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TEDH, 4ª Secção, Dragan Petrovic c. Sérvia, Acórdão de 14 de abril de 2020

22 abr 2020

CEDH, Artigos 8.º e 6.º, exame biológico demasiado intrusivo por não estar adequadamente previsto na lei. Art.º 8. 1, violação. Iniquidade processual, inadmissível.

Dragan Petrovic queixou-se contra a Sérvia de terem sido colhidas, sobre si, amostras de ADN e efetuada uma busca domiciliária, intrusivas do seu direito à vida privada e familiar, por ter sido acusado, por terceira pessoa de, com ela, ter tomado parte no homicídio de um idoso. Queixou-se ainda ao TEDH da iniquidade processual, no quadro do processo penal interno.

Nos dias subsequentes à denúncia do crime, o Ministério Público (MP) ordenou uma busca domiciliária na residência habitual do queixoso e determinou a recolha de uma amostra de saliva na língua deste, para o efeito de colheita de ADN, a confrontar com o lastro biológico deixado no lugar do crime. Alguns meses mais tarde o juiz de instrução criminal comunicou ao Ministério Público que a amostra de ADN colhida não correspondia aos vestígios biológicos encontrados no local dos factos. Dragan Petrovic acionou o Tribunal Constitucional (TC), por meio de um recurso próprio à reparação de ofensas a direitos constitucionalmente protegidos (um recurso de amparo constitucional, uma figura inexistente no ordenamento jurídico português), pela violação do seu direito à vida privada e familiar pela intrusão que representou, na sua pessoa, a colheita de ADN e a busca domiciliária, na sua residência habitual. O TC rejeitou a queixa, por improcedente, considerando que o MP e o Juiz de instrução tinham agido de acordo com a lei.

Analisando a queixa, o TEDH subsumiu-a ao artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar, e considerou, no plano da admissibilidade, que o recurso de amparo constitucional segundo o direito sérvio representou o esgotamento das vias de recurso internas pois um outro recurso, embora disponível, mas que não oferecesse a necessária tutela dos direitos ao interessado, não teria tal capacidade. Quanto ao mérito da queixa, o TEDH entendeu que a busca domiciliária na residência do interessado é relevante para a aplicação do art.º 8.º § 1 da CEDH. A interferência em que se traduz deve estar prevista na lei, prosseguir um fim legítimo e ser necessária numa sociedade democrática, sendo este último, um requisito de proporcionalidade da medida, em relação aos seus fins. O TEDH distinguiu a busca domiciliária da recolha de saliva do queixoso.

Quanto à busca domiciliária, o TEDH entendeu que o mandado judicial especificava o que era procurado (um blusão de cabedal preto e um par de sapatos) e não continha qualquer imprecisão que pudesse conferir excessivos poderes às autoridades incumbidas de realizar as buscas. Não se verificou, neste ponto, a violação do artigo 8.º da CEDH. Quanto à recolha de saliva para o efeito da identificação do ADN do queixoso, o facto de este não se ter oposto à realização do exame quando foi feito, não é relevante (para o efeito do consentimento do lesado) pois a mesma colheita teria sido efetuada pela força. Ainda assim, a medida poderia ser válida, não fora o facto de repousar em disposição legal do Código Penal (CP), de conteúdo demasiado genérico, insuscetível de conferir previsibilidade ao queixoso quanto à recolha desta amostra de ADN e ao seu emprego no processo. O mandado judicial que ordenou a colheita de ADN não referiu nenhuma disposição legal, como fundamento da medida. Por outro lado, não foi lavrado auto da realização da medida que, junto ao processo, permitisse alguma forma de controlo judicial desta. Enfim, a disposição muito genérica do CP que permitia uma ampla liberdade na prática destes atos de prova ao juiz, pecava pelo seu caráter genérico, vago e indeterminado. O TEDH chegou a esta conclusão com tanta maior facilidade quanto foi aplicada a versão do CP vigente ao tempo do exame. Ora, entretanto sobreveio a revisão deste CP mediante a adoção de um novo código, o qual descreve agora pormenorizadamente os atos de recolha de prova, nomeadamente de sangue e de saliva, para o efeito da identificação, por meio de teste, de ADN. Por estas razões, o despacho que ordenou a perícia não se sustentou em direito suficientemente claro e preciso, tanto mais que nem sequer existiu a fundamentação legal da perícia no despacho judicial que a ordenou. Houve assim, segundo o TEDH, neste segmento da queixa, a violação do artigo 8.º § 1 direito à vida privada e familiar.

Quanto à iniquidade processual interna invocada pelo queixoso, o TEDH considerou este segmento da queixa inadmissível por não terem sido esgotados os recursos internos. Nomeadamente a iniquidade processual não foi invocada perante os tribunais nacionais.

O Juiz Mouro-Vikström lavrou uma opinião dissidente quanto à violação do art.º 8.º, verificada pela não previsibilidade para o queixoso, da recolha de ADN. Para este magistrado, o CP em vigor admitia a recolha de sangue ou de qualquer outro elemento análogo de prova. Nesta conformidade, o MP pediu ao JIC uma recolha de saliva em alternativa à recolha de sangue, para o efeito do teste de ADN. Neste sentido, o JIC atuou no quadro de uma disposição legal previsível, pois havia fundamento para o ato de prova e podiam prever-se a sua função e emprego posterior, no contexto da obtenção e do uso de prova. A vaguidade da expressão “qualquer outro processo médico de prova”, apesar da sua imprecisão, não seria tão vaga ao ponto de impedir que se determinasse o ato de prova ou a sua função no processo.

Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos