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TEDH, 5ª Secção, Barbotin c. França, Acórdão de 19 de novembro de 2020

26 nov 2020

CEDH, Artigo 13.º combinado com o art.º 3.º, Direito ao recurso efetivo de uma decisão de reparação a título do prejuízo moral por deficientes condições de detenção. O valor de uma perícia às condições de detenção requerida pelo queixoso, perícia que é considerada redundante por desnecessária pela justiça, ao ser imputado e cobrado a este queixoso, não pode inutilizar o valor da reparação concedida ao título do prejuízo moral por este sofrido pelas más condições de detenção sofridas. Deve ser-lhe possível pedir e obter a correção desta situação material onerosa.

Barbotin foi preso durante quatro meses na prisão de Caen (maison d’arrêt de Caen). As suas condições de detenção foram consideradas indignas, no plano interno, tendo-lhe sido atribuída uma reparação pecuniária de baixo valor (500€).  Queixou-se da inefetividade do recurso que teve de interpor da decisão de concessão desta indemnização, bem como de ter sido condenado a custear as despesas de peritagem conducente à verificação destas deficientes condições de detenção.

Por altura do tempo de prisão de Barbotin, o Inspetor-geral dos estabelecimentos de execução de pena verificou que a taxa de ocupação do estabelecimento penitenciário era de 179,5% e que, para além da sobrelotação carcerária, o edifício, sendo antigo, padecia de uma grande humidade que tornava determinadas células praticamente insalubres, como sucedia com as celas disciplinares.  Ainda assim, as instalações sanitárias estavam limpas, apesar de apresentarem bolor. Assim que foi colocado em liberdade, o queixoso pediu ao juiz do Tribunal administrativo de Caen (le juge des référés) a nomeação de um perito no sentido de verificar sem demora as condições de cada uma das celas que ocupara aquando do seu tempo de prisão. Beneficiou da concessão de apoio judiciário na totalidade (custas, taxas e nomeação de patrono) para este efeito.  O juiz administrativo concedeu o requerimento e nomeou um perito que apresentou tempestivamente o seu relatório. Das 6 celas que o queixoso ocupara, 5 estavam em boas condições, mas não a 6ª cela.  Nesta cela o queixoso vivera num espaço de 16 m quadrados com 4 outros reclusos; a cela estava em mau estado, era vetusta, mal iluminada e com fraco volume de ar disponível para 5 adultos. Além do mais, sendo que o arejamento se fazia por meio de janelas, a casa de banho era arejada por estas mesmas janelas, e só de modo indireto, o ar penetrava no interior do restante espaço da cela.  Quanto às instalações sanitárias propriamente, estas encontravam-se em más condições.

O tribunal administrativo (o TA) avaliou o custo da perícia em 773,57€, um montante que foi registado ser a expensas do Estado, por o queixoso beneficiar do apoio jurídico.  A então Ministra da Justiça deduziu oposição de terceiros, com fundamento em que a perícia pedida pelo queixoso teria sido inútil, uma vez que os serviços de inspeção haviam procedido entretanto à sua própria perícia.  O juiz do TA em 1.ª instância rejeitou o pedido da Sra. Ministra, a qual recorreu para a 2.ª instância administrativa competente, que anulou o despacho de indeferimento do juiz do TA. O queixoso recorreu sem êxito para a Cassation, que confirmou a decisão da 2.ª instância. O queixoso acionou então o Estado, em sede de responsabilidade civil extracontratual para obter a reparação do prejuízo moral sofrido com a sua prisão no Estabelecimento penitenciário de Caen. O TA de Caen veio a condenar o Estado no pagamento de 500€ de indemnização pelo dano moral das más condições penitenciárias.  Acrescentou a esta decisão, a injunção feita ao queixoso de este pagar o valor de 773,57 da perícia, uma vez que esta fora declarada inútil pela 2.ª instância administrativa. O queixoso acionou a seguir o pedido de visto do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura e tratamentos e penas cruéis, desumanos e degradantes), segundo as regras do direito francês, ao Conseil d’Etat, que rejeitou este pedido.

O queixoso apresentou então o caso ao TEDH invocando a violação do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos e degradantes), combinado com o art.º 13.º (ausência de recurso efetivo interno da violação de uma disposição da CEDH). O TEDH admitiu a queixa, remetendo certos aspetos em sede de admissibilidade, para a substância. O Observatório internacional das prisões, interveio, a título de terceiro interessado (amicus Curiae) para salientar que, em sede geral, o contencioso de indemnização por deficientes condições de detenção em França, é raro, e ainda sofre das decisões judiciárias serem descoordenadas, faltando jurisprudência consolidada. Além disso, existem no direito francês várias vias de formulação destes pedidos que acabam por prejudicar a consolidação desta jurisprudência. Enfim, as jurisdições internas observam critérios restritivos para a concessão das indemnizações pelo dano moral.

O TEDH elencou, quanto ao mérito, os seguintes princípios gerais. O art.º 13.º exige que um recurso seja tornado operacional, sempre que exista contra o Estado um gravame suscetível de merecer defesa (grief défendable) em benefício de um cidadão. Este recurso, que deve existir, tem de ser efetivo, no sentido de permitir alcançar um resultado concreto, o qual não tem de estar sempre adquirido em benefício do cidadão, na medida em que esta aquisição, a final, vai depender da atividade da justiça. Em matéria de condições de detenção, os meios disponíveis devem ser preventivos e compensatórios. Os meios compensatórios são relativos ao recurso de indemnização, sendo a jurisprudência de referência, a proferida nos casos Neshkov e outros c. Bulgária, e Shmelev e outros c. Rússia. Em matéria de recurso de indemnização, o montante da indemnização a conceder é um elemento constitutivo da efetividade do recurso no sentido do art.º 13.º da CEDH. Apesar deste modo de ser do montante da reparação a conceder, este não tem de corresponder necessariamente à totalidade do pedido de um requerente. O TEDH observou que o recurso de indemnização está disponível e é adequado a reparar, segundo o direito francês; e que as jurisdições internas operaram dentro dos critérios gerais fixados na jurisprudência do Conseil d’Etat.  A cargo do TEDH estava pois a avaliação da compatibilidade destes seus critérios com a sua própria jurisprudência. O TEDH observou que o TA aplicou o princípio da dignidade humana ao avaliar as condições de detenção insuficientes, que a 2.ª instância e a Cassation aplicaram as mesmas regras e que o visto do art.º 3.º da CEDH, disponível no processo do Conseil d’Etat foi igualmente cumprido. Nesta conformidade as jurisdições internas verificaram a responsabilidade extracontratual do Estado. Acabou por ser concedida reparação ao queixoso segundo o direito interno.

Satisfeitos estes passos do método de verificação da compatibilidade do procedimento das jurisdições internas com a jurisprudência do TEDH, ficou para este a verificação da adequação do montante da reparação aos critérios do recurso efetivo compensatório, em matéria de condições de detenção. Sucede que o queixoso alegou que a colocação a suas expensas da peritagem inutilizou a indemnização (inferior ao valor a restituir) atribuída. O TEDH reconheceu que, pelo jogo da compensação atribuída com a consideração judicial da inutilidade da perícia por este pedida, ainda ficaram a cargo do queixoso 273,57 € numa situação em que foi reconhecida a responsabilidade do Estado. Após desenvolver um conjunto de obiter dicta que contribuíram para a formação da ratio decidendi, entre os quais a verificação de que, posteriormente, em 2018, dando-se conta da escassez em valor das reparações concedidas nestes casos, o Conseil d’Etat instituiu um critério progressivo de reparações (barême progressif); o TEDH entendeu que, pelo jogo dos critérios de compensação muito rígidos entre o valor da reparação e o custo da perícia, o queixoso acabou por ser privado do seu direito à compensação, no quadro dos critérios do recurso compensatório efetivo em matéria de condições materiais de detenção. Verificou-se assim a violação do art.º 13.º da CEDH, combinado com o art.º 3.º.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos