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TEDH, Grande Chambre, 23 de março de 2016, Blokhin c. Rússia

29 mar 2016

Menor hiperativo com dificuldades no foro neurológico. Situação de confiança ao avô. Comportamentos irregulares. Detenção e confissão em esquadra de polícia. Detenção para correção educativa num centro de instalação temporária de menores. Natureza penal da detenção. Tortura, privação de liberdade, dimensão penal desta privação. Ausência de direitos de defesa. O interesse superior da criança.

Blokhin, um jovem nascido em 1992, cuja confiança foi retirada aos pais por problemas de alcoolismo, vivendo com o seu avô, sofria de problemas de hiperatividade e de enurese. Na escola rapidamente optou por comportamentos menos corretos, tendo vivido um historial de curtos julgamentos, sem consequências de relevo, atendendo à sua inimputabilidade por ser menor. Apesar da companhia do avô, a sua situação degradou-se acabando por se tornar num menino que vivia na rua ou no centro local de informática durante o dia, regressando apenas à noite ao convívio do avô.

O ponto culminante da sua evolução para o que interessa a este caso, foi o dia em que, brincando com um menino vizinho, lhe extorquiu dinheiro diante da mãe deste, prática que vinha repetindo, tendo aquela alertado a polícia.

Blokhin foi preso e levado para a esquadra onde ficou confinado, por algum tempo, sem luz, acabando por assinar uma confissão cujo conteúdo contestou, juntamente com o avô, assim que foi colocado em liberdade. Por despacho judicial, num processo de juiz singular com natureza sumária, foi decidido o seu internamento num centro de colocação de jovens, com  fundamento na necessidade de uma “correção educativa”, por um período de trinta dias.

Blokhin veio a queixar-se de que, no centro,  de noite, a luz se mantinha acesa, e, apesar de o seu avô comprovadamente ter entregue certificados médicos atestando a sua hiperatividade e falta de concentração e os seus problemas de enurese, não lhe era permitido deixar as aulas, que eram ministradas, para urinar. Quando urinava, era submetido a humilhantes exercícios de limpeza da sala de aulas, em condições de alguma dureza para um menor. Depois de colocado em liberdade,  que teve de receber internamento hospitalar, durante um mês, afim de recuperar das lesões psíquicas sofridas nesta detenção. Entretanto, no mesmo ano de 2005, a guarda do menor foi retirada ao avô que a recuperou meses depois, em data não determinada.

O avô, por seu lado, recorreu de todas as decisões judiciais, e queixou-se perante as várias instâncias, recebendo sempre respostas de natureza processual e administrativa e nunca uma solução de substância. No domínio judicial, o processo que prosseguiu após o cumprimento de pena, conheceu anulações e devoluções para a  primeira instância, para nova decisão, muitas das quais sem intervenção, ou sequer conhecimento, do avô.  Foi concluído com um despacho de arquivamento proferido por uma alta instância judicial, uma vez que a pena já tinha sido cumprida, sem qualquer esforço de reparação por parte da justiça russa, sem qualquer consciência de que se estava perante o problema da posição de um menor, enquanto sujeito de deveres e de direitos processuais penais.

Após todas estas peripécias, a queixa chegou ao TEDH, que, reunido em seção, condenou a Rússia por violação do artigo 3.º (tortura), do artigo 5.º par. 1 (direito à liberdade e segurança) e do artigo 6.º, pars. 1 e 3 (direito a um processo equitativo e direitos de defesa). A Rússia apelou deste acórdão para a Grande Chambre que se pronunciou em 23 de Março passado. Voltando a examinar os vários pressupostos de admissibilidade, a Grande Chambre aceitou que o avô de Blokhin, tendo feito tudo aquilo que tinha em seu poder, acabou por se queixar dentro do prazo de seis meses que lhe facultava a CEDH. Examinando a queixa à luz da proibição da tortura (art.º 3.º) concentrou-se na confissão na esquadra, obtida muito prontamente, e logo a seguir contestada, bem como nas condições de detenção de Blokhin. No que toca à doença do menor, que foi claramente estabelecida, ficou provado que o menor precisou de um mês para se restabelecer, após a detenção. O Governo destruiu os registos relativos a Blokhin durante o período da detenção, mas ficou provado que o avô entregou ao centro toda a documentação necessária para atestar a doença de Blokhin. Aplicando as regras de prova prima facie e para além de toda a dúvida razoável, o TEDH esteve em condições de se socorrer da presunção de facto criada pela situação processual vigente: o avô fez prova da situação do menor, este teve necessidade de um tratamento hospitalar que durou um mês em internamento a seguir ao período de detenção, ele próprio de um mês, o Governo não logrou facultar uma prova contrária bastante, pelo que se verificou a violação do artigo 3.º da CEDH, proibição de tortura e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Sobre a questão do direito à liberdade e à segurança, o TEDH verificou que o menor foi preso durante um mês com fundamento na necessidade de medidas de correção educativa. Estas medidas tiveram, assim, um fundamento de natureza penal, o que a idade do menor vedava. Ao ser tratado como um adulto, com tratamento penal embora colocado numa instituição para jovens, o direito à liberdade e segurança de Blokhin foi violado (art.º 5.º par. 1 da CEDH).

Por fim, a relevância dos direitos que o artigo 6.º confere às pessoas que sofrem um processo penal, verifica-se, também, neste caso, na medida em que o menor sofreu um tratamento penal, relevante para um adulto, e por isso para a aplicação do artigo 6.º da CEDH. A isto acresce a consideração de que o jovem Blokhin era então menor, o que faria com que o critério do superior interesse da criança, constante dos vários instrumentos de direito internacional que a Rússia aceitou ou ratificou, seria aplicável ao processo penal de Blokhin, a ser admissível um tratamento deste jovem, de dimensão penal.

O TEDH verificou, à partida, que não houve qualquer acompanhamento de Blokhin por um advogado, nem durante a detenção na esquadra, nem durante o processo penal sumário que contra ele correu, e que não houve acompanhamento da execução da sua pena. Tudo o que o avô fez, foi por sua iniciativa, pelo seu instinto dos direitos que assistiam a Blokhin. Houve, com efeito, uma defensora oficiosa do menor, que se limitou a oferecer o merecimento dos autos e a pedir justiça, ou seja, que não defendeu Blokhin. Um outro problema foi o de que a mãe do menor, a quem Blokhin foi acusado de extorquir dinheiro, assistente processual e testemunha de acusação, não estava presente quando Blokhin e o seu avô assistiam à audiência de julgamento, nem havia registo vídeo/áudio dos seus depoimentos, pelo que o jovem arguido não os pôde contestar. Por fim, Blokhin não recebeu explicação sobre os motivos pelos quais foi conduzido à esquadra. Registaram-se, assim, as violações do direito a um processo equitativo, e dos vários direitos de defesa que assistiam a Blokhin, a um defensor, e a examinar e contra-examinar as testemunhas.

Um interessante voto dissidente dos juízes Spielmann, Niolaou, Bianku, Keller, Spano e Motoc, em que estes magistrados concordam com as soluções que o acórdão da Grande Chambre encontrou, tem o interesse de propor para este caso a opção pelo exame da relevância do tratamento penal do menor, não sob o ângulo do artigo 6.º da CEDH mas sob o ângulo, mais processual, mas certamente não menos efetivo em termos da verificação da violação dos direitos fundamentais do menor, do artigo 5.º § 4 da CEDH (direito ao recurso da detenção).  Teria bastado que se examinasse a falta de possibilidade para o menor de recorrer desta reclusão e, assim, de lhe pôr termo ou de obter reparação, para chegar à verificação das várias violações dos direitos do menor no que respeita ao seu tratamento penal e à sua prisão.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira