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TEDH, 8 de Outubro de 2015. Acórdão de improcedência proferido no caso Sellal c. França; decisão de inadmissibilidade proferida no caso Benmouma c. França

26 out 2015

A questão do suicídio em detenção. Problemas do foro psiquiátrico, diligência exigível da parte das autoridades quando o sofrimento não é aparente, condições, por vezes deficientes, de detenção. Solidão extrema. CEDH, art.º 2º, substancial e processual, não violação.

Dois casos contra França, cuja solução foi dada pelo TEDH em 8 de Outubro, colocam o problema do suicídio levado a cabo em situação de detenção.

No primeiro, Sellal, preso em cumprimento de pena, foi colocado em liberdade condicional, sob a condição de trabalhar e de ter bom comportamento. A médica encarregada de o examinar, concluiu que o mesmo tinha uma grande fragilidade psicológica, relevando do foro psiquiátrico, e, por esse motivo, os deveres associados à sua liberdade condicional foram aliviados.

Sellal, no entanto, veio a revelar um comportamento agressivo e voltou a ser preso em estabelecimento penitenciário, por decisão judicial.  Refira-se que já no quadro de cumprimento de uma pena anterior, Sellal tinha sido colocado em estabelecimento psiquiátrico, mas as autoridades, fundando-se em pareceres médicos, tinham concluído que o mesmo estava em condições psiquiátricas de suportar a prisão.

Num quadro de violência e de alguma agressividade, que mesmo assim veio a acabar num comportamento de alguma paz, Sellal foi pedindo os seus medicamentos, os quais lhe foram sempre prestados. Entretanto, a administração penitenciária adotou uma medida geral de modificação do regime de visitas que determinou a redução das visitas dos familiares de Sellal. Finalmente, a sua namorada, de quem tinha um filho, separou-se dele, instaurando um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Neste quadro de vida, Sellal enforcou-se com um lençol que atou a uma grelha do radiador da cela.

A família queixou-se, veio a perder os processos judiciais e administrativos e neste quadro, interpelou o TEDH. Este relevou a existência de uma prática determinada pelo MJ, de preenchimento de uma “tabela anti-suicídio” com o objetivo de despistar possíveis casos deste perigo (o preenchimento desta tabela foi impugnado pela família de Sellal). No fim, o TEDH concluiu que não houve negligência da parte das autoridades na medida em que o suicídio não era  previsível, neste caso (dimensão substancial do direito à vida), e que o processo de averiguação da adequação do comportamento das autoridades (dimensão processual) foi regularmente conduzido.

O caso de Benmouma reporta-se  a uma situação de prisão preventiva. A polícia para deter Benmouma no seu local de trabalho, empregou cães pelo que este veio a manifestar o receio de perder o emprego. Foi detido de manhã, rejeitou o almoço, falou com a advogada, passeou todo o dia na cela. Pediu licença para fumar um cigarro, o que lhe foi permitido, regressou à cela, e pouco depois foi encontrado enforcado, vindo a entrar em coma e falecendo dois dias depois. A cela estava degradada. As paredes ostentavam buracos que permitiam fazer passar peças de tecido operando como cordas, a câmara de vídeo vigilância funcionava mal e existiam ângulos mortos, sem visão, portanto. Por este motivo, Benmouma conseguiu cortar tiras de pano do colchão que lhe serviram de corda, com a qual se enforcou.  Ouvidas as autoridades, foi patente a falta de meios orçamentais para colmatar as falhas dos imóveis para a Administração Pública.

A família queixou-se e constituiu-se assistente em processo penal. Acionou os vários meios de recurso e tudo perdeu. Queixou-se ao TEDH. Este, examinou o quadro jurisprudencial vigente em França, e verificou que existe um meio administrativo, a ação em responsabilidade extracontratual do Estado, em que os tribunais usam a noção de faute lourde para verificar as deficiências de funcionamento da administração. Havendo esta faute lourde, o Estado é condenado, não a havendo, improcede a ação. Ora a família de Benmouma não utilizou este meio, pelo que para o TEDH, que, para alguns países como a França, considera esta ação um meio de recurso efetivo e assim, exigível, não foram esgotados os meios judiciais à disposição dos requerentes, tornando a queixa inadmissível quanto à dimensão substancial do direito à vida (art.º 2º da CEDH). O TEDH, porém, considerou que as autoridades conduziram com zelo todo o conjunto de diligências posteriores ao óbito de Benmouma, pelo que não houve, aqui, violação do art.º 2º da CEDH (dimensão processual).

Note-se que nem sempre o TEDH aceita a ação de responsabilidade extracontratual do Estado como recurso efetivo, como o faz no caso da França.

Diante da extrema dificuldade em encontrar uma solução para estes casos, nelas avulta sobremaneira a extrema solidão de pessoas em circunstâncias extremas, nem sempre detetável pelas autoridades.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira