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TEDH, Grande Chambre, Parecer Consultivo P.16-2018-001, adotado a 10 de abril de 2019

17 abr 2019

CEDH, Artigo 8.º. Recurso interno de revisão de sentença por contradição com Acórdão posterior do TEDH, no caso Mennesson c. France. Modificação da orientação jurisprudencial da Cour de Cassation. Pedido de parecer consultivo à Grande Chambre no sentido de poder conformar o Acórdão a proferir em revisão de sentença com a posição expressa pelo TEDH no seu Parecer Consultivo.

A família Mennesson acordou um contrato de gestação de substituição na Califórnia, do qual resultaram duas crianças, filhas do cônjuge masculino, o pai beneficiário. Procurando cumprir as exigências da perfilhação das crianças, o pai biológico, o pai beneficiário, viu ser-lhe oposto o não reconhecimento pelo Estado desta modalidade contratual e ficou assim privado de perfilhar as suas crianças. O casal Mennesson queixou-se ao TEDH, o qual entendeu que a posição do Estado se poderia enquadrar na sua margem de apreciação, na medida em que não assistiria a um casal da nacionalidade o direito de contrariar as disposições legais em vigor. Já as crianças têm o direito, inerente à personalidade e à condição humanas, à filiação, e, assim, ao estabelecimento seguro, com relevância jurídica, de laços com os seus progenitores, e por isso, a solução vigente em França era violadora do artigo 8.º da Convenção, na perspetiva dos direitos das crianças, na vertente do seu direito à filiação.

O casal apresentou a sentença do TEDH, de 2014, também objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página, para revisão da sentença interna definitiva à Cour de Cassation por incompatibilidade da última com a decisão da instância internacional de julgamento, posterior. Entretanto, a França ratificou o Protocolo n.º 16 à CEDH, que permite às instâncias superiores dos Estados Parte colocar questões de interpretação do Direito europeu ao TEDH.

Sempre no contexto da jurisprudência Mennesson, do TEDH, a Cour de Cassation reconheceu que a França não cumpria adequadamente a Convenção europeia dos Direitos Humanos e, neste sentido, formulou uma nova orientação jurisprudencial segundo a qual, nos casos de contrato de gestação de substituição, o pai beneficiário, também pai biológico, tem o direito ao registo das suas crianças e estas à certidão de nascimento segundo o Estado francês com todas as consequências em matéria de registo civil daí advenientes. A dúvida, para a Cour de Cassation passou a situar-se na condição jurídica da mãe beneficiária que não seja mãe biológica, ou seja, cujos óvulos não foram utilizados no quadro deste contrato.

A Cour de Cassation colocou estas duas questões ao TEDH no contexto do Protocolo 16, solicitando a este um Parecer consultivo antes da emissão do seu próprio Acórdão, suspendendo a instância em conformidade:

1. Saber se ao recusar o registo de maternidade de uma criança nascida no estrangeiro, no quadro de um contrato de gestação por outrem, a França estaria em violação do artigo 8.º da CEDH, e se deveria proceder, neste tipo de contrato, a uma distinção em função da conceção, ou não, da criança, com recurso aos óvulos da mãe biológica;

2. Na hipótese de uma resposta afirmativa a uma destas questões, seria possível à mãe biológica proceder à adoção da criança, assegurando por esta via o direito da criança à sua filiação materna e, assim, garantindo a conformidade da República francesa com as suas obrigações, à luz do artigo 8.º da CEDH?

O TEDH recordou dois obter dicta do seu Acórdão Mennesson, também ratio decidendi do Acórdão e do Parecer Consultivo: - O respeito da vida privada requer que qualquer pessoa esteja habilitada a estabelecer os detalhes da sua identidade enquanto ser humano, a qual compreende as relações legais entre os pais e os filhos. – A relação pais-filhos atinge uma dimensão essencial da identidade de cada ser humano.

Entretanto, e face à evolução jurisprudencial do Direito francês, o Conselho de Ministros do CoE encerrou a sua supervisão do caso Mennesson. Em 16 de Fevereiro de 2018, o Tribunal das revisões de sentença francês aceitou para novo julgamento o pedido de revisão de sentença, formulado pelo casal Mennesson, a seguir à prolação, pela Grande Chambre do TEDH do Acórdão do mesmo nome. E é neste quadro, com um recurso de revisão de sentença por decidir que a Cour de Cassation suspendeu a instância e acionou o TEDH com o pedido de Parecer Consultivo ao abrigo do Protocolo n.º 16, entretanto ratificado pela França.

O TEDH estudou o direito das Nações Unidas em torno da Convenção sobre os direitos das crianças e os seus protocolos, os trabalhos da Conferência da Haia de Direito internacional privado e procedeu a um estudo do direito comparado nos vários países do Ocidente, em particular da Europa. Notou, por fim, que os óvulos da mãe beneficiária não foram empregues neste contrato.

Para o TEDH eram duas as questões a que devia trazer resposta:

1. saber se o direito à vida privada de uma criança nascida nos termos de um contrato de gestação por outrem, cujo vínculo de filiação ao pai beneficiário, também pai biológico, está assegurado, exige o reconhecimento legal da sua relação com a mãe beneficiária, a qual não é a mãe biológica;

2. sendo a resposta à primeira pergunta afirmativa, o TEDH ainda deveria estabelecer se seria necessário que o reconhecimento do vínculo de filiação com a mãe beneficiária se deveria fazer por certidão e registo de nascimento, ou se o recurso a um instituto jurídico diferente seria bastante.

Respondendo à primeira questão, o TEDH entendeu que, embora o reconhecimento legal do vínculo de filiação da criança ao pai beneficiário, também pai biológico, já esteja assegurado em França, é ainda necessário o reconhecimento legal do vínculo de filiação à mãe beneficiária, não mãe biológica. E passou a responder à segunda questão.

A conclusão da primeira questão significa que a margem de apreciação do Estado é, neste caso, reduzida, e que a relevância do melhor interesse da criança é muito forte. Do estudo do Direito comparado nesta questão, resulta que não existe consenso europeu sobre a resposta a trazer; os Estados variam e divergem nas soluções que constroem para este problema. Por outro lado, segundo o TEDH, não resulta do texto do artigo 8.º da CEDH que os Estados devam ab initio reconhecer a condição de mãe jurídica à mãe beneficiária não biológica. A obrigação de dar relevância jurídica ao relacionamento da criança com a mãe beneficiária mantém-se contudo, existe e manifesta-se, porque, ao ter sido executado o contrato e ao ter sido entregue a criança à mãe beneficiária, criaram-se forçosamente laços de convívio entre a mãe beneficiária e a ora sua criança, que o Direito não pode desconhecer. Deu então o TEDH como resposta à segunda questão, a de que não é necessária a inscrição imediata no registo mediante uma certidão de nascimento nesse sentido, mas que deve ser facultada pelo ordenamento jurídico interessado (o francês) a possibilidade a dar à mãe, de traduzir juridicamente a sua relação com a criança nascida desta forma contratual, por meio do acionamento de um outro instituto jurídico como o da adoção.

O TEDH adotou assim por unanimidade, o seguinte parecer consultivo;

- Numa situação em que uma criança nasceu no estrangeiro de um acordo de gestação por outrem e foi concebida empregando os gâmetas do pai beneficiário e os óvulos de uma terceira dadora, e em que a relação jurídica pai-criança foi reconhecida segundo o direito interno:

1. O direito da criança à vida privada e familiar nos termos do artigo 8.º da CEDH impõe que o Direito faculte um modo de reconhecer juridicamente a relação existente entre a criança e a mãe beneficiária, designada como mãe – legal na certidão de nascimento emitida no estrangeiro;

2. Este direito da criança não exige que este reconhecimento se opere por meio do registo de nascimento. Um outro meio – como o do recurso ao instituto da adoção pela mãe beneficiária – pode ser utilizado, sob a condição de o processo interno ser célere e efetivo, de acordo com os melhores interesses da criança.

A questão agora dirimida pelo parecer Consultivo n.º 1 de 2018 é importante, e ilustra as possibilidades do Protocolo n.º 16 à CEDH em situações em que é necessário proceder à revisão de uma sentença interna definitiva, por oposição superveniente de uma decisão de instância internacional de julgamento.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos