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TEDH, 5.ª Secção, Valverde Digon c. Espanha, Acórdão de 26 de Janeiro de 2022

6 fev 2023

CEDH, artigo 1.º do Protocolo n. 1 à CEDH, Direito de Propriedade.  Num casal em união de facto, a qual é conhecida, o parceiro sobrevivo perde o direito à prestação social de sobrevivência?

CEDH, Protocolo n.º 1, artigo 1.º, alegação de violação do direito de propriedade consistente na expetativa juridicamente titulada de vir a ser merecedor das prestações de sobrevivência do regime da Segurança social, mercê da tutela da confiança legitima espoletada pelo preenchimento da fattispecie da norma que as concede.

Sofia Valverde Digon queixou-se ao TEDH contra o Reino de Espanha, em Abril de 2019, com fundamento na recusa das autoridades espanholas em conceder-lhe uma pensão de sobrevivência pelo falecimento do companheiro.

Os Factos.

O casal viveu, desde 2004, na Catalunha, tendo ambos os seus elementos sido registados como residentes imediatamente. Adquiriram nomeadamente uma fração, para ambos, em 2004. Desta união de companheiros nasceu uma filha, no ano de 2008, tendo o casal formalizado uma união de facto registada, nos termos da lei, em 2014.

Infelizmente, o companheiro de género masculino faleceu, nesse mesmo ano, tendo a companheira sobreviva regressado à sua região de origem, Castilla la Mancha, Ciudad Real. Uma regra, de carácter eminentemente técnico, a cujo conhecimento a interessada não estará vinculada em termos rigorosos, determina, após um Acórdão do Tribunal Constitucional (o TC), que os parceiros em regime de união de facto, deviam ter já um tempo mínimo de registo de duração de 2 anos, para que o parceiro sobrevivo possa beneficiar das pensões de sobrevivência da segurança social (a SS). Pendia, ainda, sobre o parceiro sobrevivo, um regime sério de ónus probatório no sentido de deverem demonstrar, não apenas a condição de solteiro à data do pedido de pagamento das prestações de sobrevivência, mas também a vida marital até à data do óbito, neste caso, do parceiro de género masculino.

 

O Processo.

Sendo competentes para estas questões as instâncias laborais, a Requerente, ora queixosa, interpôs um recurso contencioso da decisão administrativa da SS junto do Tribunal de trabalho (o TT) da Ciudad Real. Entendia que o prazo de duração mínima de 2 anos podia ser afastado por meio de prova, atestando a existência de uma vida conjugal, para todos efeitos legais, e que tinha feito esta demonstração: a aquisição de uma fração comum, o nascimento de uma filha do casal. 

A queixa junto do TEDH.

Queixou-se a Requerente, invocando a violação do artigo 8.º § 1 da CDEH (o seu direito à vida privada e familiar), e do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH (direito de propriedade).

No plano da admissibilidade, o Governo opôs o não esgotamento dos recursos internos; uma exceção que o TEDH rejeitou por estes alegados recursos não serem adequados à solução efetiva do litígio que opõe esta cidadã ao Estado.

No tocante ao fundo da questão, o TEDH concentrou essencialmente a sua análise no art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, Direito de propriedade.

Aceitando embora que não existe qualquer expetativa de um particular, à titularidade de um direito de propriedade sobre, neste caso, uma pensão de sobrevivência; o TEDH admitiu, não obstante, que a tutela da confiança legítima, criada pela atribuição ope legis de um direito, a um particular, em razão da entrada deste na previsão legal, despoleta o correspondente direito ao preenchimento da estatuição normativa, ou seja, ao pagamento das pensões de sobrevivência, o qual, ope legis, passa a integrar o núcleo dos direitos de propriedade (analisados nas várias modalidades deste direito), protegido pelo art. 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH. Não sendo a expectativa legítima da requerente controvertida, há lugar ao preenchimento puro e simples da previsão legal normativa. E, neste caso particular, o próprio “interesse relevante do particular” enquanto “expectativa legítima” adquire a qualidade de “ posse relevante” para o efeito da previsão normativa do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, provocando a consequência aí prevista, ou seja a violação do direito de propriedade aí constante, no modo como este é construído pela letra do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, enriquecido pela jurisprudência constante (a “Ständige Rechtssprechung” dos alemães) do TEDH.

Tudo o mais, para o TEDH, é matéria de prova e esta faz-se, por qualquer meio, sendo a sua apreciação livre, não condicionada pela lei, da parte do julgador.

Esta noção de posse titulada, para o efeito do reconhecimento de um direito de propriedade, assentando embora à partida “apenas” numa expectativa legítima, à qual se junta um regime probatório livre que permite na substância o reconhecimento da existência formal do direito reclamado, é para o TEDH, um requisito característico do Estado de Direito (parágrafos 53 a 56 do Acórdão, em particular o par. 55).  

Por fim, o reconhecimento deste direito só pode ser afastado em casos, como o abuso na petição do particular e a imposição a este de um encargo probatório não excessivo.

Em contrapartida, verificada que seja a materialidade das circunstâncias que caracterizam formalmente a situação descrita, a qual tem previsão e merece estatuição legal; a exigência de encargos probatórios excessivos ofende claramente o princípio regra de proporcionalidade.

Após o enunciado destes princípios gerais, o TEDH passou ao exame concreto da questão, aplicando o seu conhecido “teste de convencionalidade “ (saber se a medida nacional é compatível com a CEDH mediante; 1. A sua existência legal anterior; 2. A previsibilidade da consequência desagradável para o particular; 3. A proporcionalidade, no sentido de saber da necessidade numa sociedade democrática da medida ora contestada).

O TEDH, reconhecendo, embora, a anterioridade legal da medida, aceitando que esta prossegue fins gerais de interesse público, não aceitou nem o 2.º ponto (não é forçosa a resposta negativa da Administração Pública, a AP, num requerimento desta natureza, falhando assim a previsibilidade da consequência negativa ou desagradável), nem o 3.º, pois não se compreende como é que um casal em comunhão de vida e habitação, com fração de titularidade comum e filha menor a cargo assumida, deveria registar-se com 2 anos de antecedência , numa espécie de previsão prudente da possível pré moriência de um dos elementos do casal em regime de união de facto, embora não registada mas provada (o antigo concubinato de certas regiões de Portugal, ainda hoje muito praticado). Existe, com efeito, algo, nesta demasiado forte exigência imposta aos pares de facto, no Reino de Espanha, a recordar tempos difíceis, não tão distantes assim. Para o TEDH, foi bastante para o efeito da proporcionalidade, desta feita do comportamento dos particulares (o seu não abuso de petição de apoio), os 3 meses em que se uniram registalmente, prévios ao falecimento do elemento masculino do casal. Dois anos, como exigência de anterioridade de registo em relação ao óbito de um dos elementos do casal de facto, era exigência não proporcional porque não necessária numa sociedade democrática, à luz do encargo e da imprevisibilidade que passou a onerar os ombros deste casal de facto.

A questão do conhecimento da lei a que ninguém se pode furtar (art. 6.º do Código Civil, “A ninguém aproveita o desconhecimento da lei”), é abordada, neste Acórdão, de uma maneira interessante e perspicaz, nos parágrafos 80 e 81. Pela simples razão prática, além do conhecimento técnico não estar disponível imediatamente a todos os interessados, de ser difícil prever se um dos elementos do par em concubinato irá falecer daí a dois anos. Com efeito, exigem-nos as disposições constitucionais e legais que saibamos que não devemos matar, violar, roubar, furtar, burlar, fugir ao fisco; e que tenhamos consciência de que, além do direito à igualdade (de género, de circunstâncias, laboral, de armas processuais, etc), temos direitos sindicáveis em tribunal (vg, mediante uma ação declaratória de condenação, vir a executar um crédito em juízo de execução cível); mas além deste particular, que já é algum, a representar o mínimo ético numa sociedade que se respeita e se ama (a proibição com cominação penal de abandonar um sinistrado na estrada ainda que não se tenha qualquer responsabilidade no acidente), não nos exige a sociedade jurídica (ou seria comunidade, ubi societas, ibi jus), o conhecimento detalhado das normas da derrama fiscal ou do prazo mínimo de registo na SS mediante o registo da união de facto, no sentido de poder vir a beneficiar das prestações por morte de um dos elementos do casal em regime de concubinato, quando este casal está feliz e pensa em tudo menos na morte (mas do telhado, diz a SS, vem uma telha deslocada do beiral a caminho…. O Diabo seja cego, surdo e mudo…).

Verificou-se, assim, para a maioria do coletivo da Seção, a violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 da CEDH. Mesmo assim, este interessante acórdão mereceu uma opinião concordante da parte dos Juízes Maria Elosegui (Espanha) e Simackova. Aceitando embora o argumento da violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH (direito de propriedade), as Senhoras Magistradas entenderam que este Acórdão ainda padece de uma conceção androcêntrica do direito, por ter sucedido o infortúnio descrito a muitas mulheres em união de facto em situações precárias. No fundo, para estas Magistradas, o TEDH pecou por não ter acrescentado à violação do direito de propriedade que realmente teve lugar, a violação do direito de propriedade em relação ao direito a não se ser discriminado do artigo 14.º . 1 da CEDH (artigo 14.º + art.º 1.º do Protocolo n.º 1, como se diz na gíria do TEDH). O centro do problema está num Acórdão com valor interpretativo (um pouco como a competência portuguesa do Tribunal Constitucional) do TC espanhol que interpretou a norma controvertida do regime espanhol da SS, dando lhe o valor de lei nova. Esta questão ganha maior realce e importância à luz do que segue, mas é desde já de aplaudir a Sra Juiza Eloseguy, além de Catedrática Espanhola, que, por ter sido Juíza do seu TC nacional, assume, sem peias, uma posição contrária à jurisdição de onde procede. É de encorajar numa Europa cuja maior característica ambiente é a passividade e a falta de sentido crítico, esta liberdade de iniciativa crítica, esta independência no acto de pensar e dizer o direito.

A segunda opinão é a dissidente. Três juízes em sete na Seção estiveram contra, o que significa que a opinião maioritária venceu por um cabelo. A opinião dissidente foi formulada pelos juízes Ravarini, Ranzoni e Guyomar.

Não entende ser aqui aplicável o art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, louvando-se em que uma expectativa legítima, por muito tutelada que seja, não pode nunca constituir um bem juridicamente tutelado, nem um título bastante para estar em juízo. Realçam, de interesse, a natureza contributiva, que subjaz neste caso, ao regime da SS espanhola, o que pode ser uma espada de dois gumes, uma vez que ambos os parceiros desta união de facto não registada também pagaram as suas contribuições à Previdência e que a parceira sobreviva as continua a pagar (a regra fiscal aplicável à SS na Europa continental da não consignação de receitas orçamentais impede a consideração dos benefícios sociais por analogia com um regime de fundos de pensões que pertencem exclusivamente ao seu titular e o retribuem na proporção das suas entradas para o fundo/ para o acesso ao benefício basta o preenchimento da previsão legal que despoleta a correspondente estatuição, ou nunca a SS poderia ser apelidada de regime de solidariedade social).

O seu segundo argumento, já, é mais impressionante, uma vez que se apoia nas regras de sucessão de leis no tempo, opondo à interessada o julgamento controvertido do TC espanhol (que vem a seguir a um Acórdão vantajoso para um interessado, do TEDH, levando o leitor a questionar-se se o TC Espanhol não terá aqui pretendido reforçar a margem de apreciação do Estado Espanhol, o que releva mesmo assim de alguma especulação intelectual, nunca proibida, é certo, mas que pode ser tida como arriscada pela sua carga sugestiva num comentário de jurisprudência), o qual terá facultado a interpretação obrigatória no quadro das suas funções de órgão do Estado (tratando se de TC, não confundir com o problema que se colocou em Portugal, da constitucionalidade dos assentos do STJ que talvez nem mereça o mesmo tratamento na vizinha Espanha: o TC, nestas funções, também em Portugal, está colocado muito de fora do sistema judicial formal presidido pelo STJ e a hierarquia dos tribunais dentro da regra da separação dos poderes legislativo, executivo e judicial).

É aqui que assume todo o interesse a posição das Sras. Juízas Elosegui e Scimakova, de que teria sido positiva a autonomização da dimensão de discriminação desta queixa (art.º 1.º Protocolo 1 à CEDH + art.º 14.º CEDH, além de art.º 1.º Protocolo n.º 1 à CEDH, logo os dois conjuntos de preceitos), pois isto teria afastado, para não ficarem mais dúvidas, o valor da interpretação (discriminatória e androcêntrica) dado à lei, como se de lei nova se tratasse, pelo TC castelhano.

Entendem, por fim, estes três juízes dissidentes, que a evolução do regime legal na ótica da interpretação do TC Espanhol entra na discricionariedade nacional, entrando na margem de apreciação do Estado reconhecida pelo próprio TEDH.

Embora a parcialidade do leitor destes Acórdãos já resulte assumida claramente nesta divulgação, esta argumentação, por ter também o seu valor e o seu peso, transforma este debate num possível sem-fim judiciário, o qual foi resolvido, com felicidade, no caso concreto pela aplicação da regra democrática, também existente no direito das organizações judiciárias, da maioria apenas de quatro juízes em sete.

Já a questão mais futurista evocada pelas Sras Juízas Eloseguy e Scimakova, de existir um Acórdão do TEDH nesta questão (pelo visto recorrente), que possa operar como um precedente a estruturar uma possível futura declaração (o direito do TEDH é também declaratório de condenação, sendo o órgão executivo, além da boa vontade dos Estados no sentido de cumprirem [alguns acórdãos não são cumpridos], da CEDH, o Serviço de Execução dos Acórdãos, o qual depende do Comité de Ministros do CoE, logo… o mais alto nível, dos Ministros dos Negócios Estrangeiros se for necessário.., como se vê… Da importância da boa execução de um crédito em direito, ou quem assistiria o trabalhador credor de um título executivo judicial se não fosse o diligente solicitador de execução a levar-lhe o título ao juízo executivo competente? Ou da precariedade de juízos politico ideológicos injustos por muito prematuros quando não de má fé) ficou, e isto é que é agora importante, pura e simplesmente, de fora.  Mais uma vez o TEDH não passa dos 12 valores aptos para dispensar a oral, mas não passa com distinção, cum laude, pois não trabalha e destarte, não previne o damnum imminens


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos