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TEDH, 4ª Secção, EB c. Roménia, Acórdão de 19 de março de 2019

29 mar 2019

CEDH, Artigo 3º e 8.º. Violação mediante forte coação de mulher deficiente. Exigências demasiado rigorosas e formais em torno da verificação material da violação, sem ponderação nem avaliação da capacidade de autodeterminação da vítima. Investigação inefetiva conducente à degradação da dignidade da vítima. Violação.

EB queixou-se contra a Roménia de que o processo penal relativo às agressões sexuais de que sofreu foi inefetivo e de que a expôs a experiências traumatizantes como vítima de violação. O TEDH concedeu-lhe o anonimato.

A Requerente nasceu em 1973, com uma deficiência mental ligeira, a oligofrenia, a qual não impede a condução de uma vida considerada normal, segundo a comunidade médica. Reside com o marido numa aldeia da Roménia e, num dia em que regressava dos trabalhos do campo, foi abordada por um homem, TFS, que a terá levado, sob coação, mediante a ameaça com uma potente faca, para um cemitério próximo, onde a terá violado.

Depois de ter procurado queixar-se, sem êxito, a um polícia local, e não tendo conseguido fazer-se ouvir no posto de polícia, por este estar fechado, EB regressou a casa, tomou banho e contou a história à mãe, a uma amiga e ao marido. Queixaram-se, no dia seguinte, num posto de polícia de uma localidade de maior dimensão, tendo acabado por se identificar TFS, o qual negou ter violado EB. TFS tinha antecedentes criminais, tendo já sido condenado por violação.

O relatório de medicina legal a seguir à perícia, que então foi feita, reconheceu a existência de marcas de agressão no corpo de EB, as quais contudo não correspondiam a um sentido mais técnico de agressões sexuais. EB pediu proteção para ela e para a família e manteve a queixa contra TFS por violação. TFS foi várias vezes notificado pela polícia para prestar declarações mas nunca compareceu. Na medida em que o relatório de medicina legal não acusava sinais de violação, o Ministério Público desistiu da acusação e pediu o arquivamento do processo. EB recorreu ao juiz de primeira instância e este, sensível à pretensão de EB, ordenou ao MP que determinasse um exame psiquiátrico, no sentido de saber se, dentro da sua condição de oligofrenia, a vítima se poderia defender; se a vítima estava em condições de exprimir a sua vontade e de se autodeterminar perante uma situação de coação psicológica, que fosse feito um confronto entre a vítima e o seu agressor; bem como uma avaliação da personalidade da vítima, no sentido de avaliar o seu comportamento na sociedade e a sua credibilidade, no seio da comunidade. O juiz de primeira instância alertou ainda o MP para o facto de TFS já ter sido condenado por uma violação.

O MP recorreu deste despacho para a segunda instância, com fundamento em que, pelo tempo já decorrido, estas medidas ter-se-iam tornado inúteis. Esta instância aceitou o recurso do MP e determinou o arquivamento do processo. No final, a queixosa foi condenada nas custas. Queixou-se ao TEDH, que elencou a sua jurisprudência relevante (MGC c. Roménia, 15/03/2016; Balsan c. Roménia, 23/05/2017, IC c. Roménia, 24/05/2016 [sobre proteção de pessoas deficientes em situações de abusos sexuais] e Y. c. Eslovénia, 28/05/2015). Verificou que o Comissário para os Direitos do Homem do Conselho da Europa, num relatório seu, entendeu que a Roménia não protege suficientemente as pessoas com deficiência nestas situações.

Pronunciando-se em matéria de Direito, o TEDH aplicou o princípio juria novit curia para requalificar os fundamentos de queixa de EB (art.ºs 3.º, 6.º, § 1 e 13 da CEDH) dentro do âmbito do art.º 3.º (proteção contra tratamentos desumanos ou degradantes) e 8.º (direito à vida privada e familiar).

Olhando para os princípios gerais que enformam este caso, o TEDH considerou que o artigo 3.º da CEDH, ao impor que o Estado evite infligir maus tratos aos cidadãos, impõe um cuidado particular no tratamento das pessoas em situação de vulnerabilidade, em particular, no que respeita aos cidadãos com deficiência. Existe, assim, uma obrigação positiva, no sentido de o Estado se dotar de um ordenamento jurídico apetrechado com disposições que punem efetivamente a violação e que, ao serem aplicadas, determinem investigações efetivas, associadas a uma promoção penal adequada. Olhando para a situação em torno do artigo 8.º, entendeu que a proteção de todos os cidadãos, incluindo os mais frágeis, significa que se devem proteger estes das agressões eventuais dos mais fortes, o que significa trazer as obrigações positivas descortinadas no âmbito do artigo 3.º da CEDH, para o âmbito do seu artigo 8.º. Neste sentido, qualquer interpretação rígida da matéria de prova, do que seja coação sexual, nomeadamente das marcas no sentido médico-legal da agressão, deve ser evitada.

No caso, verificou-se a falta de resistência da vítima à agressão sexual e o problema, que acabou por se tornar central, foi o de saber se a vítima consentiu ou não no ato sexual. O TEDH considerou que nada foi feito para procurar alguma pista nesta direção. Que existia uma deficiência de EB que deveria ter sido tomada em conta nas investigações. Que houve um relatório médico-legal que confirmou a existência de marcas de agressão (nos braços, no corpo, ao ser empurrada para o chão e ao ser segurada, com força, pelos braços), embora inconcludente no sentido da violação (poderia nomeadamente ter sido pesquisado o ADN na roupa da vítima). Foi, ainda, rejeitado o cumprimento de um despacho do juiz da primeira instância, que ia no sentido desta posição do TEDH. Por todas estas razões, as autoridades contribuíram para a manutenção de um ambiente de impunidade em torno das ofensas sexuais praticadas sobre pessoas com deficiência. O TEDH notou, ainda, a escolha do local, particularmente intimidatório, um cemitério, para a prática do crime, o que nem sequer foi considerado pelas autoridades.

Uma vez que não existiram marcas de violência sexual sobre a vítima, embora existissem marcas de violência física que podiam constituir um indício, havia, segundo o TEDH que procurar a medida de autodeterminação (o consentimento) da vítima, nesta situação, diligência a que as autoridades não procederam. Estas, pelo contrário, acentuaram, com demasiada ênfase, a falta de resistência da vítima (e podemos inferir deste Acórdão do TEDH que não é verdadeiro, pelo menos em todas as circunstâncias, o brocardo latino segundo o qual “coactus tamén voluit” – apesar de não ter oposto resistência, a vítima não consentiu, não quis). E isto foi agravado por nem sequer se ter feito uma perícia psíquica da vítima.

Por fim, as autoridades não comunicaram à vítima qualquer dado do processo, nem cuidaram da sua proteção enquanto pessoa vulnerável, tornando desprovida de sentido a expressão “processo penal”. Verificou-se, assim, a violação dos artigos 3.º e 8.º da CEDH. O Acórdão foi aprovado por unanimidade pelo Comité de três juízes que o decidiu.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos