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TEDH, 4ª Secção, O.C.I. e Outros c. Roménia, Acórdão de 21 de maio de 2019

29 maio 2019

CEDH, Artigo 8.º§ 1. Vida privada e familiar. Interpretação da expressão “risco grave” do artigo 13.º da Convenção da Haia relativa ao Rapto internacional de Crianças. Regulamento de Bruxelas II, Convenção relativa aos Direitos da Criança. Violação. Art.º 3.º, maus tratos e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, não consideração pelo Tribunal.

O.C.I., cidadã romena, casou com P.L.R., cidadão italiano e foram viver para Itália. O.C.I. deu à luz dois filhos, em Itália, os quais são nacionais romenos e italianos. P.L.R. desenvolveu um historial de violência em contexto familiar, e por motivos não familiares, veio a ser alvo de um procedimento criminal na Itália.

De férias na Roménia, O.C.I. decidiu permanecer no seu país, ai guardando os filhos. Segundo ela, a vida com P.L.R. já não fazia sentido e os filhos não teriam mais futuro, em Itália. P.L.R. reagiu, por meio de uma queixa pelo crime de rapto internacional de crianças, segundo a definição da Convenção da Haia, relativa ao Rapto internacional de Crianças. Os tribunais romenos deram razão ao pai, apesar das alegações da mãe de que o pai infligia castigos corporais que ultrapassavam um certo patamar de violência, aos filhos, e da recusa destes em regressarem com o pai. Os Requerentes (O.C.I. por ela própria e em representação dos filhos) queixaram-se ao TEDH pela violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar.

Em execução de sentença, as autoridades romenas, apesar dos seus esforços e dos pedidos repetidos do pai, não conseguiram forçar o regresso das crianças para a Itália, acompanhando o pai. Consta que, ainda hoje, a mãe e os filhos continuam na Roménia. Ainda assim, a tensão processual em tornos das crianças foi fonte de instabilidade e de pressão sobre estas, o que levou os Requerentes a pedirem a condenação da Roménia, também pela violação do artigo 3.º da CEDH, proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, aqui na vertente dos tratamentos cruéis e degradantes.

O TEDH, em Comité de três juízes, procedeu ao exame da queixa. O Governo italiano, não apresentou observações, foi respondente o Governo romeno. A jurisprudência de relevância anterior é constituída pelos casos X. c. Lituânia, de 2013 e DMD c. Roménia, de 2017. O Governo aceitou ter existido uma interferência na vida privada e familiar dos Requerentes. E o TEDH colocou a questão de saber se esta interferência era necessária numa sociedade democrática.

Para o TEDH, a noção de risco grave do artigo 13.º da Convenção da Haia, que fundamenta as exceções ao dever de retorno dos filhos raptados com o progenitor inocente em relação a este rapto, recebeu uma interpretação que foi contestada pela mãe e os seus dois filhos. O TEDH ponderou, então, se o risco foi seriamente avaliado pelos tribunais nacionais. Sucede que foi feita a prova da violência paternal, tendo o próprio pai reconhecido que a empregava para corrigir as crianças. O TEDH chegou à conclusão que os tribunais nacionais entenderam que a violência que o pai empregava era pouca e que seria aceitável, no contexto da educação dos filhos.

A dignidade dos filhos é importante e repousa sobre o fundamento da proteção dos filhos contra os castigos corporais. Para o TEDH, nada existe, nas decisões judiciais romenas, que leve a entender que os filhos não serão mais sujeitos à violência se acompanharem novamente o pai. O Tribunal de Segunda Instância de Bucareste, o último a decidir, aceitou que, se o pai reincidisse, as autoridades italianas estariam em condições de as proteger do pai.

O TEDH observou que os Estados Parte da U.E., no caso a Itália e a Roménia, estão ligados pelo Regulamento Bruxelas II, que desenvolve a Convenção da Haia aplicável, e repousa na confiança mútua dos Estados entre si. Mas esta confiança mútua não significa que os filhos de um pai, que os tenha sujeitado a maus tratos, o devam acompanhar para um ambiente onde tenham sofrido violência. Não existe uma aplicação automática da Convenção da Haia, a qual aceita a sua não aplicação, em caso de grave risco para a criança. Esta noção deveria ter sido avaliada à própria luz do preceito da Convenção da Haia, em que está contida, à luz do melhor interesse da criança, tal como resulta da aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, e, por fim, à luz do próprio direito europeu dos direitos humanos, tal como plasmado na CEDH. Verificou-se, assim, a violação do artigo 8.º § 1 da CEDH, direito à vida privada e familiar da mãe e dos seus filhos. 

O TEDH não examinou a queixa, à luz do artigo 3.º em razão das considerações que expendeu em torno do segmento da queixa relativo ao artigo 8.º da CEDH. Todavia, o ambiente de assédio que as crianças, pelo menos, sofreram, em razão das tentativas, frustradas, é certo, de execução da decisão definitiva interna, poderia ter merecido, em termos de análise do TEDH, alguma reflexão, na medida em que este assédio das autoridades é algo diverso da questão do tratamento dado a uma noção, e certamente deixará alguma marca nas crianças, as quais não esquecerão este episódio da sua vida. É sempre importante, para quem trabalha com o direito interno, possuir as luzes que faculta a jurisprudência do TEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos