Simp

Está aqui

TEDH, 4ª Secção, Velkov c. Bulgária, Acórdão de 21 de julho de 2020

3 ago 2020

CEDH, Artigos 4.º Protocolo n.º 7 à Convenção europeia dos direitos humanos (CEDH), direito a não ser julgado, condenado e punido duas vezes pela mesma infração. Condenação em pena privativa de liberdade por tribunal administrativo seguida de condenação em pena privativa de liberdade por juízo criminal. A questão da qualificação como penal à luz do artigo 6.º § 1 da CEDH no plano da admissibilidade. No plano do mérito a fixação de critérios para legitimação de processos ditos mistos (administrativos e penais) para a resposta da sociedade às infrações. Violação da regra do ne bis in idem.

Velkov queixou-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) contra a Bulgária, pela violação do artigo 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, por ter sido condenado duas vezes pela mesma infração pelas jurisdições do Estado.

O queixoso é adepto do Lokomotiv Plovdiv, um clube de futebol da 1ª divisão na Bulgária. Em 2008, aquando de um jogo entre o Lokomotiv e outro clube deste país, o queixoso fez parte de grupo de adeptos que cometeu violência sobre os autocarros da equipa adversária naquela disputa desportiva, a tal ponto que este encontro teve de ser interrompido e reportado para outra data. A polícia chegou, restabeleceu a ordem, prendeu alguns adeptos entre os quais Velkov para quem o Ministério Público (o MP) determinou a prisão por 72 horas. Um primeiro processo por estas ofensas mereceu sentença, proferida por um tribunal do foro administrativo, em Maio de 2008, com condenação em pena de prisão por 15 dias e em pena acessória de proibição de assistir a competições desportivas por um período de dois anos. Este tribunal fundamentou a sua decisão nos testemunhos dos polícias que restabeleceram a ordem pública no dia dos acontecimentos. Em paralelo ao processo administrativo, o MP investigou e acusou o ora arguido da perturbação da ordem pública com relevância penal. Depoimentos de polícias e de particulares fundamentaram a acusação do MP e vieram a fundamentar a decisão judicial subsequente à acusação, à pronúncia e à audiência de julgamento. No termo de um julgamento que ocorreu em Janeiro de 2010, o arguido neste processo foi condenado em 2 anos de prisão, da qual foi descontado o tempo passado em prisão preventiva desde o dia dos acontecimentos (mas apenas a detenção com natureza de prisão preventiva). A pena de prisão foi, entretanto, substituída por termo de identidade e residência com o dever de permanência no domicílio, uma vez que um terço do cumprimento da pena já tinha sido, entretanto, prestado em prisão preventiva.

O TEDH estudou a ordem jurídica búlgara e notou que este ordenamento conhece o princípio ne bis in idem embora seja de invocação difícil perante a jurisdição de julgamento e condenação em primeira instância.

Pronunciando-se sobre a admissibilidade o TEDH entendeu que, para admitir a queixa, era necessária a qualificação como penal dos processos. Não houve dificuldade quanto ao processo dito penal na Bulgária, por esta qualificação estar assumida à partida; havia que saber se o processo administrativo tinha ou não natureza penal. Isto significa o envolvimento, para o efeito do entendimento da questão, do artigo 6.º § 1 da CEDH, sabendo que este artigo admite as questões civis e penais mas, por não as referir, exclui as matérias que relevam do direito administrativo (as quais acabam por entrar na apreciação do TEDH por meio da invocação de uma disposição de substância da CEDH). A noção de acusação em matéria penal é uma noção autónoma para o efeito da disposição do art.º 6.º§ 1 da CEDH. Três critérios decorrentes da jurisprudência Engel c. Países Baixos (8/06/76) caracterizam a infração como penal para a sua integração neste preceito da CEDH: a sua qualificação à luz do direito interno; a própria natureza da infração e o grau de severidade com que se pune a infração. No caso concreto, verificou-se que o 2.º processo tinha natureza penal A questão pôs-se então à luz do 1.º processo, o dito administrativo. Apesar de este se integrar no direito e no processo administrativo, teve este processo, na realidade, natureza penal? Apesar do direito administrativo búlgaro autorizar a prisão de alguém por uma ofensa administrativa, e de não ficar registada esta condenação no cadastro individual; a lei que proíbe a violência tem neste país, com caráter geral e abstrato, dirigia-se a toda e qualquer forma de violência (e não apenas àquela que se poderia subsumir à matéria administrativa), as coimas, sendo pesadas, tinham verdadeira dimensão de penas (multas), a possibilidade da prisão enquanto privação de liberdade, assume a clara dimensão de uma pena e não de uma mera sanção administrativa. Já a proibição de assistir a competições desportivas por dois anos é indiferente, não tendo necessariamente dimensão penal. Ainda assim os demais argumentos em torno deste processo administrativo apontam claramente para a natureza penal, verificando-se a condenação para julgamento, duas vezes pela mesma infração. 

Foi neste passo do raciocínio, uma vez que ainda estamos na fase da admissibilidade, e com o passo anterior sabemos que a questão é admissível para exame quanto à matéria, uma vez que os dois processos merecem a qualificação de penal, para o efeito do artigo 6.º § 1 da CEDH, logo da integração da questão na previsão do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, que o TEDH se ocupou da questão de saber se o queixoso esgotou os recursos internos. O problema central do debate foi aqui a exceção oposta pelo Governo de que o queixoso não citou expressamente a fonte da CEDH (art.º 4.º CEDHP7), nem tão pouco opôs ao segundo julgamento a exceção do respeito do princípio ne bis in idem. Apesar disto o TEDH verificou que embora esta regra exista na Bulgária, o modo como é interpretada e aplicada pelos tribunais nacionais torna a sua invocação desnecessária por, à partida, estar desprovida de uma qualquer possibilidade de sucesso. Já nos recursos judiciais que apresentou internamente, o queixoso levantou a questão. Enfim, um pedido de reabertura de processo só é possível, na Bulgária, por impulso do MP. Estas observações completaram, no plano da admissibilidade, aquelas que o TEDH teve de tecer em torno da qualificação dos processos. Foi assim admitida a queixa, num percurso relativamente raro de fundamentação na jurisprudência do TEDH (a admissibilidade é uma fase relativamente expedita do julgamento do processo de queixa), a qual encontra a sua própria justificação na complexidade real desta matéria.

O TEDH passou, a seguir, à análise do mérito da causa. A questão por resolver aqui foi, de novo, em torno do princípio ne bis in idem, sendo agora a de saber se processos ditos de natureza mista (administrativa e penal) se podem integrar na proibição do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH. O TEDH destacou os seguintes princípios gerais: o artigo 4.º do P7 não proíbe a existência de processos mistos desde que sejam observadas certas condições. Para poder ser mista a questão administrativa e a questão penal têm de estar ligadas por um elo material e temporal estreito, ou seja, que a combinação dos processos seja coerente. Isto significa que os fins processuais e os meios para os atingir têm de ser complementares e associados no tempo; e que as consequências desta organização do tratamento jurídico do comportamento em questão devem ser proporcionais e previsíveis para o destinatário da justiça, seja ele réu num processo e arguido no outro. Os elementos pertinentes para avaliar esta ligação estreita do administrativo e do penal são esta ligação ter uma finalidade complementar, a qual é apreciada em concreto e não de modo abstrato. A ligação temporal significa proximidade no tempo, não tem de significar concomitância ou simultaneidade dos processos. Aplicando estes princípios ao caso sub judice o TEDH verificou que o comportamento do queixoso deu lugar a 2 processos distintos, um designado administrativo, concluído em 2008, o outro, penal, concluído em 2010. O TEDH verificara, na admissibilidade que, quanto à natureza, os dois processos são penais para o efeito da disposição do artigo 6.º § 1 da CEDH, uma disposição cuja qualificação deve estar preenchida para poder ser acionada a disposição do art.º 4.º do P7 à CEDH. Também foi o mesmo o comportamento repreensivo que deu origem a ambos os processos (de natureza penal à luz da CEDH), os factos de Maio de 2008, em torno daquele jogo de futebol.

Ficou por resolver a questão da ligação suficientemente estreita entre os 2 processos no tempo e quanto à matéria, tendo em vista o objetivo prosseguido (prevenção geral e especial do crime). Tendo ambos os processos tido início em Maio de 2008, verificou-se a conexão temporal, apesar do desfasamento nas datas das sentenças de condenação (uma de 2008, a outra de 2010). Quanto à dimensão material, o TEDH não a vislumbrou, porque o processo qualificado internamente de administrativo visava apenas a manutenção da ordem pública e o processo penal assim designado internamente visava os fins das penas (prevenção geral e especial do crime). Por outro lado, na sentença de 2010 apenas foi descontada do tempo da pena o tempo da prisão preventiva, não a prisão dita administrativa. Tudo isto retirou a ligação material necessária à aceitação dos chamados processos mistos para o efeito do art.º 4.º do P7 à CEDH, tendo-se assim verificado a violação do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, violação da proibição de julgar, condenar e punir duas vezes pelo mesmo crime (ne bis in idem).

Mais uma vez este acórdão evidencia a riqueza do acervo técnico constante da jurisprudência do TEDH.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos