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TEDH, 3º Secção, Estemirova c. Russia, Acórdão de 31 de agosto de 2021

7 out 2021

CEDH, Artigo 2.º § 1, direito à vida nas vertentes substancial e processual, violação na vertente processual; direito de queixa, art.s 34.º e 38.º , violação.

Estemirova, irmã de Natália Estemirova, queixou-se ao TEDH contra a Rússia por violação do art.º 2.º da CEDH, direito à vida, e por violação do seu direito de queixa nos termos dos art.ºs 34.º e 38.º da CEDH.

Natália Estemirova era uma ativista dos direitos humanos conhecida na Chechénia e era membro da direção do Memorial HRC na Rússia. Investigava raptos, sequestros, tortura e mortes extrajudiciais (desaparecimentos forçados) na Chechénia. Denunciara, nomeadamente, crimes praticados por resistentes Chechenos e por agentes da aplicação da lei. Numa publicação de 30 de abril de 2004, em particular, denunciou o rapto de uma pessoa pelo grupo armado “Shalazhi Jamaat”, o qual, além do mais, tinha recrutado trabalhadores da vila de Shalazhi na Chechénia para se juntarem ao seu grupo. Na sequência da publicação, membros das famílias destes trabalhadores eram raptados, sendo que em consequência alguns destes queixaram-se contra a organização por meio de denúncia criminal. N. Estemirova prosseguiu com as publicações, continuando a denunciar casos idênticos ou próximos (de rapto/sequestro e recrutamento de homens para as milícias). A título de retaliação o referido grupo armado exibiu um jovem preso e matou-o publicamente. N. Estemirova apelava aos observadores para que assistissem a estas práticas e adotassem alguma ação.

No mês de julho desse ano, N. Estemirova deixou a sua habitação em Grozny para se reunir com o Sr. PGR distrital no contexto de uma investigação criminal. Veio a ser raptada próximo de casa numa paragem de autocarro. Ao ser raptada, conseguiu, ao entrar forçada para uma Lada branca, gritar que estava a ser raptada e alguns seus colegas a terão ouvido. O seu corpo foi encontrado sem vida no mesmo dia da parte da tarde, junto a uma estrada, com tiros na cabeça e no peito. Foi imediatamente aberta a competente investigação criminal pelo Departamento de Investigação e Ação Penal Interdistrital Leniniskiy, sedeado em Grozny.

Os investigadores consideraram mais de 50 hipóteses, para as quais mobilizaram efetivos consideráveis de pessoal. Estas hipóteses iam da intervenção de grupo armado ilícito, à intervenção de agentes do Estado. A conclusão final foi a de que Shalazhi Jamaat e o indivíduo que estava à frente das operações de Shalazhi Jamaat (um conhecido ex-polícia que gostava de se mostrar na arena política e das artes performativas [teatro e música]), seriam os responsáveis pelo assassínio de N. Estemirova. A referida personalidade destacada foi procurada pela polícia, mas desaparecera sem deixar rasto. Em novembro de 2009, um míssil Ar-Terra matou vários elementos de Shalazhi Jamaat.  A investigação criminal está pendente. Dos trabalhos da operação de investigação criminal, além do registo tanatológico e da verificação do armamento empregue, resultou, com interesse, o facto de ter sido testemunhado que a Lada branca fora seguida por outro veículo, de cor preta, a curta distância. Outro ponto de interesse na investigação criminal, é o facto de o perito balístico que analisou os ferimentos e as marcas deixadas pelas armas (além da ligação do tipo de arma a cada ferida, os invólucros de munições, os silenciadores, etc…) ter vindo entretanto a ser assassinado ele próprio, tendo desaparecido a sua ID. Policial. Feita a investigação aos veículos, apurou-se que se tratava de carros em segunda mão, para os quais não tinha havido o cuidado de proceder à obtenção e guarda dos papeis correspondentes à transferência do título de propriedade e à inscrição no registo automóvel. Os vendedores ainda se encontravam na posse destes documentos e não sabiam ao certo quem eram os compradores, apenas que haviam recebido dinheiro para entregarem os carros. Quanto ao ex-polícia, personagem conhecido da vida local, ele teria sido reconhecido por um ex-colega que se encontraria ao serviço nessa ocasião. Este ex polícia, nunca encontrado, foi inscrito na lista internacional de pessoas procuradas. Um outro aspeto foi o de que, tendo-se encontrado despojos, nomeadamente roupa, os quais continham marcas de ADN, além da vítima, dos agressores, este ADN não correspondia a nenhum dos elementos do Shalazhi Jamaat. A queixosa, irmã de N. Estemirova, indicou que o facto da investigação criminal apenas se ter concentrado sobre o Shalazhi Jamaat não era plausível, e que o ex-agente da polícia identificado, que era também conhecido pelo seu envolvimento com o Shalazhi Jamaat, não teria participado no crime relativo à morte de N. Estemirova.

Esta intervenção da queixosa no processo, foi lhe possibilitada por lhe ter sido concedido o estatuto penal processual de vítima, pelas autoridades, e nesta conformidade, ela pôde recorrer da demora da investigação suscitando um incidente parecido com o português pedido de aceleração da instância (introduzido no p. penal português sob sugestão do Senhor  Conselheiro Cunha Rodrigues). Ainda assim tanto o Tribunal da Comarca Leninskiy de Vladikavkhaz quanto o Supremo Tribunal Checheno negaram provimento ao seu pedido. O advogado da queixosa teve acesso ao processo para o efeito da sua consulta em data não especificada.

Examinando a queixa e o direito, o TEDH fixou o quadro de referência no seu Acórdão Aslakhanova e Outros c. Rússia (18 de dezembro de 2012) e Tuluyeva c. Rússia (20 de junho de 2013). O quadro da queixa é o da violação do direito à vida da vítima, tutelado pelo art.º 2.º da CEDH. O TEDH admitiu a queixa, não tendo, de resto, havido debate entre as partes no tocante à admissibilidade. Além das alegações das partes, a título de terceiro interveniente (amicus curiae), o Alto Comissário para os Direitos Humanos do CoE destacou que o assassínio de N. Estemirova devia ser encarado no contexto de uma prática de assassínios e de intimidação dos defensores dos Direitos Humanos no Cáucaso do Norte. Destacou que as violações dos direitos humanos não eram adequadamente tuteladas pelas autoridades, sendo que, nomeadamente, aos defensores dos direitos humanos era imposto um amplo conjunto de barreiras (administrativas e outras) que, além de os impedir de realizar o seu trabalho, os colocava em séria posição de precariedade, a qual seria o terreno propício para atividades criminosas. Segundo o Alto Comissário, às autoridades caberia definir urgentemente um quadro jurídico que assegurasse a proteção dos defensores dos direitos humanos na Chechénia.

Ao julgar o caso, em fase de sanação do processo, o TEDH verificou que o fracasso das autoridades, em proteger a vida de N. Estemirova, invocado pela queixosa, como fazendo parte do elenco das causas da violação do art.º 2.º da CEDH, não fora colocado no requerimento da queixa, mas apenas nas respostas às observações do Governo (no que em processo interno se designa a tréplica), pelo que, não tendo sido dada oportunidade ao Governo para examinar a questão, esta não podia constar da matéria de facto (os factos assentes, os quais são tanto direito interno como matéria propriamente de facto, para o efeito do julgamento do TEDH sobre a violação dos DH) a examinar (como sempre, no entender do muito humilde leitor e comentador destes Acórdãos preciosos do TEDH, há já alguns anos, esta solução peca por orientar a adjudicação do caso para o que se pode prever que vai ser, num contexto de facto em que o argumento, por ser evidente, salta à vista. Dir-se há que se, no garimpo, o diamante não for colhido, ele não é aproveitado. Não obstante, pode opor-se que em matérias tão graves como esta, direito à vida x participação política cidadã, este ónus demasiado severo de especificação de cada argumento a cargo da parte adversa, o qual desce tão ao pormenor, acaba por representar um encargo excessivo para a parte que se queixa). Esta cominação para uma negligência muito leve da parte num contexto notório (vd. a intervenção nos autos do Alto Comissário para os direitos humanos do CoE), resulta muito saliente quando se deixa entender que o argumento não foi consubstanciado (o que o torna algo como que religioso a carecer uma consubstanciação como que de Espírito Santo, algo de Bíblico), quando, com efeito, se vê que uma pessoa, embora sem estatuto pessoal, sem titularidade de cargo público ou político, mas que se encontrava a cooperar com as autoridades num trabalho de muito grande importância, essencial para a segurança democrática na Chechénia, foi raptada na paragem do autocarro. Deveria ter beneficiado, em sede geral, de alguma proteção pelo menos como testemunha e colaboradora com a Justiça.

Passando à investigação da responsabilidade do Estado pelo rapto e pelo assassínio, o TEDH delineou, como é usual a sua repartição muito feliz do ónus da prova, reforçada pelo reconhecimento do perigo especial a que os defensores dos direitos humanos se encontram expostos na Chechénia, bastando a este apresentarem um “fumus” da violação (prima facie), e cabendo às autoridades desfazer a questão levantada para além de toda a dúvida razoável.

Passando à efetividade da investigação, o TEDH verificou a incontestável diligência do MP Distrital.  Não obstante destacou insuficiências na investigação. Detetou incompletudes na investigação como a de não de se conseguir saber (além da verificação do modelo utilizado) se os tiros foram todos disparados pela mesma arma (aquela nas mãos daquele sujeito), bem como outras insuficiências e inconsistências na investigação em torno da matéria de facto (a roupa da vítima, as roupas encontradas na residência, alvo de busca, do ex-polícia, celebridade, desaparecido), as marcas de terra no veículo e as sementes encontradas na roupa da vítima, etc…), as quais inconsistências torna impossível a obtenção de qualquer conclusão sobre o lugar do crime e os seus agentes.  Concluiu assim, o TEDH pela violação do art.º 2.º da CEDH, direito à vida, na sua vertente processual, em razão da deficiência da investigação (sendo este, aliás, um expediente de que o TEDH frequentemente se socorre nestes casos e, nos casos de responsabilidade do Estado, mormente por erros médicos em contexto hospitalar). Sabendo que as investigações são geralmente difíceis, na prática, e que as falhas são facilmente reconhecíveis à luz dos critérios internacionais, o que o leva à confortável conclusão – para ele TEDH e os Estados Parte – de que foi violado o direito à vida apenas na vertente processual, ou seja, o Estado acaba por vencer materialmente a causa contra o queixoso. Isto poderia não ter qualquer importância à luz da relação Estado-Cidadão, mas nestes casos concretos, o vertente e muitos casos de gestão hospitalar ou de responsabilidade da Administração Pública, mormente hospitalar, pode assumir uma pesada e grave relevância.

A queixosa alegara ainda que o Estado, ao não comunicar partes importantes do processo de investigação (classificadas como de segurança), havia impossibilitado o exercício do direito de queixa nos termos dos art.ºs 34.º e 38.º da CEDH. O TEDH recebeu este segmento da queixa, e condenou a Rússia pela violação do direito de queixa (esta condenação é também de certo modo usual e necessária, no sentido de chamar os Estados a cooperarem no processo de queixa, mas vem acrescentar neste caso, o sabor a compensação desta resposta, relativamente à exclusão acima referida, no tocante ao argumento da falta de proteção dos defensores dos direitos humanos, uma como que equidade processual, que se for realmente este o caso, acaba por representar uma difícil composição com o inaceitável).

Em sede de execução de sentença do TEDH (art.º 46.º), a queixosa pediu que fossem indicadas medidas para as autoridades da Federação Russa colaborarem com o TEDH, na investigação e que fosse desencadeado, sob o controlo do Comité de Ministros (o CM), um plano para a proteção efetiva dos defensores dos direitos humanos (e é este precisamente o lado incómodo deste Acórdão). Tivesse o TEDH aceite a existência de um dever de proteção – teoria das normas de proteção, a que o TEDH, sempre que necessário, recorre – a cargo do Estado em relação aos defensores dos direitos humanos em áreas sensíveis como a Chechénia, a adoção de regime e medidas de proteção destes defensores seria consistentemente decidida em execução de sentença com a cooperação do CM por meio do Serviço de Execução de Acórdãos em particular. Na medida em que o TEDH não foi sensível à existência de um dever de proteção do Estado em relação aos defensores dos direitos humanos, e que afastou liminarmente este segmento de queixa, por razões processuais pobres em relação à evidência (em torno do ónus de especificação exaustiva de cada fundamento de queixa, o que é contrário à própria repartição do ónus da prova admitida, na medida em que acaba por reintroduzir por esta via a regra velha “affirmanti incumbit (exaurita) probatio”, contraria o direito dever de iniciativa judicial, impede a decisão material do caso, e prejudica o princípio da livre apreciação da prova uma vez que esta é tolhida por indisponibilidade da matéria probatória em razão de armadilhas processuais, e impede a operação do princípio da ponderação das consequências, uma vez que este Acórdão não vai poder mais produzir o efeito útil que se esperaria, de se alcançar um regime de proteção das testemunhas). Este Acórdão ficou, assim, muito aquém do que poderia ter alcançado em razão da opção por uma comodidade processual, em desconfortável zona de demasiado conforto judicial.

A consequência desta solução ao caso Estemirova não é de pouca monta. Ficou, até ao próximo assassínio (uma morte que em juízo de prognose não póstuma “será” possível evitar?), pelo menos, impossibilitado o desenho de um plano de assistência à Federação Russa, por meio de um Acórdão Piloto (como o TEDH o fez em tantas ocasiões), o qual seria levado a efeito por ambas as autoridades Russas e o CM do CoE em sede de execução de sentença. Para isto serve o art.º 46.º muito bem acionado pela Queixosa.

Não se verificou, assim, para o TEDH a necessidade de indicar medidas a adotar em execução de sentença, abrigando-se esta alta jurisdição, mais uma vez, no argumento formal da natureza declaratória das decisões e Acórdãos do TEDH (natureza declaratória que não o impediu tanta vez de enunciar medidas a adotar em execução de sentença aos vários Estados Parte na CEDH), um argumento que dececiona numa formação judicial de tão elevada qualidade cujo tão rico acervo jurisprudencial é luz para as respostas aos permanentes problemas de direitos humanos. É mister recordar que foi o TEDH, por sua própria iniciativa, que, no dobrar do Milénio, entre 2000 e 2005 construiu com elegância (recorde-se que o Code Civil de Napoleão, fruto da obra do Imperador, tem origem nos jurisconsultos do S. XVIII, Domat e Pothier, os quais beberam as fontes dos seus trabalhos na conhecida jurisprudência elegante do Renascimento francês, nada nasce, em termos culturais, por geração espontânea[1]). Não deixou naturalmente, o TEDH de enunciar a conveniente fórmula, de preenchimento livre, segundo a qual as autoridades de investigação deveriam continuar a investigar a morte de N. Estemirova.

 

No final, os juízes Dedov e Zünd lavraram uma opinião dissidente. Segundo estes magistrados, ao contrário do que o leitor muito humilde deste Acórdão defende, nem sequer deveria ter sido considerada a violação do direito de queixa em sede dos art.ºs 34.º e 38.º na medida em que a investigação é obrigação de meios e não de resultado. Como a investigação representa milhares de folhas de processo e se verifica que o MP foi diligente, não haveria violação deste direito de queixa. Sucede que a diligência do MP do Distrito de Leninskiy é evidente e não contestada. Em questão estava a disponibilização de partes importantes, classificadas, da investigação, ao TEDH, o que o pode ter impedido de apreciar mais em detalhe os contornos do caso.

Enfim, segundo estes magistrados, no tocante à investigação (um argumento que parece estar ligado, não ao direito de queixa, mas à violação processual do art.º 2.º da CEDH por deficiência da investigação), a investigação teria permitido chegar a um resultado plausível no detalhe dos factos e não caberia ao TEDH substituir-se às equipas de investigação.

Para o muito modesto leitor deste Acórdão, seria até possível concordar, se houvesse sido registada a violação substancial do direito à vida de N. Estemirova por inexistência de um quadro legal e material (mormente a aplicação do regime penal da proteção de testemunhas, uma tão simples medida, eventualmente teria bastado) de proteção dos defensores dos direitos humanos. Faltando o reconhecimento da existência desta norma de proteção (a qual está contida em cada um dos artigos da CEDH como o diz o próprio TEDH), não é possível prescindir do reconhecimento das deficiências da investigação, ou a ausência de proteção passa a ser definitiva e total, ficando sem qualquer tutela jurídica. Além do mais, existem critérios internacionais de aferição da qualidade das investigações e foi a este quadro de critérios (e não a uma sofisticada verificação segundo o método posição – oposição – conclusão de aferição da prova tão caro a Platão, na República, que o apelida de dialéctica para aferir a essência da coisa) a que o TEDH singelamente recorreu. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos 

 

 




[1] Em contrapartida, é sabido que, mercê nomeadamente da feliz autonomia privada, as pessoas, nascem por geração espontânea.