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TEDH, Grande Chambre, Ilnseher c. Alemanha, Acórdão de 4 de dezembro de 2018

12 dez 2018

CEDH, Artigo 5º Par. 1 e) Direito à liberdade e à segurança, detenção de pessoa com doença mental, Art. 7.º 1., Não existência de pena sem lei: a prisão preventiva retroativamente determinada do direito dos jovens delinquentes alemão, Art.º 5.º par. 4. Direito ao recurso da detenção, Art. 6.º par. 1, imparcialidade do tribunal. Não violação.

Ilnseher, um cidadão alemão, matou uma mulher que praticava jogging numa floresta por estrangulamento, em 1999, vindo a seguir a violar o cadáver. Tinha então 19 anos. Verificou-se que sofre de sadismo sexual, foi condenado em pena de dez anos de prisão efetiva, que cumpriu e, desde o fim do seu cumprimento de pena, foi mantido em prisão preventiva retroativamente determinada, um instituto jurídico próprio do direito penal dos jovens, na Alemanha. Ainda hoje está em prisão, embora com pena cumprida, pelo perigo que representa, uma vez que não está considerado curado, tendo transitado de uma prisão para preventivos deste regime, para uma instituição psiquiátrica.

Ilnseher, o Requerente, queixou-se ao TEDH de que a sua prisão preventiva, retroativamente determinada, violou o artigo 5.º par. 1 da CEDH, direito à liberdade e à segurança, o artigo 7.º par. 1 da CEDH que consagra a regra nulla poena sine lege, uma vez que a prisão preventiva retroativamente determinada não foi decidida no acórdão em que foi condenado pela prática do crime, mas depois de ter cumprido a pena de prisão a que foi condenado, o artigo 5.º par. 4 da CEDH, uma vez que entendeu que o seu caso não foi rapidamente apreciado pelos tribunais nacionais (no momento da aplicação da pena de prisão preventiva retroativamente determinada), e o artigo 6.º par. 1 da CEDH, no que respeita ao acórdão de condenação, uma vez que um dos juízes do coletivo emitira uma apreciação desfavorável sobre ele previamente  à produção do acórdão que o condenou.

Esgotou previamente os recursos internos, nomeadamente a queixa constitucional ao TC alemão, o qual entendeu que o regime aplicado foi corretamente aplicado, e vem pedindo a sua libertação imediata, mas os tribunais alemães continuam a mantê-lo em regime de prisão preventiva retroativamente determinada, numa instituição psiquiátrica da Alemanha.

O  TEDH examinou a questão. Num primeiro tempo, em Seção de 7 juízes, entendeu que não se verificou a violação de qualquer disposição da CEDH, e o Requerente pediu o reenvio do caso para a Grande Chambre, que emitiu o seu Acórdão em 4 de Dezembro. Depois de um exercício de fixação da terminologia, em que a GC examina o regime penal dos jovens delinquentes na Alemanha, o instituto controvertido nesta queixa, mereceu a designação, numa tradução livre, de prisão preventiva retroativamente determinada.

A GC passou, a seguir, ao exame da violação alegada do direito à liberdade e segurança, e observou que o que importa estudar, para o efeito de saber se houve uma violação, não é simplesmente o regime do artigo 5.º par. 1, mas do artigo 5.º, par. 1 alínea e) que prevê a detenção legal (…) de um alienado mental…  A partir daí, estão construídos na jurisprudência anterior do TEDH, os pressupostos desta detenção de um alienado mental, para que possa ser legítima: 1. A perturbação mental deve ser séria, 2. De natureza a exigir a garantia de um internamento compulsório, 3. A perturbação deve manter-se ao longo da detenção para que esta possa ser justificada, e deve ser constantemente reavaliada por meio de perícias médicas de natureza objetiva.  Por outro lado, a detenção deve ser legal, ou seja, caber numa previsão legal cujos requisitos preenche.

Para a GC todos estes pressupostos se encontram reunidos, tendo a prisão preventiva retroativamente determinada sido justificada, à luz dos critérios do artigo 5.º par. 1, al. e) da CEDH.

Passando ao exame da violação do artigo 7.º par. 1 da CEDH, o Requerente queixa-se de que esta prisão preventiva retroativamente determinada corresponde a uma agravação da sua pena, não decidida no acórdão de condenação, e por isso ilegítima, na medida em que está, assim, a ser condenado em pena mais grave que a aplicável no momento do cometimento dos factos. Para ele, este gravame tem enquadramento na regra do artigo 7.º, par. 1 da CEDH, nulla poena sine lege.

A Seção tinha considerado, também aqui, não existir violação. Para a GC, segundo a jurisprudência do TEDH, a prisão preventiva retroativamente determinada é geralmente de considerar uma pena, mas assim não sucede em caso de doença muito perigosa para terceiras pessoas. A GC observou que esta pena de prisão preventiva retroativamente determinada foi decidida pelo tribunal regional, depois do cumprimento da pena, mas fundamentou-se no texto das disposições da lei do regime penal dos jovens delinquentes. Observou, ainda, que, para o TC Alemão, no caso dos doentes mentais, esta medida, apesar da sua designação, não possui natureza penal. A GC notou, ainda, que o regime da detenção do Requerente em estabelecimento psiquiátrico tem melhores condições  do que uma prisão. A cela do Requerente é maior, e dispõe de uma cozinha e de uma casa de banho separadas. O Requerente pode, ainda, circular livremente dentro da instituição, a qual possui nomeadamente um espaço ao ar livre para atividades ocupacionais… Por fim, o Requerente está permanentemente sujeito a tratamento médico, e aos correspondentes exames e avaliações, no sentido de se saber se se mantêm, ou não, os pressupostos desta prisão preventiva ou se já está em condições de sair em liberdade.

O problema radica precisamente no último ponto, no sentido de se avaliar a severidade da medida, e esta é severa porque se está perante um regime de internamento de duração indefinida.

A contrapartida, para a GC, é que a aplicação deste regime depende de se chegar à conclusão que o Requerente já não é perigoso, caso em que será imediatamente colocado em liberdade.  Para a GC do TEDH não se verificou a violação do artigo 7.º par. 1 da CEDH.

Sobre a falta alegada de recurso judicial efetivo e célere, o TEDH subsumiu a questão à aplicação do artigo 5.º par. 4 da CEDH, direito ao recurso da detenção, e concluiu que, uma vez que existia um reexame constante dos pressupostos da prisão preventiva retroativamente determinada, com avaliação médica e controlo judicial da manutenção da medida, não se verificou aqui a violação do artigo 5.º par. 4 da CEDH. Este ponto do Acórdão foi votado por unanimidade.

Por fim, sobre a alegada parcialidade do coletivo que condenou o Requerente, a GC entendeu que apesar de um dos juízes ter proferido palavras desagradáveis sobre o Requerente, então arguido, antes de emitir o acórdão e lavrar a sentença, não haveria violação do artigo 6.º par. 1 na vertente da imparcialidade, na medida em que o reparo do juiz não teria sido bastante para influenciar o sentido do acórdão de condenação. Os juízes Dedov e Paulo Pinto de Albuquerque entenderam que houve violação da regra da imparcialidade.

Seguem ao Acórdão três conjuntos de votos, um concordante, de Ravarini que chama a atenção para a dimensão penal do problema. Foi apenas porque, em seu entender o direito alemão configura este caso como de internamento por doença mental, e não como pena, que não houve a violação do artigo 5.º nem do artigo 7.º da CEDH; um discordante parcial de Sicilianos, que entende que não existe violação do artigo 5.º par. 1, por ser realmente necessário manter a privação de liberdade do Requerente, mas que, em contrapartida, a aplicação da prisão preventiva retroativamente determinada é ilícita à luz da CEDH por contrariar o princípio nulla poena sine lege, e, por fim, o voto discordante de Paulo Pinto de Albuquerque, a que se associou o juiz Dedov. Segundo este último voto discordante, apenas não se registou a violação do artigo 5.º par. 4 da CEDH. Tudo o mais teria sido violado. Com efeito, a prisão preventiva retroativamente determinada não teria propósito terapêutico, frustraria expetativas legítimas frente a um definitivo acórdão de condenação, falharia no seu propósito educativo, seria inigualitária, uma vez que não prevista no regime dos delinquentes adultos; o TC alemão, por seu turno, ainda seguiria um critério dualista nas relações internacionais do direito, com primado do direito interno. Do lado do TEDH, a posição deste alto tribunal seria preocupante. Seria infeliz o apagamento de uma noção do campo penal para o campo administrativo, a maioria teria procedido a um impossível exercício de quadratura do círculo, ao tentar enquadrar no regime dos direitos humanos uma situação que nela não teria cabimento; e, no final, cita uma conversa com o Professor Jescheck, em 1995, segundo a qual este o teria advertido para o perigoso resvalar da justiça internacional para modelos autoritários.

Este Acórdão é fonte de perplexidade, para um leitor atento da jurisprudência de Estrasburgo, a qual nem sempre satisfaz as representações de direitos humanos de quem observa, mas também, muitas vezes, traz a paz necessária, por se saber que, algures na Europa, ainda pode haver quem se preocupa com os direitos humanos.  A posição parcialmente dissidente que mais acolhe o apoio, em meu entender, não é, apesar de tudo, a muito avançada posição dos juízes Paulo Pinto de Albuquerque e Dedov, mas a do juiz Sicilianos.  Com efeito, o Requerente, mantendo-se a sua situação patológica, não está em condições de sair. Pelo que não há violação do artigo 5.º par. 1, no meu entender. Mas a prisão preventiva retroativamente determinada ofende certamente o artigo 7.º par. 1 da CEDH porque ofende claramente a regra nulla poena sine lege e a previsibilidade e certeza de uma condenação penal inicial.  Pelo que deveria competir ao Legislador alemão e aos seus tribunais, um Hausaufgabe, no sentido de criar um regime de detenção de longa duração para estes agentes, que acomodasse a ânsia dos leitores das jurisprudências nacionais e regional europeia, e, em particular, que confortasse a preocupação legítima com os direitos humanos, em situações desta natureza. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos