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TEDH, 4.ª Secção, Moraru e Marin c. Roménia, Acórdão de 20 de dezembro de 2022

26 jan 2023

Duas mulheres profissionais qualificadas na função pública, com igualdade de estatuto, competências e responsabilidades do que os homens, forçadas ope legis a reformarem-se mais cedo. Art. 1.º CEDH, Protocolo n.º 12, violação.

CEDH, Protocolo n.º 12, artigo 1.º, alegação de violação do direito á igualdade entre mulheres e homens da regra de segurança social que força mulheres trabalhadoras qualificadas a reformarem-se mais cedo do que os homens de igual estatuto e posição socio profissional. Violação.

Duas mulheres romenas, a exercerem profissões qualificadas na função pública romena viram-se constrangidas a reformar-se mais cedo que os seus colegas masculinos de igual posição e estatuto, no que alegaram ser discriminação de género, não tolerada pela Convenção europeia dos direitos humanos.

O problema.

A dificuldade está no desprestígio que, para elas, determina o afastamento prematuro das funções, traduzido na impossibilidade de aceder a posições mais elevadas em fim de carreira, e na austeridade maior a que são condenadas ao saírem para a reforma mais cedo, uma vez que, sendo as pensões o fruto dos períodos de tempo de trabalho, saem para a reforma com menos dinheiro disponível que os colegas masculinos no fim das suas carreiras profissionais e contributivas.

Os factos

As Requerentes Moraru e Marin queixaram-se “ a trabalho igual, condições iguais”, da discriminação de género que para elas aconteceria ao serem colocadas na reforma mais cedo, e com menos tempo de serviço que os seus colegas masculinos de estatuto socio- profissional equivalente. Tiveram o cuidado de proceder primeiro à notificação do seu empregador, o Estado, de que desejavam continuar a trabalhar para além do limite legal para a reforma, fixado para elas, em idade inferior à dos colegas masculinos de posição equivalente. 

Esgotaram previamente à queixa perante o TEDH, os recursos internos disponíveis, adequados e bastantes, mas perderam em todas as instâncias. Até que se queixaram ao TEDH. Basicamente, uma mulher reforma-se aos 65 anos na Roménia, enquanto que, para um homem da mesma posição e estatuto socio profissional, a reforma acontece posteriormente.

A lei aplicável na Roménia não prevê a possibilidade do trabalhador na reforma continuar a desempenhar a sua prestação de trabalho (o que corresponderia se acontecesse a figura do despedimento, ou a chegada, em Portugal, à idade de 70 anos, à figura da caducidade do contrato e posto e lugar de trabalho, permitindo-se, apesar de tudo, ao trabalhador neste contexto, o trabalho, se for este o desejo de ambos o empregador e o trabalhador, a prossecução da prestação de trabalho).

O Tribunal Constitucional Romeno recebeu inúmeras queixas contra esta imposição às mulheres da idade de reforma. Mas optou sempre pela não inconstitucionalidade do diploma dos despedimentos e reformas. Está no entanto referido no Ac. TEDH um Acórdão de primeira instância romena que reconheceu o direito às peticionantes. Mas não foi seguido nas instâncias superiores, apesar da sua autoridade.

O TEDH apensou as duas queixas e recebeu-as com a imputação da violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à CEDH, que prevê de modo direto a discriminação e não, como o art.º 14.º da CEDH, por referência a um concreto preceito de direitos humanos que teria sido violado…

Após declarar admissíveis as duas queixas, o TEDH confirmou tratar-se de um caso de violação direta do art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à CEDH. 

O Acórdão do TEDH

O TEDH definiu por referências a noção de discriminação (§§ 99 e segs.) e subsumiu-a a uma definição de um tratamento cuja diferença não é razoável e ofende a proporcionalidade. Certa discriminação ainda se poderá dizer aceitável se permanecer dentro da fundamentação e proporcionalidade correspondentes ao problema que se suscitou.

Tudo o que não tenha, em sede de tratamento diferenciado, algum suporte na proporcionalidade e na razoabilidade que ainda poderia justificar alguma desigualdade, à luz do quadro de situação considerado, ofende, segundo o TEDH, a regra da igualdade e não discriminação (Molla Sali c. Grécia).

Também o Estado encontra limite, no seio do mesmo grupo problemático, quando as diferenças que promove não se destinem a repor uma justiça de substância no seio deste contexto formal específico (vg., um grupo de trabalhadores qualificados). São autoridade nesta matéria, os Acórdãos do TEDH proferidos no caso Stec e Outros c. UK, 2001).

Neste contexto, o Estado goza de alguma margem de apreciação, uma vez que lhe compete identificar a área estatutária formal no seio da qual a desigualdade se produz, sendo que, nesta, lhe compete proceder às necessárias correções. Esta margem de apreciação é ampla nos domínios económicos e sociais, mercê das óbvias dificuldades que os Estados costumam atravessar, e justificam a sua maior autonomia nestes domínios.

Todavia questões existem, que assumem particular gravidade em razão da natureza do interesse convencional protegido (ou seja, à luz da importância que este determinado valor assume para a CEDH). Assim sucede nas questões de igualdade de género. Significa que, ao interferir num estatuto social preciso, a questão da igualdade de género reduz consideravelmente a margem de apreciação do Estado.

No caso sub-judice as trabalhadoras da função pública haviam desempenhado ao longo das suas carreiras, funções de exigência e responsabilidade idênticas às dos homens na mesma posição e estatuto socio profissional (uma na Administração tributária e a outra no Ministério da Agricultura, Comércio e Indústria).

Já no caso referido, Stec c. R.U., o TEDH havia decidido que as diferenças na idade legal de reforma ofendiam a proibição geral de discriminação de género da CEDH.

A igualdade de posições e estatuto das trabalhadoras em questão com os colegas masculinos fá-las incorrer numa situação em que a sua condição de género feminino é discriminada, competindo ao TEDH, nesta segunda etapa do seu exame, responder à questão de saber se esta medida satisfaz o teste de convencionalidade que consiste no seu método (exame da previsão legal, da sua previsibilidade e sua necessidade numa sociedade democrática, ou seja proporcionalidade da medida).

Que a medida estava prevista na lei interna e podia prosseguir fins legítimos estava claro, embora o TEDH, ao examinar o fim legítimo da medida verificasse logo que é precisamente este fim legal que conflitua com os valores defendidos pela CEDH. Que se tratasse de algo previsível para as interessadas podia ser contestado, uma vez que a própria jurisprudência interna em primeira instancia já havia proposto outro caminho, embora ainda não adotado formalmente pelo conjunto da organização judiciária. Que a medida fosse proporcional nem sequer chegou ao exame do TEDH, pois a medida choca desde logo com os valores convencionais, mercê da simples previsão legal e o modo cego como é aplicada, não se tratando, dentro da mesma condição estatutária, da correção de uma mera desigualdade factual. No seio do mesmo estatuto socio profissional (função pública qualificada) a correção factual teria, pelo contrário, sucedido se uma correção da situação no sentido proposto pela Primeira instância dissidente tivesse acontecido, no sentido de assegurar a permanência no trabalho destas trabalhadoras até ao limite legal dos homens na mesma posição e estatuto socio profissional.

Não encontrando, à luz da qualificação dos vários trabalhadores em questão, qualquer razoabilidade esta medida, a qual nem sequer encontra o suporte de uma justificação plausível, verificou-se, para o TEDH, a violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à CEDH, regra da igualdade e não discriminação no seio de posições, qualificações e estatuto socio profissional idênticos para as várias pessoas deste grupo (funcionários qualificados da AP).

O Acórdão, que se entende muito bem, foi adotado por unanimidade. As medidas de discriminação na idade da reforma (mais prematura para as mulheres) levantam uma questão de proteção do “género frágil” ao início da organização social do pós II.ª Guerra Mundial (um problema conhecido na Roménia e no Reino Unido). Não obstante, não se tratando de prestações de trabalho fisicamente penosas, mas de prestações qualificadas com alguma relevância, em carreiras profissionais longas e responsabilidades do mesmo teor, esta medida acaba por penalizar o “género frágil” de resto mais longevo que o “género robusto”), frustrando as suas expetativas de desenvolvimento e dignidade profissional. Uma carreira mais curta significa que, nestas profissões, as posições de relevo que na AP só se adquirem em fim de carreira, podem ficar vedadas a quem tem as carreiras mais curtas por imposição legal. Além do mais, sabendo como é efetuado o cálculo da pensão mensal de reforma, uma penalização pela reforma legalmente antecipada também iria atingir o direito à integridade das prestações mensais de reforma das interessadas, condenando-as a uma vida pessoal mais austera para qualificações, desempenho e responsabilidades, logo riscos, iguais; em relação aos homens na mesma condição (estatuto formal de igualdade, carreiras socio profissionais), com toda a frustração de fins de vida mais laboriosos e mais pesados.

De sufragar sem reservas este inteligente e muito humano Acórdão do TEDH.

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Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos