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TEDH, 5.ª Secção, Ugulava c. Geórgia, Queixa n.º 5432/15, Acórdão de 9 de fevereiro de 2022

9 mar 2023

CEDH, artigo 5.º § 1, e 5.º §§ 3 e 4, e § 4 mais art. 18.º da CEDH. Direitos à liberdade e segurança de um arguido em processo penal, dever de apresentação imediata a um juiz, direito ao recurso da detenção, conexão eventual das violações com motivações políticas.

CEDH, alegação de violação dos artigos 5.º § 1, e 5.º §§ 3 e 4, e § 4 com art. 18.º, invocação das violações destes preceitos por político acusado e julgado por várias fraudes, que excecionou motivação política. O problema da complexidade de processo e dos prazos de prisão preventiva, com o interesse de se tratarem de vários processos com diferentes prazos de prisão preventiva a sobreporem-se, o que provocou o alongamento, não aceitável à luz do direito à liberdade e segurança, do tempo passado em prisão preventiva. Violação dos artigos 5.º § 1 e e 5.º § 3 da CEDH.

Os Factos.

O queixoso, Ugulava era um dos líderes do Movimento Nacional Unido (o MNU), um Partido Politico que governou a Geórgia, de Novembro de 2003, a Outubro de 2012.

Foi perseguido judicialmente, por fraude e evasão fiscal e por branqueamento de capitais, bem como exercício de violência sobre colegas de atividade partidária, e por coação de testemunhas. Os processos, abertos contra ele em diferentes momentos temporais, foram em número de cinco. Seja desde já prevenido para maior conforto de quem ler esta divulgação, com diferentes prazos de prisão preventiva, uma vez que o prazo legal, sendo, embora, todo o mesmo, como cada processo tendo início em momento diferente, os tempos passados em prisão preventiva sobrepuseram-se, a partir da data inicial de detenção e prisão. É assim, à semelhança do TEDH, necessário descrever estes processos, um por um, no sentido do melhor entendimento das situações, ações ou omissões, e reações de cada um dos intervenientes.

1. O primeiro processo foi aberto por fraude e evasão fiscal, em relação às atividades de uma empresa privada, a Akhali Rike LLC. A acusação consistia no desvio de fundos públicos e no uso de documentos fiscais fraudulentos, integrando o crime de falsificação de documentos. O Ministério Público (o MP) chegou à Akhali Rike LLC por meio da investigação das atividades da Tbilservice Group, a qual operava junto do Gabinete do Presidente da Câmara de Tbilissi, o Sr Ugulava, o queixoso, do Partido também no poder naquele tempo, ao nível do binómio maioria Parlamentar e Executivo.

Embora o MP tivesse pedido, ao tribunal, a aplicação ao arguido de uma caução de um montante relativamente elevado, o Tribunal entendeu que o mesmo, ora queixoso, podia continuar em liberdade sem prestação de caução.

O pedido do MP, de afastar o queixoso das suas funções de Presidente da Câmara de Tbilissi, uma suspensão provisória de funções, até ao julgamento do caso, também foi afastado.

O arguido foi condenado, em 2015, neste processo, a uma pena de 4 anos e ½ de prisão. Foi imediatamente detido e preso, mostrando ser o sistema penal da Geórgia um sistema em que a presunção de inocência acaba com a condenação em primeira instância, sem prejuízo dos direitos de recurso, o que se torna numa solução de princípio mais favorável para os presos preventivos, pois, passando a definitivos, melhoram as suas condições de vida em cumprimento de pena. Este ponto foi denunciado e explicado quanto a Portugal, pelo então Alto Comissário do Conselho da Europa (o CoE) para os direitos humanos, Alvaro Gil Robles, em 2003. Estas posições constam publicamente da página do CoE em www.coe.int

Neste processo, em 2017, tendo o Tribunal de Instância Superior Criminal de Tbilissi recebido um recurso de apelação da parte do arguido, ora queixoso, requalificou a pena no sentido da pena aplicada ao crime do abuso de poderes diminuir para 1 ano, 3 meses e 22 dias, tendo o então arguido ora queixoso sido imediatamente colocado em liberdade por cumprimento de pena.

2. O segundo processo. Tinha sido aberta outra investigação criminal em 2013 (a primeira era também de 2013) que não foi apensada ao primeiro processo pelas autoridades. O arguido, ora queixoso, era acusado do seu envolvimento nas atividades do fundo de reabilitação e desenvolvimento da Velha Tbilissi. Tendo o MP requerido a prisão preventiva do arguido, esta foi recusada pelo tribunal, que lhe aplicou a imposição de uma caução de valor bastante elevado.

O MPº requereu, também, a suspensão das funções de Presidente da Câmara até à decisão da causa; este requerimento veio a ser aceite pelo Tribunal e a respetiva decisão foi mantida pelo tribunal de instância superior de Tbilissi competente para o processo.

Em 2018 O Tribunal de 1.ª instância criminal de Tbilissi requalificou a acusação pelo crime de burla agravada e condenou o arguido, ora queixoso, por abuso de poder. Foi condenado, neste processo, em pena de prisão de 9 anos, a qual, ex vi de uma lei de amnistia entretanto promulgada, foi reduzida na prática a 3 anos, 2 meses e 8 dias, em razão do tempo de prisão já cumprido no 1.º processo penal. 

3. No terceiro processo, aberto em 2014, o queixoso foi ouvido na qualidade de testemunha num processo relativo às atividades da CT Park LLC, uma empresa gestora de parques de estacionamento de Tbilissi. O queixoso opôs à sua convocatória para prestar declarações, uma sua deslocação a Kyiev no mesmo momento, a qual era do conhecimento do MP uma vez que tinha comunicado o seu plano de viagens, com antecedência, às autoridades judiciais. Esta viagem inscrevia-se no quadro das suas atividades políticas.

Apresentou-se, no regresso, para prestar as referidas declarações, e foi então notificado da sua constituição como arguido pelo crime de burla, neste processo em que era investigada a CT Park LLC.

O MP requereu a entrega dos documentos de identidade e passaporte do arguido, ora queixoso, o que lhe foi negado pelo Tribunal. Este decidiu, ainda, a manutenção em liberdade do queixoso, sem imposição de caução. Mais uma vez, o queixoso comunicou às autoridades judiciais, as suas intenções de viajar.

O desfecho deste processo é desconhecido do TEDH.

4. O quarto processo contra o queixoso foi aberto, também em 2014, em razão da sua alegada organização e participação de um incidente violento no Gabinete da Comissão Eleitoral de Marneuili.

Doze testemunhas foram ouvidas, as quais identificaram o arguido, ora queixoso como participante num violento confronto, suportada a prova por um registo vídeo dos factos. Não obstante, o próprio arguido, ora queixoso não foi ouvido neste momento processual.

Neste mesmo ano de 2014, um outro quadro processual penal foi aberto contra o arguido, ora queixoso por alegado envolvimento num esquema de branqueamento de capitais. Fora denunciado por dois indivíduos, R. e G. por carta, os quais diziam que o arguido, ora queixoso os tinha convidado a participar em esquema fraudulento implicando as suas off shores.

Convocado para prestar declarações, o arguido, ora queixoso não compareceu, tendo invocado uma viagem a Kiyev, em razão da sua atividade politica, viagem já comunicada às autoridades judiciais na apresentação do seu plano anula de viagens. Aceitou, mesmo assim, reduzir o seu tempo de estadia em Kiyev para estar à disponibilidade das autoridades. A testemunha G. queixou-se ao MP de ter recebido ameaças do arguido e manifestou a sua vontade em cooperar com o MP a este respeito.

Neste quadro processual (a agressão alegadamente prevista e praticada de uma comissão eleitoral mais a investigação provocada pelas denúncias de R e G) o arguido, ora queixoso foi detido e preso à sua chegada ao aeroporto internacional de Tbilissi em julho de 2014. Segundo o auto de detenção e prisão, foi constituído arguido do crime de branqueamento agravado de capitais. A detenção e prisão foi fundamentada no perigo de fuga, destruição de prova e coação de testemunhas. O arguido, ora queixoso recusou assinar o auto de detenção e prisão. Os seus advogados foram imediatamente impedidos, em razão das disposições próprias ao segredo de justiça que permite a não comunicação imediata ao arguido e seus defensores dos fundamentos e da natureza da acusação contra ele levada a efeito, no respeito de um determinado prazo legal, mediante decisão judicial. Requereram, não obstante, informações detalhadas sobre as novas acusações. Queixaram-se em nome do arguido, ora queixoso, por este não ter sido informado dos fundamentos e da natureza da acusação dirigida contra ele. O arguido, ora queixoso foi mantido incomunicado (uma situação diferente do segredo de instrução, em que a pessoa não fica isolada do resto da comunidade, mais do que os demais reclusos presos, e em que se conhecem os seus paradeiro e provável destino, durante cerca de 4 a 5 horas. A seguir, foi levantada a situação de segredo, o que configura um tempo excecionalmente curto de segredo de justiça. Nem estas violações (de uma detenção incomunicado por 4 a 5 horas, ou de um prazo longo de segredo de justiça, que, este, não ocorreu) foram, tampouco, levantadas pelos advogados de defesa. Dias depois era confirmada a sua constituição como arguido (a qual não deve, em caso de detenção e prisão nunca exceder as 48 horas previstas na lei). Os denunciantes R e G foram igualmente constituídos arguidos. Os movimentos anormais de capitais detetados eram no valor de 1.500.000 US $ numa conta e de 760.000 US $ noutra. Foi, assim, o arguido, ora queixoso, acusado do crime de branqueamento de capitais de capitais agravado. Era também aqui acusado da falsificação de documentos fiscais.

Quanto à acusação pelo crime de violência por ele preparada contra uma comissão eleitoral, em Marneuilli, esta destinar-se ia a impedir a eleição de um concorrente do mesmo partido. Pelo que não se tratará de eleições gerais, mas de eleições intrapartidárias. Foi acusado pelos dois fundamentos de organização do crime e de autoria e participação na concretização do mesmo.

Foi neste quadro, que o MP pediu a primeira colocação em prisão preventiva do arguido, ora queixoso pelos perigos de fuga, dissipação de prova e coação de testemunhas. Finalmente, a prossecução da atividade criminosa caso continuasse em liberdade, era invocada como fundamento deste pedido.

Segundo os advogados, o arguido, ora queixoso não fora colhido à chegada no aeroporto em cumprimento de um mandado judicial. Também não seriam bastantes para a prisão do queixoso, os indícios disponíveis. Os perigos invocados para a detenção preventiva não estariam suportados por qualquer prova em relação ao seu comportamento, uma vez que o tinha pautado pela cooperação com as autoridades judiciais e não judiciais, nomeadamente, a comunicação atempada do seu plano de viagens. Por repetidas ocasiões se ausentara da Geórgia e nunca tentara fugir.

Ainda assim, com o apoio do MP, o Tribunal de Tbilissi resolveu manter o arguido, ora queixoso em prisão preventiva. Quanto às suas viagens, o Tribunal objetou, em suas razões, que o arguido, ora queixoso nunca as suspendera. Esta suspensão, a ter acontecido, teria sido sinal de respeito pelas autoridades. O Tribunal de instância superior criminal competente manteve o decidido quanto à prisão preventiva do queixoso.

Foi neste processo que teve lugar uma conferência prévia ao julgamento penal, a que corresponde em processo civil a tentativa de conciliação das partes, a qual não se processa na sala de audiências, na qual o queixoso tornou a solicitar a sua convocação em liberdade pelas razões expostas. Por despacho proferido verbalmente, de que ficou suporte registado em áudio-vídeo, o juiz recusou este pedido do queixoso no sentido da sua colocação em liberdade enquanto aguardava julgamento.

5. O quinto processo penal instaurado contra o arguido, ora queixoso teve por fundamento o seu alegado envolvimento na atividade da televisão Iridi que pertencia a uma outra empresa, a Lynx Ltd. Esta constituída segundo o direito anglo-saxónico. Mais uma vez o arguido, ora queixoso foi acusado de burla e branqueamento de capitais. E é neste quadro que se processa o segundo período de prisão preventiva relevante para o efeito da análise deste complexo processo e do correspondente Acórdão do TEDH.

Os fundamentos do pedido de prisão preventiva do arguido, ora queixoso foram o perigo de fuga, dissipação de prova e continuação da atividade criminosa. E como no anterior pedido, formulado e cumprido no anterior processo, o perigo de coagir as testemunhas. Embora tenham recorrido, o recurso quanto este ponto do processo foi declarado improcedente pela instância criminal superior de Tbilissi. Em 2015, o arguido, ora queixoso pediu a reavaliação da sua prisão preventiva (a qual obedece a prazos de realização periódica nas leis de processo penal, em sede de execução de sentença de condenação em benefício dos condenados em cumprimento de pena). O desfecho deste processo é desconhecido.

Também em 2015, o arguido, ora queixoso apresentou uma petição ao Tribunal Constitucional (o TC) com o argumento da duração anormal da prisão preventiva, que nem a especial complexidade do processo autorizaria, em virtude do jogo cumulado destes dois processos penais e das correspondentes medidas de prisão preventiva.

O TC, agindo no quadro dos seus poderes, apreciou os dois períodos em curso de prisão preventiva e as correspondentes datas de início. Que, obviamente alongavam de modo anormal o período legalmente admissível de prisão preventiva, bem para além dos tempos legalmente admitidos. Admitiu que, conquanto fossem respeitadas as normas substantivas e processuais aplicáveis (e quanto ao mais, não se consegue vislumbrar qualquer abuso da parte das autoridades judiciais nestes 5 processos penais, dos quais os 2 últimos levantam a difícil questão desta longa prisão preventiva), nada na Constituição e nas leis da Geórgia se opunha à verificação da sobreposição de prazos de prisão preventiva, no qual o período de prisão preventiva no âmbito de um processo aberto depois de um primeiro em que o mesmo arguido nos dois processos já se encontrava em prisão preventiva, era prolongado de modo anormal pelo segundo.

Numa segunda petição, também desse ano, dirigida ao TC, o arguido ora queixoso voltou a queixar-se do tempo anormalmente longo da sua prisão preventiva, o que desta vez foi concedido por esta alta instância, tendo vindo o queixoso a ser, enfim, colocado em liberdade.

Em 2017, o Governo informou o TEDH de que o queixoso fora definitivamente colocado em liberdade.

A queixa ao TEDH incidiu sobre a violação dos seus direitos ao abrigo do art.º 5.º § 1 da CEDH (direito à liberdade e segurança), do artigo 5.º § 3, direito à imediata apresentação a um magistrado para validação da detenção (este imediato se entendendo em prazo de 48h se se encontrar preso em esquadra de polícia), e art.º 5.º § 4, direito a recurso da detenção, isolado e em articulação com o art.º 18.º da CEDH (restrições não correspondentes às da CEDH ao exercício de direitos dos particulares).

Novamente importa distinguir as várias etapas do raciocínio do TEDH. Mas por ser esta parte, a apreciação pelo Tribunal, órgão de soberania, importa coloca-la na summa divisio apreendida por Sto. Agostinho, e que lhe mereceu a formação em Direito, da parte de um pretor, Romaniano, que se tinha deslocado às províncias Romanas de África; a recrutar estudantes de direito para o serviço do Império, e que viria em seu exercício posterior da advocacia a crítica da Sua Mãe, Sta. Mónica. Pelo desprezo em que eram deixadas as vítimas, forçadas ao perdão, perante a desenvolvida oratória do então advogado que era Sto. Agostinho (pois são difíceis e avessos os caminhos da Santidade, o então Orador ainda não a alcançara); a Matéria de Direito.

O Direito.

1. a. O art.º 5.º § 1 foi o preceito convencional sobre o qual o TEDH se debruçou em primeiro lugar. Não se tendo verificado quaisquer objeções das partes, e não existindo fundamento em sentido contrário, o TEDH admitiu este segmento de queixa.

Quando ao fundo, o TEDH indicou o seu quadro de referência como sendo formado pelos seus Acórdãos, proferidos nos casos S.V. e D.K. [Grande Chambre, GC], de 22/11/2018; Merasbishvili c. Geórgia, de 28/11/2017; Magnitskiy e outros c. Rússia, de 27/08/2019; e Selahattin Demirtas c. Turquia, de 22/11/2020, o último objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página eletrónica.

Aplicando o seu conhecido teste de convencionalidade (a saber a previsão legal e o fim legítimo da medida, a sua previsibilidade, bem como a sua necessidade numa sociedade democrática, ou seja a sua proporcionalidade), o TEDH reconheceu, além da previsão legal da medida, que esta prosseguia um fim legítimo, uma vez que a sua validade, no sentido de que não foi contestado pelo arguido que teria cometido estes crimes (ou seja não afirmou que não os cometeu). Quanto à previsibilidade, e à proporcionalidade, estas ficaram para ser melhor examinadas. Estas questões são a da arbitrariedade desta prisão preventiva. Uma prisão é arbitrária (ou seja integra a noção de ausência de causa aristotélica, uma façanha exclusiva do género humano; traduzida na ausência de causa racional, se existir alguma simulação [deceipt] ou má-fé da parte das autoridades [quando estas agem arbitrariamente]). O TEDH remeteu nesta parte do seu Acórdão, a questão da relevância (e do debate pelas partes da detenção e prisão do queixoso) para o exame mais particular da violação do art.º 5.º § 3 da CEDH (o problema da apresentação imediata do detido a magistrado para validar a detenção e prisão).

O TEDH emitiu, mesmo assim, uma asserção prejudicial, no sentido de não existir aparência de violação neste segmento de queixa, uma vez que o Tribunal de Tbilissi manteve os documentos de identificação do queixoso bem como o seu passaporte, na posse deste. Por seu turno, o queixoso não se queixou exatamente da identidade das suas várias constituições de arguido (a constituição de arguido, no campo dos fundamentos, é diferente dos vários conjuntos de matéria de facto). Mas o TEDH acabou por entender, em sede geral, ter sido violado o art.º 5.º § 1 da CEDH, este primeiro desbaste da matéria merecendo um tratamento mais profundo. O Tribunal decidiu serem de examinar os vários períodos de prisão preventiva do queixoso, e como o faz para muitos outros temas (por exemplo, além dos prazos de prisão preventiva os tempos de demora do processo, para o efeito de saber quais são os trechos temporais imputáveis à negligência do Estado), distinguiu alguns períodos temporais.

1.b. Foi determinante o período de 2 de Abril a 17 de setembro de 2015. Neste caso, o TEDH debruçou-se sobre a questão de saber se a admitida (pelo TC) sobreposição dos vários tempos de prisão preventiva em diferentes processos, embora não existisse matéria de facto adicional, em relação às datas de constituição de arguido e colocação em prisão preventiva; muito para além do que a lei impõe e, bem assim, a excecional complexidade do processo, ainda é tolerada no quadro da previsão do art.º 5.º § 1 da CEDH, lido, não numa interpretação localista, mas numa interpretação mais genuína, por autêntica (além das exposições de motivos, a dada pelo TEDH, em razão da supranacionalidade do texto legal que é a CEDH). Este problema, assim colocado, criou um alerta ao TEDH, no sentido de determinar se esta filosofia do TC da Geórgia ainda se coaduna com a letra e o espírito do art.º 5.º § 1 da CEDH, como está construído. É que o exercício descrito como possível pelo TC pode contender com a noção de proscrição do arbítrio (prevista nas Constituições europeias, como a Portuguesa de 2/04/1976 que contém a mesma expressão), do art.º 5.º § 1 da CEDH. Citando sua anterior jurisprudência, o TEDH entendeu que o Governo falhou, apesar da apresentação do Acórdão do TC que juntou ao processo, em justificar a não arbitrariedade desta prática perante o direito estrito (ius strictum), do art.º 5.º § 1 da CEDH (§§ 77-83 do Acórdão). Nos dois processos penais, a invocação e o exame, em cada um, dos mesmos factos, em particular no segundo, o não aproveitamento da prova feita no primeiro (podendo chegar-se ao absurdo de num processo a validação de prova ir num sentido e no outro em sentido diverso, quiçá oposto, a desafiar a coerência da produção jurisprudencial penal, observação do modesto exegeta desta magnifica jurisprudência) provocou uma inaceitável delonga, indo muito além da natural demora do tempo judicial em processos de especial complexidade como este. Verificou-se, assim, a violação do art.º 5.º § 1 da CEDH. Pois na prática, a duplicação dos exames da matéria de facto acabava por fazerem equivaler-se as próprias constituições de arguido (acabando, mais uma deste humilde copista, por consistir numa intolerável violação do direito a não ser julgado duas vezes pelos mesmos fundamentos).

2. a. O TEDH passou, a seguir, ao exame da violação alegada dos preceitos dos §§ 3 (apresentação imediata a um magistrado para validar a detenção e prisão), e 4 (direito ao recurso da detenção e prisão) do artigo 5.º da CEDH. Mais uma vez, perante a falta de objeções das partes, e a regularidade formal deste segmento de queixa, o TEDH admitiu-o.

Quanto ao mérito ou fundo da queixa, o TEDH fixou o thema decidendum deste segmento de queixa na rigorosa letra dos preceitos. Não aceitou interpretações paralelas dos factos que viessem a condicionar a sua exata avaliação. Sucede que a queixa relativa à não apresentação imediata a magistrado para validação da detenção e prisão, é relativa ao protesto que o queixoso formulou no quadro de uma das investigações, em que a prisão preventiva foi mantida por despacho verbal suportado em registo áudio-vídeo. Para o TEDH, a verificar-se alguma violação do art.º 5.º neste segmento de queixa, será a do § 4 deste preceito convencional (direito ao recurso da detenção e prisão) pois o arguido, ora queixoso já se encontrava em prisão preventiva por um tempo longo. O TEDH, “Senhor da qualificação dos factos” na sua consagrada e conhecida formulação (Master of the qualification of facts), § 91, reduziu este segmento de queixa à apreciação da existência ou não de uma violação do art.º 5.º § 4 da CEDH (o direito ao recurso da detenção e prisão).

Novamente, o TEDH referiu a sua jurisprudência quadro para a apreciação deste segmento da queixa. Encontra-se vertida nos seus Acórdãos proferidos nos casos Buzadji c. Moldova [GC], 5/06/ 2016, e Merabishvili, já aqui citado. Pela razão exposta há pouco, na fixação do thema decidendum deste segmento de queixa, o TEDH considerou nesta sede, também, a eventual violação do art.º 5.º § 3 da CEDH. Quanto à relevância do art.º 5.º § 1 em que uma parte da sua apreciação (em 1. Da matéria de Direito) foi remetida para análise posterior, ou seja, aqui, a sua relevância está na verificação concreta da data a partir da qual esta disposição foi violada. Pois, a partir de então, no entender do TEDH, se poderá avaliar a violação invocada do art.º5.º § 4 da CEDH (direito ao recurso da detenção e prisão).

2.b. Tendo a prisão preventiva sido contrária ao art.º 5.º § 1 da CEDH a partir de 2/04/2015, a prisão preventiva cuja (i)licitude para o efeito do art.º 5.º § 4, cumpre apreciar, tem a duração de 9 meses no total.

Que o inicial perigo de fuga, de dissipação de prova, e de coação de testemunhas, à partida deste segundo processo penal fossem reais e sérios, na expressão do TEDH, é coisa que este aceita como clara, obviamente. Também é gravíssima a obstrução a uma eleição partidária, em contexto de violência imputada ao arguido, ora queixoso a merecer especial dureza da parte da Justiça, naturalmente. As razões para esta detenção e prisão preventiva, eram, pois, razoáveis e bastantes, além de fundamentadas na Lei.

Mas o problema da licitude da prisão preventiva toma peso, ganha corpo, como alguém que envelhece, com o passar do tempo. E quando, na entrevista do juiz, o arguido, ora queixoso solicita a justificação por escrito da manutenção da prisão preventiva, o juiz opõe-lhe ser esta a prática corrente. Houve, além da remissão para o suporte áudio e vídeo que se compreende perfeitamente hoje, à luz da matéria a provar, pois o suporte existe, é uma prática correta em termos de gestão documental (conquanto, o suporte, ou a sua cópia venha a ser facultado ao interessado, como as gravações de audiência em Portugal, a desgravar pelos advogados, sempre controladas pelo coletivo que esteve presente), uma renovação automática, por remissão à prática corrente, da manutenção em prisão preventiva.

Para o TEDH, ainda assim, há progressos neste caso Ugulava em relação ao anterior Merabishvili, em que não existia qualquer fundamentação, pois existe precisamente o suporte áudio vídeo da Conferência. O qual, à luz da eficiência da justiça porque se bate nomeadamente a CEPEJ do CoE, é perfeitamente admitido como documento válido pelo TEDH.

2.c. Neste ponto, o TEDH apenas teve de passar, perante tanto trabalho de desbaste e qualificação da matéria, à luz da CEDH, à apreciação sobre se se mantinham válidos os fundamentos da prisão preventiva segundo o pedido do MP (a posição do Governo), e por outro se a investigação não teria já, no plano da realidade de facto, acabado (a posição do queixoso). Neste segundo caso, a verificar-se, a manutenção da prisão preventiva do arguido, ora queixoso já estaria no seio da proscrição do arbítrio do art.º 5.º § 4 da CEDH.

Para o TEDH, o pior perigo a merecer uma longa prisão preventiva, o da coação de testemunha, diminui, à medida que a prova criminal contra o arguido se consolida. Logo, se como sustentou o queixoso, já estava consolidada prova bastante para não se dizer toda, mostrando-se assim concluída a investigação criminal, a manutenção do arguido em prisão preventiva seria totalmente arbitrária.

2. d. O TEDH entendeu, ainda, que o Tribunal criminal de Tbilissi inverteu a presunção judicial no sentido da colocação em liberdade (ou seja criando uma presunção de culpa quando o processo respeita a presunção de inocência), contra a exigência severa da restrição à detenção, contida no art.º 5.º da CEDH (Do espírito das leis, como diria o Juiz Montesquieu, no Século XVIII). Por estas razões, a prisão preventiva do arguido deixou de estar assente em fundamentos bastantes, em violação do artigo 5.º § 3 do CEDH.

2. e. Será o modesto copista de ordens menores acusado de se dedicar a minudências, obviamente, claro está. Mas destas é feita a vida judicial, a espelhar a vida quotidiana de mulheres e homens, sujeitos aos Desígnios do Destino.  

Acaba o TEDH, no § 112 deste Acórdão, por considerar a quebra do art.º 5.º § 3 da CEDH( comparência imediata a magistrado para validar a detenção e prisão [seja observado que o âmbito deste § 3 é sempre o da colocação em prisão preventiva]), e não do art.º. 5.º § 4 (direito ao recurso da detenção, no qual se examinam todos os fundamentos ou as violações suscetíveis de provocar a conclusão de que o art.º 5.º § 1 está a ser cumprido ou violado, uma vez que a CEDH é direito interno por via da ratificação dos Tratados internacionais). Depois da fixação tão determinada do thema decidendum, cumpre perguntar se estamos perante uma gralha do revisor de provas ou a intenção do TEDH?

No sentido da gralha, aponta o facto de a conferência pré audiência de julgamento ter sido uma etapa (e sê-lo de resto, comumente), em que já vai longa a prisão preventiva efetivamente cumprida.

3. a. No fim da sua importante e detalhada apreciação, o TEDH examinou o segmento de queixa relativo à violação do art.º 18.º da CEDH em conjunção com o art.º 5.º § 1 da CEDH; segundo o qual cada restrição a cada artigo da CEDH deve respeitar a teleologia da sua colocação, preceito a preceito, na CEDH.

A razão de queixa (grief), aqui, jaz, na vontade em excluir o queixoso da vida política, onde ele estaria a perturbar os seus adversários, nomeadamente, intrapartidários.

Não existindo objeções das partes nem fundamentos de irregularidade, o TEDH admitiu este segmento da queixa.

Mais uma vez, quanto ao fundo, o TEDH fixou a sua jurisprudência quadro nos Acórdãos que proferiu nos casos Navalny c. Rússia[GC], 15/11/2018, e em Merabshvili supra citado. Ainda considerou (a contrario) o Acórdão proferido no caso Mammadov c. Azerbaijão [GC], de 29/05/2019, este último Acórdão, também objeto de Divulgação, a seu tempo nesta página eletrónica. 

3.b. Os standards ou princípios gerais são os de que:

- O art.º 18.º da CEDH se destina a prevenir o desvio de poder para fins outros daquele para o qual foi concedido;

- O art.º 18.º da CEDH se destina a evitar o uso das disposições da CEDH para fins diversos dos fins nela previstos.

Cada um destes standards contribui para o desenho claro do outro, obviamente.

Isto implica um particular cuidado na apreciação das queixas em torno do art.º 18.º da CEDH, pois a maior parte das violações das disposições da CEDH, que acontecem pelos mais variados motivos, não se destinam a confortar, na prática um qualquer desvio e abuso de poder, uma vez este assumido, a perseguir concretamente os cidadãos a partir de uma como que centralidade absolutista deste poder.

3. c. O ponto de partida da investigação a que o TEDH passa a dedicar-se neste ponto, está na afirmação, por parte do queixoso, de que estes períodos longos da prisão preventiva coincidiram com os tempos da sua forte atividade politica. Mais uma vez o tempo, como também sucedeu para a aferição nos casos portugueses, da violação do direito de propriedade do art.º 1.º § 1 do Protocolo n.1, à CEDH, pela demora da indemnização prevista na Lei das Expropriações de 1977, apesar da restituição integral das terras intervencionadas num longo processo de desmantelamento da chamada Reforma Agrária.

No sentido de evitar a polarização política desta avaliação temporal, o cotejo destes períodos temporais foi feito a partir da consideração dos já definidos períodos processuais que sofreu o queixoso.

3.d. De 3/07/2014 a 2/04/2015, a suspeita razoável para a detenção e prisão não foi contestada, ou seja, manteve-se ainda o propósito de cumprir o art.º 5.º § 1 da CEDH. É interessante notar, a este respeito (§§ 124, 126) observar que o queixoso nunca foi sujeito a interrogatórios sobre assuntos total ou parcialmente diferentes do tema da acusação que lhe foi notificado. Acusação não numa rigorosa aceção técnica, mas no sentido de constituição de arguido, contrariamente ao que sucedera no caso Merabshivili.

Também as coincidências temporais com a atividade politica não parecem assumir relevância, quanto a discursos políticos dos seus adversários sugerindo a razoabilidade da sua prisão preventiva. Pois estes não devem ser considerados como interferindo com o processo judicial, por caírem no conhecido problema dos trial by newspaper. O contrário apenas sucederia se se verificasse não terem sido os tribunais independentes, como sucedeu no caso Merabshivili.

3.e. Por fim, apesar da detenção e prisão do queixoso ter acontecido numa época em que o seu partido de União Nacional perdeu votos para o Georgian Dream, que o viria a substituir no poder (§ 128 do Acórdão), verificando-se que seria o próprio partido do queixoso a querer exclui-lo da liça política, nada foi provado sem dúvida razoável, que esta realidade tivesse influído no processo.

3. f. Quanto ao período após 2/04/2015, o período crítico em que são violados ambos os §§ 1 e 3 ou 4, ou ambos, do art.º 5.º da CEDH, a interferência da vida politica no processo do queixoso consistiria em o TC ter espelhado as posições dos políticos que estavam contra ele. Apesar da jurisprudência do TC ter determinado a verificação da violação do art.º 5.º § 1, pela admissão, não realista, à luz do imperativo do art.º 5.º § 1 da CEDH, direito à liberdade e à segurança, o TEDH entendeu, mais uma vez, não haver prova sem dúvida razoável, da ingerência dos juízes do TC, por razões políticas, no seu processo judicial penal.  

3. g. Não se verificou, por todas estas razões, a violação do art.º 18.º da CEDH, em conjunção com o art.º 5.º § 1, confirmando-se o teor restritivo da interpretação recorrentemente dada a este preceito da CEDH pelo seu Tribunal, o TEDH.

4. O Tribunal decidiu por unanimidade:

- a divisão dos períodos de prisão preventiva em pré 2/04/2015 e pós 2/04/2015.

- a violação do art.º 5.º § 1, da CEDH no período pós 2/04/2015.

- as não violações da CEDH no período pré 2/04/2015.

- a violação do art.º 5.º § 3 da CEDH (não será talvez gralha a situação evocada acima), a partir de18/02/2015, por falta de fundamento bastante, como explicado, a significar que a apresentação imediata a um magistrado para validar a prisão preventiva (no respeito do prazo máximo legal de 48h), significa a existência verificada da falta de fundamento da detenção e prisão; ou, de um lado “positivo”, a verificação do arbítrio, e que, se a formalidade é essencial (como as previstas na CRP de 1976), ela encerra um forte conteúdo de substância.

- por fim, o TEDH decidiu não existir a violação do art.º 18.º em conjunção com o art.º 5.º em razão da sua coerente posição restritiva quanto a este preceito convencional.

Curiosamente, atenta a forte complexidade do tema, não se registaram opiniões concordantes (uma vez que se registou a unanimidade) ou concordantes parciais (que não prejudicassem o sentido do voto na posição vencedora) no sentido de serem esclarecidos os temas deste acórdão, que o cuidado posto na sua elaboração acabou por tornar, de resto, bastante claros.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos