem ser privado dos queixosos entretanto expulsos. Chegado aqui e olhando para a situação tal como veio a decorrer, o TEDH operou uma inversão em meu entender: julgou não existir a violação do artigo 3.ºem relação com o art.º 13.º. Ora o certo é que o juiz administrativo foi privado dos queixosos para poder chegar ao fim do seu raciocínio. O que significa que o TEDH colocou o resultado do caso, o seu momento final, à frente dos pressupostos. Ora deveria ter mantido a análise dos pressupostos. Estes falhavam, havia a violação, de resto considerada no plano material. Porque não no plano do exercício do référé? Contradictio in terminis. Já quanto à articulação do direito a um recurso efetivo com a vida privada e familiar e com a proibição da expulsão coletiva de estrangeiros o TEDH assentou e bem na necessidade de o juiz administrativo dos référés poder dispor da presença dos queixosos/ requerentes para desenvolver o seu raciocínio, o que faz sentido. Mas o facto de, em circunstância igual, (artigo 3.º + 13.º) ter decidido em sentido diverso (da decisão quanto aos 8.º + 13 e 4.º CEDHP4+13), é uma desarticulação do discurso, mais uma contradictio in terminis pois não se entende a razão da inversão da conclusão em relação aos pressupostos quanto ao art.º 3.º + 13.º sendo que no outro caso (8.º + 13.º e CEDHP4 , 4.º +13.º) a sequência  está logicamente e substancialmente correta uma vez que os pressupostos precedem a conclusão. Ainda que exista a chamada ponderação das consequências não se vislumbra quais foram as consequências gravosas que o TEDH teve de ponderar para não considerar a violação do direito ao recurso efetivo no primeiro caso (3.º +13.º).

Isto deu aliás lugar ao voto dissidente parcial do juiz Grozev para quem não devia nunca ter sido concedida a violação do artigo 13.º em nenhum caso. Para este magistrado o recurso nunca deveria ser suspensivo. Coerentemente o juiz Grozev sistematizou a inversão pressupostos – consequência, afirmando que, afinal, na materialidade foi tudo pouco grave, a angústia do pai, a duração da retenção dos menores, o conforto com que foram expulsos, a sua reunificação subsequente com o pai, para que não se tenha afinal verificado nenhuma violação de coisa alguma. Curiosamente não é a posição do juiz Grozev que não se entende, pois ela é coerente com a linha de raciocínio expendida por este magistrado, mas a diferença de raciocínio em situações diferentes (a privação do juiz administrativo do objeto do pedido pelo desaparecimento, por expulsão, do sujeito da lide, que num caso não tem relevância, e nos dois outros conduz à violação). O que é preocupante não é tanto o caso concreto porque, com efeito, a história acaba bem. O problema vai ser no regresso, que se pode antever, do condicionamento, novamente, da eficácia suspensiva do recurso da expulsão, resolvido em 2011 e subsequente mantido desde o caso Gebremehdin c. França, que levou à consagração da eficácia suspensiva do recurso da expulsão do requerente de asilo em muitos países europeus, agora a vacilar, como a chama de uma vela exposta ao vento, pelas dúvidas e incertezas, pelas contradições que se vão possivelmente avolumar na jurisprudência por vir do TEDH.

Enfim, colocou-se a questão da indicação de medidas às autoridades no contexto do art.º 46.º da CEDH, as quais ficaram-se por uma simples indicação às autoridades de cumprirem com maior cuidado a CEDH.

Embora o acórdão seja relativamente longo e o seu raciocínio tenha a qualidade da argumentação conhecida do TEDH, o sabor que deixa na emoção do leitor é de uma algo amarga inquietude. O tempo não é mais de um amor incondicional ao que foi já a causa dos direitos humanos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos