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TEDH, 5ª Secção, Mirgadirov c. Azerbaijão e Turquia, Acórdão de 17 de setembro de 2020

6 out 2020

CEDH, Artigo 5.º §§§§ 1,2,3 e 4, Artigo 6.º § 2, Artigo 8.º, Artigo 10.º . Detenção e expulsão imediata de jornalista de nacionalidade do Azerbaijão, na Turquia, por este ter trocado impressões sobre o conflito do Nagorno-Karabach. Longa prisão preventiva no Azerbaijão, que terminou por uma sentença com suspensão provisória de pena. Direito à liberdade e segurança. A questão da fundamentação da detenção e prisão e das sucessivas renovações da prisão preventiva. Direito à vida privada e familiar em razão de um mandado de restrição de direitos de arguido preso (nomeadamente de comunicação com familiares). Direito à liberdade de expressão por se tratar de jornalista. Quanto à Turquia: as dificílimas questões em torno da justificação, à luz dos direitos humanos, de expulsões demasiado céleres. Quanto ao Azerbaijão: a questão não respondida, pelo TEDH, de saber se o quadro processual de que Mirgadirov foi vítima não se limitou a ter apenas por finalidade o prejuízo das atividades de jornalista suscetíveis de dificultar a ação política do regime: a questão de saber se além do fim legal do processo penal, este não possuiu outra finalidade.


Mirgadirov queixou-se contra o Azerbaijão e a Turquia, em 2014, por ter sido preso na Turquia e subsequentemente entregue ao Azerbaijão, em violação dos seus direitos à luz da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Contra o Azerbaijão, queixou-se, em particular, da ausência de uma suspeita razoável de ter cometido uma ofensa criminal (art.º 5.º § 1 CEDH); da falta de justificação para a sua prisão preventiva (art.º 5.º § 3); da falta de exame dos seus argumentos, no sentido da sua colocação em liberdade (art.º 5.º § 4); da ausência do seu advogado na audiência de julgamento de 20 de novembro de 2014, perante o tribunal da comarca de Nasimi (art.º 5.º § 4); da violação do seu direito à presunção de inocência (art.º 6.º § 2), da ilicitude das restrições aos seus direitos durante a investigação (art.º 8.º CEDH) e da violação do art.º 18.º em relação ao artigo 5.º (restrição não autorizada pela Convenção ao seu direito à liberdade e à segurança).

Contra a Turquia, queixou-se da violação do seu direito à liberdade e segurança pela sua detenção arbitrária sem comunicação de fundamentos, de 19 de abril de 2014 (art.º 5.º §§ 1 e 2 da CEDH); da sua não apresentação a um juiz com competência legal para decidir da sua detenção (art.º 5.º § 3 da CEDH); da impossibilidade em que esteve de contestar a validade da sua detenção (art.º 5.º § 4); e da violação do seu direito à liberdade de expressão na qualidade de jornalista (art.º 10 da CEDH). As restantes queixas que formulou foram declaradas inadmissíveis pelo TEDH. Foram terceiros intervenientes (amicii curiae), a Fundação Helsinquia para os Direitos Humanos e Human rights house foundation and freedom now.

Fora-lhe concedido, em 2013, um visto de residência, na Turquia, por decisão do Gabinete do Primeiro Ministro, ao qual estava junta uma cédula profissional de jornalista. A autorização de residência expirava em 31 de dezembro de 2014.

Em 8 de abril de 2014, o Gabinete do Primeiro Ministro anulou a cédula profissional de jornalista e comunicou este facto à Autoridade para os Estrangeiros e Fronteiras turca, pedindo a esta a revogação da autorização de residência de Mirgadirov, em 11 de abril desse ano. Em 9 de abril Mirgadirov foi convocado ao Gabinete do Primeiro Ministro, onde lhe foi comunicada a anulação da cédula profissional de jornalista, sem que lhe fosse prestada qualquer justificação. Em 11 de abril, Mirgadirov requereu a confirmação escrita do cancelamento da sua cédula profissional, bem como a respetiva fundamentação. No dia 18 de abril, a Autoridade dos Estrangeiros e Fronteiras comunicou à Direção de Segurança de Ancara que Mirgadirov devia ser expulso da Turquia. Na mesma data, Mirgadirov e a família acabavam de encetar uma viagem de autocarro para a Geórgia. Pouco depois do autocarro deixar Ancara, pela meia-noite desse dia, foi mandado parar pela polícia para um controlo de segurança. Mirgadirov e a família foram identificados e presos. Mirgadirov foi, então, informado que a razão da sua prisão se devia ao facto de já não ser um estrangeiro regular na Turquia, na sequência da revogação da sua autorização de residência. Mirgadirov recusou assinar o auto de detenção. Em 19 de abril de 2014 terá sido informado de que o seu processo de expulsão tinha corrido de acordo com a lei vigente. A polícia afirmou no processo de queixa que Mirgadirov recusou assinar o documento; este diz que nem sequer teve acesso ao documento. Terá, então, sido notificado da ilegalidade da sua presença em território turco, documento que terá igualmente recusado assinar. Mirgadirov terá pedido a assistência de um advogado bem como a possibilidade de comunicar com a mulher. Ambos estes seus pedidos foram ignorados. Foi, então, levado ao Aeroporto internacional de Ancara, onde assinou um documento segundo o qual estava proibido de entrar em território turco por um período de 12 meses. Foi colocado num avião para Bacu, permanecendo sob controlo da polícia até ao avião levantar voo.

Na tarde desse mesmo dia 19 de abril de 2014, chegou a Bacu, onde foi preso por agentes do Ministério da Administração Interna do Azerbaijão. Um procurador do Departamento de investigação e ação penal para os crimes muito graves (o MP), emitiu um documento, em que registava a prisão de Mirgadirov como suspeito e o constituía arguido. Era arguido do crime de alta traição, previsto e punido pelo Código Penal do Azerbaijão. Ainda nesse dia, foi interrogado pelo MP, na presença de um defensor oficioso. Mirgadirov reconheceu ter trocado impressões com o Secretário-geral de uma organização de direitos humanos arménia sobre o conflito do Nagorno-Karabach, e da situação internacional vivida na região. Estas conversas tinham tido lugar por ocasião de conferências internacionais; no entanto Mirgadirov negou e contestou a acusação de ter cometido o crime de alta traição. Nomeadamente não tinha fornecido aos Serviços de informação arménios quaisquer informações relativas à situação militar, sociopolítica ou económica do seu país, ou que fosse relativa à colocação de unidades militares. Em 21 de abril de 2014 foi acusado e pronunciado pelo crime de alta traição e foi determinada a sua prisão preventiva por três meses, a qual foi justificada com o perigo de fuga e de destruição da prova. Mirgadirov opôs-se à prisão preventiva com fundamento na falta de suspeita razoável de ter cometido o crime pelo qual fora pronunciado e na falta de justificação material para a prisão preventiva, recurso que foi rejeitado pelo tribunal de segunda instância penal de Bacu.

Durante a prisão preventiva, o MP emitiu um “mandado de restrição de direitos de arguido preso”, como o uso do telefone, do acesso à correspondência de terceiros e de se corresponder com estes, à exceção do seu advogado, o de subscrever ou receber qualquer periódico de informação sócio política, nomeadamente jornais. O arguido Mirgadirov reclamou, sem êxito, da medida, tendo-lhe sido autorizada a comparência no funeral do seu pai, entretanto falecido. Mirgadirov continuou o processo de reclamação contra esta medida junto da segunda instância, mas sem êxito. Não se conhece a data do levantamento destas restrições aos direitos do recluso. Pediu, entretanto, o apoio de um serviço notarial para conferir com autoridade legal, um mandato judicial a um advogado que o pudesse representar em relação às suas queixas contra a Turquia. Este pedido foi recusado pelo MP com fundamento na natureza secreta da informação e dos suportes da prova. A intervenção de um advogado com um mandato desta natureza, ainda que em relação à Turquia, daria fé pública a informações confidenciais cuja delicadeza justificaria a sua manipulação num contexto de menor formalismo. Novamente, Mirgadirov recorreu sem êxito.

Em julho de 2014, o MP emitiu um comunicado de imprensa atestando a prisão de Mirgadirov e o estabelecimento, com rigor, de que este teria cometido o crime de alta traição, nomeadamente pela prestação de informação classificada aos serviços secretos arménios, em particular um determinado centro de investigação regional (o qual se ocuparia da área do Nagorno-Karabach). Entretanto, em razão da especial complexidade do processo, a prisão preventiva de Mirgadirov foi sendo sucessivamente prorrogada, enquanto o representante constituído se ia sucessivamente opondo às prorrogações, sempre sem êxito. Nalgumas ocasiões chegou a ser negado o direito de visita do advogado do arguido preso. Em 28 de novembro de 2015 o tribunal de Bacu para a criminalidade séria julgou Mirgadirov culpado do crime de alta traição e condenou-o a seis anos de prisão. Após recurso, o tribunal de segunda instância de Bacu modificou a sentença e suspendeu provisoriamente a pena por cinco anos, no dia 17 de abril de 2016, dia em que Mirgadirov voltou a ser colocado em liberdade.

Hoje Mirgadirov reside numa localidade na Suíça. Era um analista político e um jornalista conhecido no Azerbaijão. Aí recebera em várias ocasiões, prémios de jornalismo, tendo sido distinguido com a qualificação de “jornalista honrado” e foi-lhe atribuído o prémio Gerd Bucerius para a imprensa livre nos países da Europa central e oriental, concedido pela fundação alemã Zeit.

Após exame das disposições constitucionais e legais da Turquia e do Azerbaijão, o TEDH, em sede de aplicação do direito convencional europeu, abordou, em primeiro lugar, as queixas contra o Azerbaijão. Questionou, em primeiro lugar, a violação do art.º 5.º §§ 1 e 3 da CEDH. Após ter declarado estes segmentos de queixa admissíveis, e quanto ao mérito, o TEDH tomou em conta as observações dos terceiros intervenientes, segundo as quais é prática generalizada silenciar a imprensa mediante longos períodos de prisão preventiva não justificada no Azerbaijão. O TEDH enunciou como jurisprudência de referência os seus Acórdãos proferidos nos casos Jafarov c. Azerbaijão (16.03.2016) e Rashad Hasanov e Outros c. Azerbaijão (07.06.2018). Em matéria de avaliação da prova, o TEDH observou que as autoridades estiveram sempre a par de todas as deslocações e viagens de Mirgadirov, bem como das reuniões em que participou, matéria que elencaram na enunciação dos factos pela prática dos quais foi constituído arguido. Não foi, no entanto, após o exame pelo TEDH, adquirida nenhuma prova material, concreta, da transmissão de informação classificada de Mirgadirov a serviços secretos estrangeiros. Isto tem por consequência que Mirgadirov acabou por ser julgado e condenado pelas suas deslocações e pelas suas participações nas reuniões e conferências internacionais, não por ter transmitido conteúdos classificados a autoridades estrangeiras. O TEDH notou ainda que nas suas observações de resposta, o Governo opôs a existência de gravações e registos vídeo implicando o arguido. Este material, no entanto, não foi junto ao processo de queixa. O TEDH destacou que, nas suas decisões de prorrogação da prisão preventiva as autoridades não procederam à respetiva fundamentação por referência a esta prova alegada existir. Verificou-se, assim, a violação do direito à liberdade e à segurança (art.º 5.º§ 1) de Mirgadirov em relação a todo o tempo de prisão preventiva que lhe foi imposto. À luz desta conclusão, o TEDH não examinou o segmento de queixa relativo ao art.º 5.º § 3.

O TEDH passou a seguir ao exame dos períodos de prisão preventiva, tendo destacado o período de 19 a 20 de novembro de 2014. Mirgadirov tinha-se queixado da violação do seu direito à liberdade e à segurança, à luz do art.º 5.º § 1. O TEDH admitiu este segmento de queixa, e, decidindo do mérito, concluiu que, durante 16 horas nestes dias, Mirgadirov permaneceu em detenção sem validação judicial, tendo-se verificado a violação do art.º 5.º § 1 d a CEDH. Mirgadirov queixara-se, ainda, da violação do seu direito ao recurso da detenção (art.º 5.º § 4) por não ter sido, nem ele nem o seu advogado, informado da audiência e da decisão do tribunal da comarca de Nasimi de 20 de dezembro de 2014, relativa ao prolongamento da sua prisão preventiva. O TEDH admitiu a queixa e examinou o seu mérito. O TEDH verificou que neste caso Mirgadirov nem sequer foi informado da audiência e que nos outros casos de prorrogação da prisão preventiva, que o seu advogado contestou e em que foi sendo sucessivamente vencido, a fundamentação da prorrogação bastou-se com a especial complexidade do processo, não especificando uma concreta fundamentação para a prorrogação, o que não é bastante à luz do direito internacional público dos direitos humanos, nem à luz de um acórdão do Pleno (Plenum) do Supremo tribunal de Justiça do Azerbaijão, em jurisprudência anterior ao processo de Mirgadirov, citado na documentação a que o TEDH teve acesso, o qual julgara que a fundamentação da prorrogação da prisão preventiva tem de ser concreta e especificada em relação a cada período de prorrogação. Verificou-se, assim, a violação do art.º 5.º § 4 da CEDH em relação à decisão de prorrogação do tribunal da comarca de Nasimi.

Mirgadirov queixou-se, ainda, da violação do seu direito à presunção de inocência aquando do comunicado de imprensa referido supra do MP, o qual fora proferido na pendência do processo e antes do julgamento definitivo, em contradição com o art.º 6.º § 2 da CEDH. Após ter admitido este segmento da queixa, o TEDH debruçou-se sobre o seu mérito. Observou que esta prática é corrente no decurso dos processos judiciais no Azerbaijão e citou jurisprudência sua relativa a este problema (nomeadamente o Acórdão Mammadov c. Azerbaijão, objeto de divulgação a seu tempo nesta página). O comunicado de imprensa foi feito mais de três meses após a detenção e prisão de Mirgadirov, quando este se encontrava em prisão preventiva. Apesar da objeção do Governo, segundo a qual o comunicado de imprensa teria mera finalidade informativa, o TEDH entendeu que este comunicado não foi emitido com a necessária prudência à luz dos interesses legítimos do arguido. Embora não se tivesse dito “ o arguido cometeu…”, o comunicado rezava “ficou estabelecido que…”( o arguido procedeu à transferência de informação classificada), o que não deixa dúvidas sobre a autoria do crime imputado ao arguido. Verificou-se, assim, a violação do art.º 6.º § 2 da CEDH, direito à presunção e inocência.

Mirgadirov ainda se queixou da violação do seu direito à vida privada e familiar, tutelado pelo art.º 8.º da CEDH, em relação ao mandado de restrição de direitos de arguido preso de que foi destinatário. Após ter declarado admissível este segmento de queixa, e considerando o seu mérito, o TEDH admitiu que houve uma interferência das autoridades no direito à vida privada e familiar de Mirgadirov, Colocou-se, então, a questão da sua justificação, em primeiro lugar, à luz da lei. O TEDH aceitou a justificação legal da medida pela sua previsão legal mas notou que a lei não especifica concretamente alguns dos direitos de Mirgadirov que foram restritos. Ou seja, da enumeração taxativa da imposição legal pertinente não consta a restrição a receber periódicos socio económicos informativos ou jornais. Verificou-se, assim, a violação do art.º 8.º § 2 da CEDH uma vez que a restrição dos direitos do arguido não tinha específica previsão legal neste domínio. O TEDH, neste particular, não avançou para o exame da proporcionalidade da medida (a sua legitimidade numa sociedade democrática) uma vez que chegou antes deste passo do exame à conclusão da violação da disposição convencional. Já quanto ao segmento da medida de restrição de direitos com justificação legal aplicável, em relação às demais restrições, examinou a necessidade da medida numa sociedade democrática (restrições às visitas, comunicações telefónicas e correspondência).  Verificou que todo este mandado de restrição a direitos de arguido preso representou um corte absoluto (exceto quanto ao advogado) de contactos do arguido com o mundo exterior. A dureza extrema desta medida não foi justificada de nenhum modo pelo Governo nem foi alvo de uma fundamentação que fosse capaz de explicar o recurso às várias enumerações da disposição legal, para além da simples remissão a esta enumeração constante da disposição legal aplicada. Também não houve, além da fórmula genérica do perigo para a recolha da prova, qualquer razão concreta que ilustrasse a materialidade deste perigo. Em particular, o Governo não justificou de modo algum este corte de relações com o mundo exterior, em particular com a família do arguido. Verificou-se, assim, a violação do art.º 8.º da Convenção neste segmento da queixa.

O TEDH examinou a seguir o segmento da queixa relativo à violação do art.º 18.º em relação com o art.º 5.º da CEDH, proibição de restrições injustificadas de direitos, em particular o direito à liberdade e à segurança. Após admitir este segmento da queixa, o TEDH examinou o respetivo mérito. Observou que já julgou (ver supra) que a detenção e a prisão preventiva do arguido não encontrou justificação à luz do art.º 5.º § 1 c (detenção para comparência a autoridade judicial que valide a prisão preventiva) devendo por isto este caso ser distinguido dos processos de finalidade múltipla. Ainda assim, para o TEDH, a restrição injustificada do direito à liberdade do arguido não dispensou o exame da questão à luz da proibição da restrição injustificada de direitos. Em particular foi necessário avaliar se existiu outro propósito do que a fundamentação leal do processo judicial, para a restrição de direitos acontecer. Um processo penal em marcha implica sempre a restrição de direitos, a qual é, em sede geral, legítima.  A questão, além dos vícios processuais que podem inquinar o processo e o sofrimento imposto ao destinatário do processo tornando-o não legítimo numa sociedade democrática, é a de saber se o processo penal, apesar da justificação prevista no Código penal, não possuiu na realidade uma finalidade extra jurídica e extra judicial propriamente. Para o TEDH, Mirgadirov não justificou suficientemente a sua alegação de que, na verdade, o seu processo lhe foi imposto para o silenciar na sua atividade de jornalista.

Seja permitido ao leitor deste Acórdão discordar dele, neste ponto, à luz da prática reiterada que os terceiros intervenientes denunciaram existir no Azerbaijão e à luz da própria suspensão provisória da aplicação da pena, de que, no final, curiosamente, Mirgadirov beneficiou. Para um crime da gravidade por que este foi julgado e condenado, a pena e a sua suspensão condicional representa um resultado extremamente brando, dando a ideia de que, efetivamente terá existido a finalidade, mediante este processo penal, de “fazer passar um mau bocado” a Mirgadirov (o que pode ter relevância para o efeito da aplicação do art.º 3.º da CEDH a este processo, tendo–se já verificado na jurisprudência do TEDH, Acórdãos em que o TEDH se socorre do seu poder discricionário de avaliação para o efeito de verificar se foi violada mais uma disposição da CEDH – seja notado que o processo de queixa junto do TEDH não é um processo penal contra o Estado, mas um processo em que o Estado é apenas réu, respondendo em sede de responsabilidade internacional, o que aumenta a margem de apreciação do TEDH nas matérias da sua competência e no alargamento do tema da queixa apresentada perante ele). Para o leitor Mirgadirov foi efetivamente silenciado na sua atividade de jornalista e o processo penal possuía um fim extra jurídico e extra judicial não legítimo à luz da CEDH. Hoje Mirgadirov reside na Suíça e deixou de intervir em conferências internacionais na região… Seja como for, o TEDH entendeu que não se verificou a violação do art.º 18.º da CEDH combinado com o art.º 5.º § 1 da CEDH, proibição da restrição injustificada do direito à liberdade e à segurança de Mirgadirov.

A seguir o TEDH passou ao exame das queixas contra a Turquia. Mirgadirov queixou-se da violação dos §§ 1,2,3, e 4 do art.º 5.º da CEDH e da violação do seu direito à liberdade de expressão tutelado pelo art.º 10.º da CEDH. O TEDH procedeu por eliminação de partes. A detenção de Mirgadirov pelas autoridades turcas, com o propósito da sua expulsão, tornam a violação alegada do seu direito à detenção para apresentação a um juiz que a valide irrelevante, uma vez que a disposição do art.º 5.º § 1 c) não é aplicável à detenção para expulsão. Ora o art.º 5.º § 3 da CEDH opera apenas em relação à detenção para apresentação a um juiz que a valide. Este segmento da queixa não foi, assim, admitido. Quanto ao art.º 5.º§ 4, este é relativo ao recurso judicial da detenção. Admitindo, embora, que este recurso possa existir para o efeito de contestar uma detenção conducente à expulsão do interessado, o TEDH, talvez por excesso de trabalho, não se debruçou sobre a questão.  No entender do mero leitor deste Acórdão se o recurso judicial da detenção para expulsão for uma medida aceitável, em abstrato, à luz do art.º 5.º § 4, a extrema celeridade com que a expulsão teve lugar não deveria ser justificação para nem sequer admitir o exame desta questão no processo de queixa. Pelo contrário. Seja como for, o TEDH entendeu não ser de admitir este segmento da queixa.

Quanto aos demais segmentos da queixa, o TEDH analisou-os em conjunto e notou que Mirgadirov não opôs à exceção de não esgotamento dos recursos judiciais internos do Governo turco, a não efetividade dos meios judiciais ao seu alcance. Apenas contestou esta exceção dizendo que, como tudo se passou com uma grande celeridade, nem sequer pôde acionar estes meios. Embora não tivesse podido ter acesso a advogado na Turquia, pedira às autoridades do Azerbaijão a possibilidade de nomear um mandatário com procuração reconhecida notarialmente, para o efeito de acionar os seus direitos em relação à Turquia desde o Azerbaijão. Alegou que este pedido lhe foi negado pelas autoridades do Azerbaijão, impossibilitando-o de exercer, após a sua expulsão, os seus direitos contra a Turquia. O TEDH aceitou esta observação, nomeadamente por estar documentada no processo de queixa, mas observou que existe um recurso de queixa (amparo) constitucional na Turquia que, apesar da rapidez da sua expulsão, podia ter sido acionado por Mirgadirov e por isso deveria ter sido esgotado. Quanto às disposições de processo relativas à queixa junto do Tribunal constitucional, Mirgadirov podia ter-se já no Azerbaijão, após a sua expulsão, a tal não se opondo as regras de acesso à jurisdição do Tribunal Constitucional, no caso do processo de amparo constitucional. O TEDH pronunciou-se, novamente, sobre a questão da utilidade para Mirgadirov em acionar os mecanismos judiciais à sua disposição na Turquia em relação à celeridade com que foi expulso e, mais uma vez, observou que, em razão da celeridade com que a expulsão teve lugar, não se verificou a violação das disposições da CEDH, num trecho do Acórdão que mais uma vez interroga o leitor, na medida em que é a celeridade de uma ação de polícia, aquela que é mais suscetível de deixar em branco as garantias processuais do destinatário de qualquer medida de expulsão. Seja como for, este passo da argumentação do TEDH permitiu a este tribunal observar que, mesmo que Mirgadirov não se tenha podido socorrer a título preventivo da proteção do Tribunal Constitucional, como o demonstra a celeridade da sua expulsão, e uma vez que Mirgadirov ainda se poderia ter socorrido do processo de queixa junto do Tribunal Constitucional a título sucessivo, as restantes violações alegadas não foram apresentadas com suficiência perante as autoridades turcas para o efeito do esgotamento dos recursos judiciais internos.

A resposta do TEDH compreende-se, na medida em que o operar da Convenção europeia depende do ter-se dado a oportunidade ao Estado para pôr termo à violação. Eventualmente, à luz dos acontecimentos na vida de Mirgadirov no Azerbaijão, a seguir à sua expulsão para este país, o acionamento sucessivo das autoridades turcas poderia, numa certa medida, tê-lo auxiliado. Ainda assim, o leitor deste Acórdão fica impressionado com o caráter extremo da situação que Mirgadirov teve de enfrentar. Foi rapidamente expulso, e no país de destino foi detido e preso. Terá o TEDH, pese embora o seu conhecimento da situação no Azerbaijão, e o facto de processo de queixa junto do TEDH ser acionado “depois” dos acontecimentos de que alguém é vítima num determinado país, ponderado suficientemente as consequências da sua decisão? E se as coisas tivessem corrido mal? A celeridade pura e simples de uma detenção para expulsão seguida da imediata expulsão que impede materialmente, por esta mesma celeridade, o acionamento preventivo eficaz dos meios judiciais é ela bastante para justificar a não admissão de um segmento de queixa com fundamento, da parte do TEDH, afinal, na impossibilidade de acionar os mecanismos preventivos? A celeridade de uma ação administrativa não deveria ser motivo de uma maior urgência na apreciação das garantias dos direitos humanos? Ou tudo isto, como o deixa entender o TEDH, não passará de mera retórica? Seja como for, não se verificou a violação de qualquer disposição da CEDH em relação à Turquia.


O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos