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TEDH, Grande Chambre, Tanase c. Roménia, Acórdão de 25 de junho de 2019

5 jul 2019

CEDH, Artigo 3.º, 6.º§1 e 13.º. Acidente de viação que determinou uma vítima com ferimentos graves. Dificuldades na obtenção de prova. Complexidade do processo. Investigação do acidente. Acesso ao direito e ao tribunal. Prazo razoável. Ausência de recurso efetivo das violações no plano interno. Não violação.

Tanase queixou-se contra a Roménia, em 2013, pela demora excessiva e pela não adequação da investigação conduzida pelas autoridades nacionais às circunstâncias de um acidente de viação de que foi vítima, e invocou a violação dos artigos 3.º (tratamentos desumanos, cruéis e degradantes), 6.º § 1 (nas vertentes do direito de acesso a um tribunal e do prazo razoável) e 13.º (direito a um recurso efetivo interno contra as violações invocadas) da CEDH. Sinal da sensibilidade do caso, a juíza romena do TEDH pediu escusa e foi substituída pelo juiz polaco e a Seção que recebeu a queixa, remeteu-a para a Grande Chambre.

Tanase foi vítima de um acidente de viação em 2004, quando conduzia, de noite, numa estrada na Roménia. A configuração inicial do acidente foi a de que este teria sido causado pelo embate de um veículo, que vinha de trás, no veículo de Tanase, o qual, por seu turno foi embater violentamente num camião militar que estava à sua frente, provocando o esmagamento do condutor. O veículo de trás veio a despistar-se, embatendo num quarto veículo que vinha na direção contrária. Este último acidente não foi, contudo, investigado.

Logo na noite do acidente, a polícia local iniciou a investigação ao sucedido, tirando medidas, fotografias, e procedeu aos testes de alcoolemia. No relatório de medicina legal foram identificados traumatismos vários na pessoa de Tanase, entre os quais um choque abdominal com consequências nos órgãos digestivos (viriam a ser retiradas a Tanase longas partes dos intestinos), vários ossos partidos e outros deslocados. Por força do acidente, Tanase veio a perder parte da utilização dos seus braços e adquiriu uma deficiência no plano da mobilidade.

Tanase formulou o pedido de reparação cível por adesão ao processo penal, aberto para identificar o responsável pelo crime de ofensas à integridade física, por negligência. O MP local transmitiu o caso à Procuradoria-geral Distrital por Tanase, ele próprio, ser magistrado judicial.

A PGD recolheu os vários depoimentos em 2005, mas Tanase não pode ser ouvido logo, por estar internado em razão do acidente. No final de 2005, a PGD resolveu arquivar o processo. O camião militar à frente estava em posição correta, a vítima conduzia em excesso de velocidade, não se tendo conseguido adaptar às circunstâncias, por estar a conduzir sob a influência de álcool, embora a um nível inferior à proibição legal. Depois de um conjunto de recursos, hierárquico na PGD, e judicial, o Tribunal regional concedeu a pretensão de Tanase relativa ao não arquivamento do processo e foi iniciada uma segunda fase de investigação.

Novamente chamada, a medicina legal identificou, em relatório psiquiátrico, um forte stress pós traumático na pessoa de Tanase, e concluiu que a presença de sangue no teste de alcoolemia podia ficar a dever-se à forte concentração de desinfetantes que foram imediatamente ministrados a Tanase, perante a gravidade das circunstâncias, em simultâneo com a colheita de sangue para o teste. A polícia, por seu turno alvitrou que a concentração de álcool no sangue de Tanase era de tal modo importante, apesar de dentro dos patamares legais, que tal não se podia ficar a dever à forte presença de desinfetantes no momento da colheita do sangue. Por outro lado, concluiu que, se a vítima tivesse travado, os danos que sofreu não teriam acontecido. Além disso, Tanase não teria respeitado a distância de segurança com o veículo da frente. A polícia propôs o arquivamento do processo mas o MP não o arquivou, entendendo que a prova disponível era contraditória, e ordenou uma nova perícia de medicina legal, em particular ao nível de álcool no sangue de Tanase. Estávamos já em 2008.

Em 2009, a ML comunicou que o exame só poderia estar pronto em 2011 face ao seu elevado volume de trabalho, mas acabou por entregar o relatório em Setembro de 2010. Neste relatório concluía-se que à velocidade do veículo, o queixoso não o conseguiria travar de modo a evitar a colisão com o veículo da frente. No mesmo relatório dizia-se que não era possível saber se fora o veículo de trás que embatera no veículo da vítima para o projetar contra o camião da frente, ou se a vítima, em excesso de velocidade, fora surpreendida pelo camião, no qual veio a embater, vindo a seguir, o veículo de trás embater no seu veículo. Em Fevereiro de 2011, a PGD procedeu ao arquivamento do processo, com fundamento em que não se conseguiriam estabelecer todos os pressupostos para o preenchimento do tipo legal de crime por que se procurava acusar. A única culpa que se conseguia estabelecer era a da própria vítima, na medida em que conduzia em excesso de velocidade.

Tanase requereu a abertura da instrução, criticou os vários relatórios e provocou um incidente de suspeita sobre os magistrados do processo, pedindo o desaforamento deste para uma jurisdição isenta de dúvidas. Concretamente, pediu a transferência do processo para o tribunal de Bucareste.

Este tribunal rejeitou o pedido de Tanase, uma vez que este não tinha cumprido o seu dever de condução preventiva, por estar em excesso de velocidade, mas uma vez que o condutor de trás também estava em excesso de velocidade, existia uma contradição no processo que devia ser sanada, e, por isso, ordenou uma nova perícia de medicina legal. O Tribunal de Distrito que recebeu a determinação do Tribunal de Bucareste entendeu que o processo era complexo e que estava à beira da prescrição.

Iniciou-se, então, uma terceira fase investigativa em que o relatório de perícia criminológica concluiu que, dado o tempo muito curto entre os dois embates, não se podia saber qual dos choques acontecera primeiro para provocar as lesões de Tanase. Nomeadamente, era possível a combinação, ou até uma quase simultaneidade dos dois embates. Tanase pediu que fosse concedido ao processo o estatuto de especial complexidade, o que foi concedido. Novamente a PGD pretendeu arquivar o processo por não estarem reunidos os pressupostos da prática de uma infração penal. Novamente Tanase recorreu e queixou-se hierarquicamente e disciplinarmente dos magistrados, tudo tendo sido rejeitado.

Instaurou, então, um processo de responsabilidade civil contra a seguradora e contra a empresa que lhe havia locado o veículo em regime de locação financeira, pedindo nomeadamente uma reparação a título de danos não patrimoniais à seguradora, pela recusa desta em cumprir o contrato, o que teria sido fonte de sofrimento psicológico.

Em 2013 queixou-se ao TEDH do insucesso de todo este esforço, que se traduziria nas violações alegadas da CEDH. O TEDH observou o âmbito da queixa e procedeu à sua definição. Foram traços deste conjunto processual a lentidão, a ineficiência traduzida na impossibilidade em obter uma decisão judicial interna, e o sofrimento de Tanase, desde logo físico, em resultado do acidente. Por esta razão, o TEDH entendeu que a vítima não tinha qualificado corretamente a queixa. Com efeito, em vez de a ter qualificado sob o ângulo do artigo 3.º da CEDH, deveria tê-la apresentado sob a égide do artigo 2.º (direito à vida). Além disso, o caso qualificar-se ia sob a perspetiva do artigo 8.º (vida privada) e por isso o TEDH procedeu ao seu exame sob a perspetiva dos artigos 2.º e 8.º. Enfim, Tanase alegou ter sido humilhado ao longo do processo. Nesta dimensão ainda coube ao TEDH examinar o art.º 3.º da CEDH. O TEDH notou que em consequência do acidente que sofreu, Tanase adquiriu uma deficiência. E passou ao exame dos vários segmentos da queixa assim reconfigurada.

O artigo 3.º não é aplicável para o TEDH, pois apenas seria aplicável se o dano imposto a Tanase fosse intencional, da parte do Estado, o que não é o caso. É de notar que esta abordagem é estranha. A produção de um dano a um particular da parte do Estado, nunca é intencional. No entanto, as várias sedes dos direitos da CEDH encontram aplicação aos diferentes casos. Pelo critério da intencionalidade, também foi afastada a violação do artigo 8.º da CEDH, uma vez que o sofrimento de Tanase não era imputável ao Estado. O mesmo critério gerador de algum desconforto foi seguido na análise da aplicação do artigo 2.º na sua dimensão substancial. E com efeito, não foi o Estado quem feriu Tanase, logo, não houve violação. Ficou então, por analisar o artigo 2.º na vertente processual, uma eventual lacuna na proteção da vida de Tanase pela deficiência da investigação. Este segmento de queixa foi admitido, pois ao Estado compete montar um sistema judicial capaz de dar resposta aos problemas resultantes das interações entre as vidas das pessoas. E, sempre que aplicável, compete ao Estado assegurar a sua reparação efetiva. Na medida em que Tanase formulou o pedido cível por adesão ao processo penal, esgotou os recursos internos, ainda assim, o TEDH entendeu que a investigação foi correta e que tudo foi feito para investigar. Talvez tenha existido uma boa vontade material da parte das autoridades. Contudo, perante, nomeadamente, a incapacidade em proceder a um teste de alcoolemia sobre um ferido grave, entende-se que se verificaram fortes deficiências na investigação. Para o TEDH, também não houve, assim, a violação do artigo 2.º na sua vertente processual.

Quanto à queixa relativa ao acesso a um tribunal e ao prazo razoável, o TEDH admitiu estes dois segmentos da queixa (art. 6.º § 1), sendo que Tanase invocou que lhe fora impossível obter uma decisão sobre o mérito quanto ao acidente de viação em que esteve envolvido. O TEDH respondeu que existe o direito a um tribunal que julgue os litígios em que um cidadão é parte. E considerou que esta questão é distinta da questão do direito à investigação efetiva (vida, processual) na medida em que se traduz no direito a uma decisão judicial (tanto penal quanto cível) que assiste ao cidadão. E apesar desta aproximação generosa, acabou por concluir que o artigo 6.º § 1 não foi violado na dimensão do acesso a um tribunal porque, embora o queixoso tivesse formulado o pedido de adesão cível ao processo penal, este processo penal acabou por ser arquivado, significando que o pedido cível passou a não ser examinado. Ora, podia fazer sentido arquivar o processo penal. Logo cabia ao queixoso o ónus de prosseguir a ação cível por outros meios.

Na parte relativa ao prazo razoável, a investigação foi anormalmente longa, mas a demora afere-se em relação às circunstâncias do caso, à sua complexidade, ao comportamento do queixoso e das autoridades e à importância para o particular do que estava em jogo com a disputa. Para o TEDH a investigação fora complexa, as autoridades foram ativas, e não falharam no seu dever de diligência, logo também neste segmento não foi violado o artigo 6.º§ 1 relativo ao prazo razoável. Por fim o TEDH considerou o segmento da queixa relativo ao artigo 13.º consumido pelo exame feito ao art.º 2.º (vida, processual), e por isso não o examinou. Enfim, o TEDH ainda examinou a parte relativa à humilhação que Tanase sofreu às mãos das suas autoridades. Recordou que a questão foi colocada a propósito de desaparecimentos de membros da família. A indiferença e a secura das autoridades no tratamento de queixas de particulares são tratamento contrário ao art.º 3.º Contudo, algo laconicamente, no que respeita à fundamentação desta parte da decisão, após a introdução generosa, o TEDH entendeu que o caso do Requerente não cai neste domínio, pois não existe a aparência da violação do art.º 3.º, concluindo assim pela não violação deste preceito da CEDH.

Tem muito interesse os votos dissidentes a este Acórdão. Seis juízes, em dezassete, não concordam com o Acórdão adotado. Embora não seja uma minoria que divida, é uma minoria superior a um terço dos votantes do Acórdão, e por isso merece particular atenção. Sugere que o TEDH não examinou, como o poderia ter feito, as diferentes dimensões deste problema e deixa a impressão de desconforto, que já resulta da leitura do Acórdão, de certo modo agravada. Em contrapartida, estas opiniões revelam que existem magistrados no TEDH que ainda estão preocupados com a urgência das questões que lhes são colocadas em matéria de direitos humanos, o que mitiga esta difícil sensação.

Na sua opinião dissidente parcial conjunta, os juízes De Raimondi, Sicilianos, Karakas, Vucinic e Harutunyan, entendem que este Acórdão ignorou a realidade da violação da regra do prazo razoável. O sistema judicial tem mesmo de ser organizado, no plano interno, de modo a evitar a desnecessária demora. O caso nem era complexo, o que era complexo era a matéria forense. Um acidente de viação é um caso frequente. O queixoso não pode ser censurado pelo seu estado de saúde, que atrasou a prestação do seu depoimento. Por outro lado, a repetição de ocorrências em que um processo regressa à investigação, ou baixa à primeira instância, é indício de disfuncionamento do sistema judicial. E, aqui, estas ocorrências foram frequentes. Contrariamente ao que sugere o § 213 do Acórdão, a matéria era grave, na medida em que o queixoso ficou deficiente. Havia que ponderar melhor o que estava em jogo para o lesado. Houve, assim, para estes juízes, a violação da regra do prazo razoável vertido no art.º 6.º § 1 da CEDH.

Na sua opinião dissidente parcial, os juízes De Gaetano e Vucinic entendem que houve violação do artigo 2.º (vida, processual) e do artigo 6.º § 1 (prazo razoável). A CEDH exige uma investigação oficial efetiva. O queixoso iniciou ele próprio vários processos civis separados. O acidente ocorreu em 3.12.2004 e processo terminou em 21.12.2012. Um iter lamentabilis de duração superior a 8 anos. As próprias autoridades contestaram sempre a ineficiência da investigação oficial e por isso, sempre a reabriam. Para um acidente de 2004, o 1.º Relatório de perícia saiu em 2008 e o 2.º, em 2010… O queixoso foi ativo. As autoridades não demonstraram a diligência devida ao investigarem o caso à luz do artigo 2.º Por isso houve, segundo estes juízes, a violação dos artigos 7.º e 9.º da CEDH.

Na sua opinião dissidente parcial o juiz Kuris demonstra que era sustentável uma posição de exigência do respeito da CEDH em torno do artigo 3.º neste caso. É que a vítima não morreu. Por isso não seria aplicável o artigo 2.º mas o artigo 3.º (maus tratos). Cita uma abundante jurisprudência em que é feita aplicação do artigo 3.º e demonstra que não é critério o dolo do Estado em prejudicar o cidadão. Diferente é a questão da imputação. Embora não exista vontade de mal fazer, existe imputabilidade e imputação, e por isso os artigos da CEDH relativos aos direitos humanos são violados. Assim sucedeu, por exemplo, no caso Mursic c. Croácia, em que não existia a vontade de torturar o indivíduo, mas mercê das obrigações a cargo do Estado decorrentes deste artigo, se verificou a violação da CEDH e da Convenção para a prevenção da tortura do CoE, pois as celas eram demasiado reduzidas e isto redundava num mau tratamento, involuntário, de Mursic, da responsabilidade da Croácia. A não se qualificar, como foi o caso, no artigo 3.º, devia qualificar-se na vida (processual) mas aí verificar e afirmar a violação. Quanto ao artigo 6.º §1 (acesso a um tribunal) este também foi violado, pois, tal como não conseguiu produzir uma investigação efetiva, fosse qual fosse o resultado, a Roménia também não conseguiu produzir uma sentença final para o problema, fosse qual fosse o desfecho ao nível da decisão judicial, barrando assim, o acesso de Tanase a um tribunal. Esta opinião dissidente parcial tem o interesse, além da preocupação com os direitos humanos, de mostrar que o TEDH procurou construir uma doutrina exclusiva em torno da proteção do direito à vida, mas que, ao fazê-lo, ignorou a sua própria jurisprudência e um acervo de noções já trabalhado, que podem constituir ferramentas úteis para a sua própria decisão judicial (futura).

Por fim, o juiz Kuris concluiu que é fácil derrubar a barreira de proteção que a CEDH forma, nomeadamente por meio de Acórdãos como este; mas que é muito mais difícil acrescentar tijolos válidos à construção europeia dos direitos humanos, por meio da jurisprudência…

Por fim, na sua opinião dissidente parcial, o juiz Grozou entende que o particular não esgotou todos os meios internos disponíveis e contesta o próprio princípio da adesão do pedido cível ao processo penal. Esta solução, contudo, é acolhida na jurisprudência do TEDH porque o direito nacional a reconhece e a possibilita. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos