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TEDH, 4ª Secção, M.P. e Outros c. Hungria, acórdão de 8 de março de 2021

15 mar 2021

CEDH, Artigo 3.º tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, Art.º 3.º + 13.º ausência de recurso efetivo desta violação.  Art.º 5.º § 1 direito à liberdade e segurança, Art.º 5.º § 4 recurso da detenção. Art.º 34.º. violação de uma medida provisória decretada pelo TEDH. Art. 3.º violação, 3+13, não violação, 5.º § 1, violação bem como o § 4, art.º 34.º não violação.

Uma família iraniana e afegã, composta por 5 elementos, dos quais 3 crianças, queixou-se contra a Hungria da sua retenção no Centro de Röszke na fronteira entre a Sérvia e a Hungria entre Abril e Agosto de 2017.  Os queixosos invocaram a violação do art.º 3.º da CEDH, em razão das más condições da zona de trânsito (o centro de Röszke), tanto isolado como em cúmulo com o art.º 13.º da CEDH (ausência de recurso efetivo da imposição destas deficientes condições); do art.º 5.º § 1 (privação ilícita da liberdade), do § 4 do mesmo preceito (ausência de recurso da detenção), e do art.º 34.º (incumprimento pelas autoridades do disposto numa medida provisória entretanto decretada pelo Tribunal).

A história pessoal dos queixosos tem relevância no exame desta queixa pelo TEDH: a mãe alegou ter sido vítima de tortura no Afeganistão. Teria sido capturada, queimada e violada pelos Talibã, que mataram o seu 1.º marido. Numa data desconhecida, entre 2012 e 2014, fugiu do Afeganistão para o Irão com as 2 filhas do 1.º casamento, tendo aí encontrado o atual marido, com quem iniciou uma relação amorosa, tendo ambos vindo a casar. A família fugiu do Irão por, entretanto, o marido ter desertado das forças armadas iranianas, no início de 2016, atravessou a Turquia e a Grécia, onde foram separados. O marido conseguiu chegar à Áustria mas, sabendo que a família fora retida na Macedónia do Norte, procurou juntar-se à família. Acabou por ser preso numa estação de comboio na Hungria, tendo requerido o asilo político. Este pedido veio a ficar sem efeito, tendo a família acabado por se reunir na Sérvia. Procuraram entrar na Hungria e ficaram retidos na zona de trânsito de Röszke. Vieram a ser alojados na Seção destinada às famílias, em contentor, sem condições de acomodação humana. A mãe e os filhos contraíram hepatite B, tendo a família sido colocada em Seção de isolamento profilático.  Aí vieram a ser novamente colocados em contentor, sem condições de acomodação humana. Não dispunham de equipamento para confecionar refeições nem para lavar a roupa, as crianças não dispunham de área de recreio, existindo na seção de isolamento profilático um contentor de uso coletivo com uma mesa de ping-pong e uma televisão. O centro de retenção dispunha, ainda, de uma conexão fraca Wifi. As autoridades procediam todas as manhãs a uma contagem das pessoas retidas no centro.

ONGs de assistência humanitária e os serviços médicos do centro de retenção verificaram a condição de saúde precária da mãe e dos filhos, tendo procedido aos cuidados indispensáveis, e detetado na mãe uma condição depressiva associada a um forte stress pós traumático, causado pelas várias experiências de sofrimento vividas. O Gabinete húngaro para o asilo e as migrações encaminhou a família para o apoio judiciário, tendo-lhes sido concedida uma autorização de residência provisória. O Gabinete para o asilo e as migrações, embora dotado de competência na matéria, recusou conceder-lhes o estatuto de refugiados ou pessoas carentes de proteção subsidiária. Após recurso, este estatuto veio a ser-lhes finalmente reconhecido e a família pôde seguir para a Alemanha, onde lhe foi concedida a proteção internacional.  Queixaram-se ao TEDH.

Após o exame do direito húngaro aplicável, e das disposições do direito da União europeia pertinentes nestas matérias (nomeadamente as constantes da Diretiva 2013/33 EU do P.E. e do Conselho de 26706/2013), e tendo fixado o quadro de referência na sua jurisprudência, proferida no caso Ilias e Ahmed c. Hungria [Grande Chambre, GC], 21-11-2019, o TEDH identificou jurisprudência do Tribunal de Justiça da União europeia, constante de Acórdãos proferidos em processo de reenvio a título prejudicial (nos casos FMS e Outros c. Orszagos(…) [C-924/19 e C-925/19 PPU), em que esta alta jurisdição europeia verificara que as condições que determinados requerentes de asilo que chegaram à Hungria pela Sérvia e foram colocados no Centro de Retenção de Röszke, sofreram, se analisaram numa privação injustificada de liberdade.  À luz da Diretiva europeia referida, uma semelhante privação de liberdade nunca pode ser superior a 4 semanas (recorde-se que a família queixosa no presente processo ficou retida de Abril a Agosto). No domínio do Direito internacional público de vocação universal (Nações Unidas), o TEDH citou as disposições pertinentes da Convenção dos Direitos da Criança de 1989 (a CRC) relativas às crianças refugiadas.  Enfim, em termos de obrigações de reporte a título de obrigações internacionais, o TEDH destacou o Relatório do Governo em resposta à visita do Comité para a Prevenção da Tortura do CoE (o CPT) à Hungria, de 2017, no qual o CPT denuncia a escassez de espaço e condições de acomodação humana no Centro de retenção de Röszke , num regime de aplicação material mais próximo de condições de detenção em meio prisional do que de retenção administrativa de pessoas em trânsito internacional.

Reunidos estes materiais, o TEDH passou à análise da questão, na sua perspetiva de integração e aplicação do direito. O TEDH fixou um quadro preliminar de exame, a saber que, além da precária condição de saúde na pessoa da mãe, esta estava grávida de 6 meses. Este condicionalismo foi importante para entender que, apesar da queixa, por lapso de redação, ter sido redigida em nome do marido foi, na realidade, apresentada pelos cinco elementos do agregado familiar (a mãe, o pai e as 3 crianças menores). O TEDH procedeu, assim, ex officio, ao suprimento desta irregularidade, que sanou, admitindo a queixa formulada pelas 5 vítimas diretas. Passou ao exame dos vários fundamentos de queixa apresentados.

Artigo 3.º da CEDH. Apesar das objeções formuladas pelo Governo no tocante à admissibilidade, o TEDH, perante a gravidade e a complexidade da queixa, resolveu remetê-las para a decisão de mérito. No tocante ao fundo deste fundamento de queixa, o TEDH recebeu as observações de terceiro interveniente (amicus curiae) do ACNUR, que destacou a falta de tratamentos psiquiátricos e o deficiente apoio à maternidade no Centro de Röszke. Referiu, como guia para a condução da sua decisão neste segmento de queixa, o seu Acórdão proferido no caso Khlaifa e Outros c. Itália (2016), e salientou que a retenção administrativa de menores é particularmente problemática em razão da vulnerabilidade extrema das crianças, tanto em razão da sua condição pessoal como do seu estatuto próprio enquanto requerentes de asilo (Popov c. França (2012). Existem, ainda, disposições de direito da U.E. no sentido da proteção especial a conceder às crianças requerentes de asilo, as quais têm ainda correspondência na CRC. Como limite a este entendimento, no sentido de cada caso merecer exame e de não existir necessariamente uma presunção de culpa contra as autoridades do Estado, o TEDH destacou que, apesar deste modo de ser muito particular das coisas, se o Estado demonstrar que procedeu com o cuidado devido, não está obrigado a conceder (não se preenchendo a correspondente previsão legal) necessariamente o estatuto de refugiado. Ainda assim, pode suceder que as condições dos Centros de Retenção de Migrantes sejam de tal maneira extremas em relação às crianças, que se podem vir a verificar condições de carência atentatórias da dignidade humana que despoletam a aplicação da previsão do art.º 3.º da CEDH. Em termos gerais, o TEDH observou serem, neste contexto, as condições do Centro de Retenção, satisfatórias. Passou a analisar a situação na pessoa de cada um dos queixosos.

O marido. O TEDH destacou o seu percurso e as particulares condições por ele sofridas. Verificou-se relativamente a ele um tão grande extremismo na sua situação pessoal, que chegou a passar fome, tendo-se verificado a violação do art.º 3.º § 1 da CEDH.

A mãe e os filhos. O TEDH verificou a débil condição da mãe e a vulnerabilidade extrema das crianças e constatou que as autoridades não procederam a qualquer avaliação específica das necessidades da mãe nem das crianças, em relação à sua condição pessoal. Também as condições de vida nos contentores, sem acomodação humana viável, nomeadamente, além da ventilação deficiente, em matéria de mobiliário (camas não adequadas às crianças) foram notadas, bem como, no tocante às distrações das crianças, o facto de, na seção de isolamento profilático, estas não terem beneficiado de área de divertimento (sabendo que se trata de crianças de idade inferior a 7 anos). Quanto aos tratamentos médicos, apesar de algum auxílio ter sido prestado, estes foram, na generalidade, insuficientes e não tiveram em conta as carências nem da mãe, em condições de certa gravidade, nem das crianças, uma das quais, com a idade de 6 meses. Verificou-se, assim, também na pessoa da mãe e de cada um dos três filhos, a violação do artigo 3.º da CEDH.

Estas violações verificadas são violações de substância desta disposição.

Art.º 3.º + 13.º Falta de recurso efetivo das deficientes condições de retenção administrativa. O TEDH não entendeu ser necessário examinar este segmento da queixa separadamente à luz da conclusão, a que chegou, da violação das obrigações de substância do art.º 3.º da CEDH, na pessoa de cada um dos queixosos.

Art.º 5.º§ 1 da CEDH (direito à liberdade e à segurança).  O TEDH destacou, como critérios de apreciação da legitimidade da privação de liberdade (pode existir a detenção administrativa   de migrantes, à luz do art.º 5.º § 1 f da CEDH), 1.) a situação individual dos queixosos e as suas escolhas pessoais, (opções de destino de viagem), 2.) o regime jurídico de entrada, permanência e expulsão de estrangeiros em vigor no país em questão e a sua finalidade; 3.) a duração da retenção administrativa à luz também das garantias processuais dos requerentes de uma autorização de residência ou da concessão do estatuto de refugiado; e, 4.) a natureza e a extensão das restrições impostas ou sofridas pelos requerentes. O TEDH destacou que a razão de ser da retenção administrativa de migrantes ou requerentes de asilo, e no caso desta família, é/foi o exame do seu pedido de concessão do estatuto de refugiado, verificou que não existem indícios de um comportamento de má-fé da parte dos requerentes de asilo, e observou que a duração do tratamento dos pedidos de concessão do estatuto de refugiado foi extremamente longo (Abril-Agosto de 2019). Neste contexto, sabendo que as condições de retenção foram difíceis (tendo levado o TEDH a concluir pela violação do art.º 3.º § 1, na substância, quanto a estas), acrescentando a estas verificações, a inexistência de determinada disposição legal (no regime da entrada, permanência e expulsão de estrangeiros e de concessão do estatuto de refugiado aplicável na Hungria) de um prazo máximo de retenção dos requerentes, independente do desfecho do exame e da resposta das autoridades ao seu requerimento de concessão do estatuto de refugiado, o TEDH admitiu este segmento de queixa.  Destaque-se a importância das precedentes observações do TEDH, nesta sede de admissibilidade, para a sua decisão de mérito neste segmento da queixa. O TEDH passou, assim, ao exame do mérito deste segmento da queixa. Tendo destacado importante jurisprudência de referência no Acórdão por ele proferido no caso Z.A. c. Rússia, o TEDH concluiu pela verificação da violação do art.º 5.º § 1 da CEDH (direito à liberdade e segurança) na pessoa de cada um dos queixosos.

Art.º 5.º § 4. Os queixosos seguiram o método de, a cada violação de substância invocada (3.º, 3.º +13.º; 5.º § 1 ; 5.º § 4) associar a violação do direito processual correspondente. No caso do art.º 3.º, invocaram além da violação de substância, a violação do direito a um recurso efetivo desta infração da disposição convencional (art.º 13.º), embora não tivessem sido atendidos neste segundo ponto.  De modo paralelo, após terem invocado, com êxito, neste caso, a violação do art.º 5.º § 1 da CEDH (substância), queixaram-se da ausência de recurso efetivo da detenção (art.º 5.º § 4 ). Após ter admitido este segmento de queixa, e articulando a privação de liberdade administrativa (em abstrato possível, à luz do art.º 5.º §1 f) da CEDH) com o facto de não existirem regras de processo relativas à duração máxima da retenção administrativa, nomeadamente, no regime dos estrangeiros, bem como de não ter havido uma decisão formal de retenção dos requerentes em documento exarado pela autoridade competente, o TEDH observou que já tinha chegado à conclusão de que não se tratou de uma privação de liberdade com um fundamento jurídico próprio, mas como uma detenção de facto, segundo a sua própria expressão, e verificou a violação do art.º 5.º § 4 da CEDH na pessoa de cada um dos queixosos, por inexistência de um recurso efetivo da detenção disponível.

Art.º 34.º O TEDH passou, por fim, ao fundamento de queixa extraído do incumprimento, da parte das autoridades, de uma medida provisória por ele emitida em relação a esta família no quadro do processo. Fixou como quadro de referência, nomeadamente, o seu Acórdão proferido no caso Paladi c. Moldova [GC] 2009, segundo o qual os pressupostos da verificação do cumprimento da medida provisória estão fixados na própria medida provisória que determina as concretas obrigações do Estado perante este documento. Ora a medida provisória dirigida ao Governo, neste caso concreto, indicava a necessidade urgente de colocar a mãe grávida e os 3 menores nas condições correspondentes às suas carências (com referência, novamente à jurisprudência proferida no caso Popov c. França 2012), o que não foi feito, uma vez que, em carta posterior à comunicação da medida provisória, os queixosos informaram o TEDH de que esta não fora cumprida. Eventualmente as suas condições de retenção administrativa teriam piorado com o decurso do tempo. Apesar da oposição flagrante das autoridades à medida provisória do TEDH, e de que a esta luz, o leitor destes Acórdãos, esperaria a condenação correspondente pela violação do art.º 34.º, o TEDH, facultando a evidência da violação desta disposição da CEDH entendeu, com alguma clemência, que não seria de examinar mais adiante este segmento de queixa, uma vez que chegara já à conclusão da violação quanto ao art.º 3.º da CEDH, entendendo que não seria necessária uma decisão separada quanto a esta violação.

No entender modesto do leitor desta importante jurisprudência, na matéria extremamente sensível dos direitos humanos, face, de resto, a uma medida provisória imposta à maneira de uma providência cautelar do direito interno, pelo perigo na demora em relação a bens jurídicos vitais (como a integridade física e psicológica da mãe grávida), esta decisão, embora clemente (e por isso sempre bem vinda) do TEDH, não se entende. Pois esta alta jurisdição internacional, reconhecendo estarem, como o diz no seu Acórdão, reunidos todos os pressupostos de uma condenação, ao entender desistir desta, dá um mau sinal aos Governos quanto à sua própria autoridade. Ou seja, perante o decretamento futuro de uma medida provisória nos termos do art.º 34.º da CEDH, em matérias de inadiável urgência, as autoridades ficam a saber que se não lhe derem cumprimento, eventualmente não estarão sujeitas à censura do TEDH. Ora este tribunal de direitos humanos não pode desautorizar a sua própria competência. Para o leitor desta importante jurisprudência, o não cumprimento da medida provisória seria o que nos tribunais portugueses se designa “um caso tabelar” de violação do art.º 34.º da CEDH.

Por fim, o juiz Mourou Vikström emitiu uma opinião dissidente relativamente ao grupo de violações reconhecido existir pela maioria em redor dos §§ 1 e 4 do art.º 5.º da CEDH. O fundamento que apresenta e que na sua própria lógica é compreensível peca por ser algo formalista. Entende que estas disposições não teriam sido violadas porque os queixosos apenas ficaram retidos por estes longos meses (de abril a agosto) no Centro de retenção de Röszke, porque queriam entrar na Hungria. Na verdade eram livres de deixar o centro de retenção a todo o tempo, mediante a condição de desistirem de entrar na Hungria, optando por outro destino. Neste sentido, os seus direitos à liberdade e à segurança (§ 1) e ao recurso efetivo da sua detenção (§ 4), não teriam sido violados.

Esta observação é importante, tanto à luz da lógica rigorosa própria do método jurídico que é sempre de acolher e de respeitar na busca da adjudicação racional de um caso, como na própria capacidade em trazer alguma luz sobre as circunstâncias materiais dos queixosos (eles poderiam efetivamente ter optado por outro destino de acolhimento); mas sendo importante, ela convoca mais um elemento para a apreciação da questão. O de saber se à luz do percurso deste agregado familiar (Afeganistão – Irão – Turquia- Grécia – diversos países da Europa – fronteira servo-húngara) se pode pensar ou exigir a esta família que continuasse, em condições de um certo esgotamento verificado nos seus vários elementos (nomeadamente as doenças hepáticas, a gravidez da mãe, a sua condição psiquiátrica em torno de depressão e stress pós traumático) a procurar um destino alternativo e suplementar (como um shopping do acesso, em expressão análoga à criticada expressão conhecida do direito internacional privado de “forum shopping”, traduzindo a busca do foro mais favorável a um negócio). À condição desta família acresce o facto de não saber nem ter de saber quais são as portas de entrada mais favoráveis ao seu acesso, nomeadamente em relação à distância geográfica de onde provém e à referida condição física e psíquica.

A esta luz, o humilde leitor deste Acórdão que, por ser quem é apenas, reconhece poder não estar ciente de todas as dimensões desta realidade, não pode senão ser sensível à posição da maioria e concordar com esta, que se verificou a violação dos §§ 1 e 4 do art.º 5.º da CEDH, pelo extremismo de condições que as autoridades opuseram a um pedido, afinal legítimo, de concessão de estatuto de refugiado para um agregado familiar a cuja condição as autoridades públicas alemãs foram sensíveis, concedendo-lhe a proteção internacional e o apoio médico em território sob jurisdição da República Federal da Alemanha.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos