Reconhecimento de paternidade. Recurso a presunção de facto. Alegação da lealdade processual. Interesse superior da criança. Manutenção deste interesse quanto a direitos indisponíveis na idade adulta.
Canonne, neto de um empresário francês que inventou e comercializou a pastilha Valda, foi encarregado do mercado mundial desta pastilha (cabendo o mercado francês a outro elemento da empresa) e reside na Suíça.
Christiane exerceu até 1983, funções de direção num laboratório da empresa. Era casada e teve uma relação amorosa com Canonne. Durante o lapso de tempo relevante para o caso, ambos viajaram por conta dos negócios da empresa, suportando esta as deslocações.
Christiane divorciou-se, entretanto, e veio a casar com Jan Willem que reconheceu a paternidade de uma menina, Eléonore que nasceu no início das relações conjugais.
Éléonore, quando atingiu a maioridade, intentou uma ação de reconhecimento de paternidade contra Canonne.
O tribunal de Paris anulou a assunção de paternidade de Jan Willem, porque o ADN de ambos era incompatível.
E procurou submeter Canonne ao mesmo teste, o que este recusou. Deduzindo a conceção da relação amorosa existente entre Christiane e Canonne, naquele tempo, bem como das viagens de ambos por conta dos negócios da empresa, considerando que cabia a Canonne o ónus de se submeter aos testes de ADN se quisesse afastar a presunção, o tribunal de Paris deu como provada a paternidade deste e reconheceu assim o vínculo de filiação e paternidade entre Éléonore e Canonne.
Este recorreu, mas os recursos foram rejeitados. Na medida em que o tribunal tinha aceite os argumentos e meios de prova de Eléonore, rejeitado as alegações em sua defesa de Canonne, nomeadamente sobre a inviolabilidade da esfera íntima, que determinaria a insusceptibilidade de um exercício de coação no sentido de considerar adquirida uma prova a efetuar normalmente por um meio não aceite pelo interessado, Canonne alegou diante do TEDH uma violação do princípio da lealdade processual que deveria permitir-lhe contestar, com êxito, um conjunto de factos apresentado como prova, sob a égide do artigo 6º § 1 da CEDH.
Uma vez que as faturas das viagens não foram o único elemento de prova, mas todo um conjunto de factos sobre o relacionamento de Canonne e Christiane, o TEDH rejeitou o argumento relativo à alegada não lealdade processual na recolha de prova.
Canonne não se bastou com a invocação do artigo 6º § 1 da CEDH. Alegou, ainda, a violação do artigo 8º § 1, violação do seu direito à vida privada e familiar, materializado na construção e no reconhecimento de uma presunção de facto contra ele. O TEDH reconheceu, com efeito, existir uma intromissão no direito à vida privada de Canonne. Mas indagou da sua proporcionalidade, materializada no facto de a mesma ser necessária numa sociedade democrática. Recorreu, para o efeito, à sua própria jurisprudência anterior, nomeadamente os casos Mikulic c. Croácia de 2002 e Ebru e Tayfun Engin Colak c. Turquia (2006), em que afirmou que um sistema judicial que é incapaz de promover o reconhecimento da paternidade de uma criança está em contradição com a CEDH.
O TEDH pesou, ainda, o superior interesse de uma criança em ver a sua paternidade estabelecida. Embora, no momento da propositura da ação de reconhecimento da paternidade, Eléonore já fosse maior, este interesse superior, de que resulta um direito, mantém-se na sua esfera jurídica. E prevalece sobre o direito à inviolabilidade da esfera íntima de Canonne. Para mais, querendo afastar o exercício da presunção de facto a que recorreu o tribunal de Paris, Canonne tinha o ónus de se sujeitar ao teste ADN, teste que recusou efetuar.
Neste sentido, e porque existiu uma relação amorosa no momento da conceção de Eléonore, a qual foi comprovada por um conjunto forte de meios de prova relevante, e porque a paternidade de Jan Willem foi afastada por meio do teste ADN, o TEDH não admitiu a queixa de Canonne no domínio do artigo 8º da CEDH.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira