Simp

Está aqui

TEDH,5ª Secção, Ayoub e Outros c. França, Acórdão de 8 de outubro de 2020

15 out 2020

CEDH, Artigo 11.º, 10.º, e 17.º. Direito de associação e liberdade de expressão . Dissolução de associações e movimentos de ideologia fascista em relação com a prática de violência com relevância criminal. Os critérios da dissolução destas associações.  Não basta o simples discurso, é necessária uma relação com a prática criminosa a qual legitima sucessivamente ou preventivamente, em caso de perigo verificado, a associação ou movimento de ideologia fascista. Aplicação da regra da proibição do abuso dos direitos constantes da CEDH constante do art.º 17.º da CEDH.  Linhas de concretização desta disposição para o efeito de jurisprudência futura.

Ayoub, Benedetti e a “Obra francesa”, Gabriac e as “Juventudes nacionalistas”, e outros, queixaram-se ao TEDH contra a França, em 2014 e em 2015.

As suas razões de queixa eram relativas às dissoluções administrativas, mediante Decreto do Presidente da República, de um agrupamento de facto e de duas associações inseridas no ambiente da extrema-direita.

Os vários queixosos são participantes destes movimentos e alguns deles dirigiam as associações dissolvidas. Estas associações foram dissolvidas com fundamento na disposição do Código da Segurança Interna, herdeiro de uma lei de 1936, relativa aos grupos de combate e às milícias privadas. As dissoluções ocorreram após o assassínio, em 2013, de um estudante do Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po) que pertencia ao movimento anti fascista. O jovem morreu por ocasião de uma rixa que o opôs a Skin-heads com simpatias, e nalguns casos pertença, ao movimento da “Terceira via” e do seu serviço de ordem, as “Juventudes nacionalistas revolucionárias” (JNR). A seguir aos Decretos de dissolução dos movimentos, correu seus termos o respetivo processo de impugnação judicial administrativa, o qual foi decidido, a final, pelo Conseil d’Etat.

Os participantes na rixa foram investigados com fundamento na prática voluntária de violência determinante da morte, embora sem intenção de matar. Alguns dos participantes na rixa acabaram por ser constituídos arguidos, pronunciados e condenados em penas de 7 e 11 anos de prisão efetiva.

Uma investigação levada a efeito pelo Ministério da Administração Interna permitiu a identificação do contexto ideológico em que a rixa aconteceu, bem como a identificação das associações e movimentos responsáveis, permitindo a sua dissolução por meio de vários Decretos Presidenciais.  No processo de anulação das decisões presidenciais, os queixosos invocaram a desnecessidade de proceder às dissoluções das associações e movimentos e alegaram o carácter ideológico dos Decretos do Presidente. Foi contestada pelos queixosos a identificação dos agrupamentos como milícias privadas armadas bem como a inspiração nazi, que era censurada nos Decretos presidenciais. Por fim, os atos de violência relevariam exclusivamente da responsabilidade dos indivíduos que neles participaram, e não poderiam ser imputados às organizações e movimentos dissolvidos.

Em resposta, o Ministro da Administração Interna (o MAI) opôs aos argumentos dos queixosos o seu conhecido passado, por vezes violento, de Skinheads e de militantes da extrema-direita, com ligações a movimentos remontando aos anos 80 e 90. Estes movimentos eram caracterizados por serem nacionalistas revolucionários, antiamericanos, anticomunistas e anti sionistas.

Segundo o MAI estes movimentos eram caracterizados pela obediência a uma ideologia, de extrema-direita e de inspiração neonazi; por possuírem uma estrutura de militância de combate organizada e por terem uma sede associativa, a qual era a sede da associação “Vontade de Sonhar”(…) onde os militantes se reuniam, debatiam os seus objetivos e preparavam as suas ações. Estas características definiam as associações e movimentos, correspondiam à enumeração legal da disposição acionada pelo Presidente, encontrando as decisões deste fundamento substancial nesta correspondência.

Vários elementos e suportes probatórios foram juntos pelo MAI ao processo que correu seus termos perante o Conseil d’Etat.

Após uma análise ponderada dos argumentos e dos meios de prova e após a audiência de julgamento, o Conseil d’Etat negou provimento às ações de anulação dos Decretos presidenciais propostas pelos queixosos.

É de interesse notar que uma das ações de anulação foi proposta por um dos queixosos contra a dissolução da “Obra francesa”, ativa desde 1968 e que tinha como propósito reunir todos os franceses que exigiam a reabilitação imediata de todos os condenados pela defesa da Argélia francesa, bem como a dissolução e a colocação fora da lei das organizações marxistas. Esta última associação era caracterizada por ações espontâneas violentas (“actions coup de poing”) com resultado, por vezes, na morte das suas vítimas, sendo que esta associação invocava a precedência em relação aos demais, dos “franceses de origem” (“français de souche”). Uma outra das associações era caracterizada pela simbologia fascista em torno da águia bem como pela prática de ações violentas.

Foi requerida ao Conseil d’Etat a concessão de eficácia suspensiva à interposição da ação em relação aos Decretos presidenciais na pendência do processo de impugnação administrativa contenciosa. Este efeito suspensivo requerido não foi, muito justamente, concedido pelo Conseil d’Etat, face ao perigo da continuação e prossecução das ações violentas.

Após o exame dos vários materiais disponíveis, entre os quais um relatório da Assemblée Nationale sobre os grupos e organizações violentos de extrema-direita em França, o TEDH recordou, como jurisprudência de referência, a sua Decisão, proferida no caso Belkacem c. Bélgica, e o Acórdão proferido no caso Perincek c. Suíça. Recordou também os textos pertinentes do CoE relativos ao discurso de ódio, entre os quais a Recomendação n. 97/20 do Comité de Ministros (CM) de 30 de Outubro de 1997. Outra fonte foram os trabalhos da Comissão europeia contra o racismo e a intolerância (ECRI) do CoE, em particular a sua Recomendação de Política Geral n.º7 (Rev.) dedicada à legislação nacional para combater o racismo. Aí se diz que “a lei deve prever a possibilidade de dissolver as organizações que promovam o racismo”. Uma outra recomendação de política geral de que o TEDH se socorreu ao título de fonte de direito, foi a Recomendação n.º 15, relativa ao Combate contra o discurso de ódio, a qual prevê que seja cortado todo o auxílio financeiro público destinado à promoção do tecido associativo, sempre que uma associação prossiga finalidades racistas.

Num relatório sobre a situação em França, de 2015 (CRI(2016)I), a ECRI registava um clima de intensificação da intolerância e de agravamento dos comportamentos racistas nos últimos anos.

Depois desta jornada em busca da definição de fontes para a fundamentação da adjudicação judicial do caso, o TEDH apensou as várias queixas e passou ao exame dos gravames dos queixosos.

A primeira questão foi relativa à violação invocada do direito de associação (art.º 11.º) e do direito à liberdade de expressão (art.º 10.º) constantes da CEDH. Em sede de princípios gerais o TEDH destacou o princípio democrático em torno da democracia política enquanto substrato basilar da ordem pública europeia. Uma das concretizações jurídicas com relevância judicial deste princípio geral é formada pelo pluralismo, a tolerância e espírito de abertura (com referência aos casos Handyside c. UK, 1976, e Fundação Zehra e Outros, 2018).

Neste contexto, são essenciais ao bom funcionamento da democracia, não apenas os partidos políticos, mas as demais associações e fundações com diversas finalidades sociais, de forte participação cidadã.

A liberdade associativa não é, contudo, absoluta, encontrando limites sempre que faz perigar as instituições do Estado ou os direitos e liberdades de outrem. Neste sentido, o Estado tem o direito de verificar a adequação dos fins e da prática das associações com as regras jurídicas, nomeadamente disposições de ordem pública (no direito civil português encontra-se uma afloração deste princípio na sujeição da autonomia da vontade às disposições legais de carácter imperativo). O controlo que o Estado exerce sobre as associações, ele próprio, não é sem limites, estando sujeito às regras constitucionais e legais e às disposições, nomeadamente da CEDH, como o art.º 11.º. Neste contexto, a dissolução de uma associação ou de um movimento associativo representa a mais grave das medidas em relação a estas realidades e, por isso, está sujeita a um apertado escrutínio. A ingerência tem, neste particular, de responder a uma necessidade social imperiosa, ou seja de corresponder ao interesse geral.

No quadro da avaliação da licitude convencional de uma dissolução de associação, a ponderação oferecida pelo art.º 17.º da CEDH (proibição do abuso de direito, em particular das pessoas que invocam a tutela dos direitos humanos podendo ir no sentido da inutilização destes mesmos direitos) assume importância.

Esta ponderação implica um duplo cuidado. O de verificar a existência do excesso da parte de quem se prevalece da disposição de direitos humanos, e por outro, o de cuidar que quem, apesar da aparência da infração ao art.º 17.º da CEDH, invoca um direito, não seja privado de benefício legítimo deste mesmo direito. Apenas na parte em que a invocação de um direito tutelado pela Convenção conduz à destruição do quadro de direitos tutelados pela Convenção, é o acionamento do art.º 17.º legítimo. No mais, não. Isto implica a aferição de até onde as associações e os movimentos podem ir na invocação dos direitos da CEDH. Após um interessante raciocínio, o TEDH, mediante abundante citação da sua anterior jurisprudência, concluiu que a avaliação é concreta e material. Ou seja, quando, para além do discurso (o qual tem os limites legais da proibição do discurso de ódio quando este esteja previsto, para além de ser sempre desagradável), a materialidade de um direito previsto na CEDH (à vida, à integridade física, a alguma das vertentes da dignidade humana) acaba por ser anulada pela invocação daquele concreto direito, de que uma associação ou movimento se prevalece, verifica-se o abuso do direito convencional, proibido pelo art.º 17.º da CEDH.

O TEDH admitiu as queixas nestes segmentos, reconheceu a existência de uma ingerência do Estado nas liberdades associativa e de expressão, e reconheceu os fundamentos associados à prática de ações violentas de forma organizada, invocados pelo Conseil d’Etat. O TEDH reconheceu, ainda, a existência de uma base legal para os Decretos presidenciais, bem como a sua finalidade legítima de prevenção da violência. Ficou por examinar a legitimidade da medida numa sociedade democrática (a sua proporcionalidade). O TEDH verificou que nem os Decretos presidenciais nem a sua validação pelo Conseil d’Etat foram adotados apenas com base no discurso associativo, mas foram despoletados pelo fundamento, com relevância jurídica, da morte do militante antifascista e estudante de Sciences-Po, que chamou a atenção para toda esta materialidade. No fundo, as medidas tomadas pelas autoridades nem sequer olharam para a finalidade estatutária, o fim social, das associações e movimentos, mas para a sua prática, testemunhada por esta morte com violência.

Foi a partir de então que a investigação fez a luz sobre a atividade de milícias privadas desenvolvidas a partir das associações. Não apenas existia ideologia expressa num conjunto simbológico importante (como fardas, insígnias e outros adereços), como existia matéria factual imputável às associações e movimentos já decidida judicialmente. Um historial de violência física (além de destruições materiais) que antecedeu a morte do militante e estudante de Sciences-Po, o qual assumiu relevo no quadro dos valores de ordem pública democrática. Neste quadro factual, a ideologia associativa que denunciava em certos casos a “colaboração com o inimigo” (que inimigo?), como no caso da “Oeuvre sociale” era um cadinho no qual fermentava toda esta violência verificada na prática. Estava associada a este veículo ideológico a organização de “campos de formação paramilitar”, no sentido da formação de “soldados políticos“. Além destes exemplos significativos da colocação e da criação e desenvolvimento de uma ideologia de suporte à violência; vários outros são elencados no Acórdão do TEDH.

Por todas estas razões, e em particular pela materialização no terreno dos factos, entre os quais o homicídio do estudante de Sciences-Po (que desencadeou o conhecimento mais preciso de todo este complexo quadro), da violência (sendo esta materialização da violência um importante critério de decisão: a não ser em condições de perigo iminente em que é preciso agir antes da concretização de um dano pessoal, uma simples extremização do discurso ideológico não será suficiente para fundamentar uma intervenção da autoridade), o TEDH entendeu que o Estado estava em condições de verificar que as associações e movimentos se prevaleciam da sua liberdade associativa e de expressão com finalidades contrárias aos demais direitos previstos na CEDH, por conseguinte numa situação de abuso do direito convencional, proibido pelo art.º 17.º da CEDH.

Neste sentido, o Estado agiu legitimamente, tendo a sua intervenção sido proporcional numa sociedade democrática, as associações e movimentos não podem fazer-se valer das disposições dos art.ºs 11.º e 10.º da CEDH, relativas às liberdades de associação e de expressão. Não se verificou, assim, a violação dos direitos à liberdade de associação e de expressão, consagrados nos art.ºs 11.º e 10.º da CEDH.

O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.
 

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos