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TEDH, 5ª secção, Bivolaru e Moldovan c. França, Acórdão de 25 de março de 2021

1 abr 2021

CEDH, Artigo 2.º direito à vida; Artigo 3.º tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, Os princípios da presunção da proteção equivalente, do reconhecimento e da disponibilidade de base factual bastante para uma decisão informada de um magistrado incumbido de dar execução a um mandado de detenção europeu (MDE).  A oposição ao mandado com fundamento no perigo de sofrer penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Art.º 3.º numa das queixas, violação; na outra, não violação.

Bivolaru e Moldovan, dois cidadãos romenos, queixaram-se contra a França, alegando a violação do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes), que se teria, em seu entender, verificado nas suas pessoas em razão da execução de um mandado de detenção europeu (um MDE).

Em 2015, o Tribunal de Mures, na Roménia, condenara Moldovan em pena de 7 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de tráfico de pessoas praticado em França, em 2010, por ter forçado 6 cidadãos romenos, dos quais uma criança menor, à prática de mendicidade. Após ter assistido à audiência de julgamento, este queixoso regressou a França, onde era residente.  Foi emitido pelas autoridades romenas um MDE contra este com vista à execução da pena.  Três dias antes da receção do MDE, Moldovan fora constituído arguido por burla, furto por introdução em habitação alheia e a recetação dos produtos destes crimes em habitação ou entreposto.  Em consequência foi decretada a sua prisão preventiva. Veio a ser colocado em liberdade provisória mais tarde, mediante a prestação de termo de identidade  e residência, traduzido no dever de apresentação periódica semanal na esquadra de polícia da sua área de residência. No dia da sua apresentação semanal foi detido para cumprimento do MDE. Tendo-lhe sido perguntado se concordava, respondeu negativamente. Presente ao Juizo de instrução criminal do Tribunal de Segunda Instância de Riom (França), opôs à execução do MDE as difíceis condições de detenção reconhecidamente existentes na Roménia, citando jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (o TJUE), em questões de reenvio a título prejudicial, nomeadamente o Acórdão proferido no caso Aranyosi e Caldararu (C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C: 2016). Exigiu que o Juízo de instrução criminal do tribunal de segunda instância pedisse e obtivesse informações complementares sobre a sua detenção futura na Roménia. Valeu-se, ainda, da jurisprudência extraída dos Acórdãos do TEDH proferidos nos casos Voiu c. Roménia, Bujoran c. Roménia, e Mihai Laurentin Maru c. Roménia e Constantin Amelin Butuca c. Roménia, todos de 2014.

O juiz de instrução recebeu o requerimento e solicitou as informações pedidas às autoridades romenas. Estas, na sua resposta, indicaram o Estabelecimento prisional (o EP) em que o queixoso se iria integrar, descrevendo as respetivas condições materiais (inclusivamente quanto ao espaço das celas). O queixoso insistiu sobre a potencial violação do art.º 3.º da CEDH a que poderia vir a estar sujeito, tendo, mediante Acórdão de 5 de Julho de 2016, o juízo de instrução criminal da segunda instância de Riom, decidido dar execução ao MDE mediante a correspondente entrega do queixoso às autoridades romenas. Na parte dispositiva do Acórdão, o juiz de instrução salientava que as autoridades romenas estavam adstritas ao cumprimento das condições que tinham enunciado na resposta por elas prestada.  O recorrente apelou para a Cour de Cassation tendo o seu recurso sido rejeitado. O queixoso foi entregue em cumprimento do MDE.

Quanto ao processo de queixa de Bivolaru, este liderou um movimento de ioga conhecido por “Movimento para a integração espiritual no Absoluto “ (o MISA). Existe alguma jurisprudência do TEDH relativa ao MISA, a qual está documentada em Acórdãos de 2010 e 2004 (ver §16 do Acórdão). Bivolaru foi alvo de promoção penal em 2004 e, após um determinado tempo passado em detenção, veio a ser colocado em liberdade. Esta promoção penal era relativa a acusações de prática de actos sexuais sobre menores, caracterizados por perversão, e corrupção, aos quais acresciam as imputações de tráfico de pessoas e de passagem ilegal de fronteiras. Em data incerta, Bivolaru fugiu para a Suécia onde requereu o asilo político, que lhe foi concedido. Tendo as autoridades romenas pedido a entrega de Bivolaru, as autoridades suecas recusaram os pedidos, pela condição de refugiado do queixoso. As autoridades suecas emitiram documentação de viagem na qualidade de refugiado em benefício de Bivolaru. Entretanto, no mesmo período de tempo, Bivolaru foi julgado e condenado in absentia pelas autoridades judiciárias romenas em 6 anos de prisão por relações sexuais com menores, tendo sido emitido um MDE para o cumprimento desta pena, em 2013.

Veio entretanto a desenvolver-se um processo em torno de Bivolaru em França. Foi apreendido em 2016 em Paris, ao circular com identidade falsa, na posse de falsos documentos búlgaros. Bivolaru foi identificado como sendo o alvo de um pedido de entrega em cumprimento de MDE e foi presente ao Juízo de Instrução Criminal da Segunda Instância de Paris, para se pronunciar sobre a sua entrega. Bivolaru opôs a deficiente qualidade das condições materiais de detenção na Roménia, a qual seria contrária ao disposto no art.º 3.º da CEDH. O juiz de instrução criminal, confrontado com a apresentação dos documentos de viagem na qualidade de refugiado em benefício de Bivolaru, solicitou às autoridades suecas que se pronunciassem, em pormenor, sobre as condições que haviam presidido à concessão do estatuto de refugiado a Bivolaru.  Na sua resposta, as autoridades suecas justificaram com a lei as razões da outorga deste estatuto e frisaram que a posse de documentação falsa não era bastante, à luz do respetivo ordenamento jurídico, para levantar o estatuto de refugiado.  Ainda assim, o juízo de instrução criminal do tribunal de segunda instância de Paris decretou, mediante Acórdão, o cumprimento do MDE exarado pelas autoridades romenas. Bivolaru recorreu para a Cassation francesa, esgotando os mais variados meios. Foi reconduzido à Roménia em junho de 2016, em execução do MDE.

De um anterior Acórdão do TEDH sobre um processo interno deste mesmo queixoso, em que o Tribunal verificara a violação do art.º 6.º § 1 da CEDH pela desrazoável demora do processo, consta que Bivolaru veio a ser colocado em liberdade provisória em setembro de 2017.

O TEDH procedeu à apensação dos dois processos de queixa. Observando o quadro jurídico e a prática, o TEDH debruçou-se em 1.º lugar sobre o direito da União Europeia (a U.E.), em razão da formulação de um MDE. Abordou as disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da U.E. (a CDFUE), que proíbem a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, bem como o direito de asilo político (art.ºs 4.º e 18.º). Descreveu o regime jurídico da Decisão Quadro 2002/584/JAI tal como modificado pela Decisão Quadro 2009/299/JAI de 26. 02.2009, cujo resumo da operação jurídica está indicado no Acórdão proferido pelo TEDH no caso Pirozzi c. Belgica (2018). Além destas fontes de direito da U.E. referiu o art.º 78.º do Tratado de Funcionamento da U.E. (o TFUE) relativo ao asilo político, bem como o art.º único do Protocolo n.º 24 a este Tratado, relativo ao estatuto de refugiado de que podem vir a beneficiar cidadãos de Estados Membros da U.E. Enfim, os requisitos do benefício e concessão de proteção internacional de um Estado Membro (E.M.) da U.E. constam da Diretiva 2011/95/U.E de 13 de dezembro de 2011. Descreveu ainda o teor de abundante jurisprudência do TJUE em casos de reenvio da questão a título prejudicial constante dos Acórdãos Melloni c. Ministerio Fiscal (C-399/11:EU:C:2013); Aranyosis e Caldararu, já referido, M.I. (C-220/18, PPU, Generalstaatsanwaltschaft/Hungria [condições de detenção]; E.U.:C-2018:589); Dorobantu (C-128/18, U.E.: C:2019:857) e L.e P. Openbaar Ministerie (C-354/20 PPU; e C-412/20 PPU: U.E. : C: 2020: 1033).

No direito internacional de vocação universal (em torno da Carta internacional dos direitos humanos), o TEDH analisou as disposições relevantes da Convenção de Genebra de 28/07/1951, relativa ao Estatuto de Refugiado (“A Convenção de Genebra”). A seguir, o Acórdão descreve as disposições aplicáveis do direito processual penal francês. Colocado o quadro da matéria de facto e o conjunto de fontes do direito aplicáveis, uma vez apensadas as queixas e destacando que, em razão das más condições de detenção que existiriam nas prisões, ambos os queixosos invocavam as violações dos art.ºs 2.º (vida) e 3.º(tortura) da CEDH, o TEDH passou ao exame da admissibilidade das queixas. Admitiu ambas as queixas sem dificuldade e passou ao exame do mérito.

Seguindo o seu método, uma vez apresentadas as observações das partes, o TEDH destacou o princípio de “proteção equivalente” constante das Diretivas da U.E. relativas ao MDE, o qual fora por ele próprio analisado nos seus Acórdãos “Bosphorus Hava Yollari Turizm ve Ticaret Anonim Sirketi c. Irlanda” [GC]- 2005; e “Michaud e Avotins”. Ao aplicarem o direito da U.E., os E.M. continuam obrigados ao cumprimento das obrigações livremente assumidas ao aderirem à CEDH. Em contrapartida, estes compromissos de direitos humanos à luz do direito convencional, devem analisar-se em torno do princípio da “proteção equivalente” constante das regras relativas ao MDE nas Diretivas U.E.

Significa que o cumprimento de compromissos jurídicos entre países (em execução do MDE e das competentes regras) encontra-se justificado sempre que o quadro jurídico de proteção dos Direitos humanos de ambos os países em relação, seja, não propriamente equivalente, mas comparável (em português, no sentido de “equiparável”). Sempre que se regista uma evolução no sentido do progresso dos direitos humanos, o enquadramento de direitos humanos de ambos os países, para o efeito da “proteção equivalente” deve acompanhar este progresso. São critérios da “proteção equivalente”: 1. A falta de campo de manobra das autoridades nacionais em relação à concreta questão; 2. O cumprimento de todo o potencial de controlo da medida de entrega em concreto, à luz do dispositivo das duas Diretivas da U.E. relativas ao MDE. A “margem de manobra” referida no ponto 1. significa que para o Estado solicitado não há outra alternativa do que a de cumprir o MDE, à luz dos seus compromissos europeus.

Os mesmos critérios são de aplicar em todos os casos de operação do princípio do “reconhecimento mútuo” (operando este como uma presunção segundo a qual ambos os ordenamentos jurídicos estão conformes e são correspondentes, à luz do direito europeu). No tocante ao princípio do reconhecimento mútuo compete ao TEDH verificar que não foi aplicado de modo automático, sem verificação dos correspondentes pressupostos.

No caso vertente, por referência ao referido Acórdão Pirozzi, o TEDH observa o critério segundo o qual, inexistindo motivos para não cumprir o MDE, a sua execução é obrigatória para a autoridade judicial executante (no sentido de incumbida da sua execução). Isto significa que se presume a “proteção equivalente”.

No tocante ao art.º 3.º da CEDH (compreende-se que neste passo, o TEDH irá requalificar a queixa do art.º 2.º para o 3.º, debruçando-se apenas sobre a violação alegada desta disposição), o TEDH recordou o princípio geral que explica a proibição constante do art.º 3.º da CEDH, e que foi desenvolvido em 1989, no caso Soering c. U.K.; ou seja, é proibido expulsar, deportar, extraditar ou entregar alguém se vier a ser sujeito a tratamentos e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, no país que pede esta entrega.

Apreciando a queixa de Moldovan (o 1.º queixoso) à luz deste quadro de princípios, o TEDH não duvida que a entrega deste às autoridades romenas o iria sujeitar às deficientes condições materiais de detenção na Roménia. A questão não se analisa à luz das obrigações da Roménia no quadro da Convenção para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa (a CPT do CoE), que se articula em torno do art.º 3.º da CEDH desenvolvendo um quadro processual que alicerça a intervenção do CPT do CoE; mas à luz do dever da responsabilidade das autoridades francesas de observar a existência das garantias do art.º 3.º na Roménia, à luz da sua obrigação de entrega em cumprimento do MDE.

Tendo Moldovan demonstrado a existência de condições materiais de detenção difíceis na Roménia, sustentada em numerosos Acórdãos do TJUE e do TEDH, foi necessário a este último Tribunal verificar se a França observou as condições de aceitação da presunção da existência de “proteção equivalente” (entre os Estados romeno e francês, no contexto da articulação do quadro jurídico aplicável e das concretas condições materiais de detenção). Para o TEDH, em caso de não correspondência da situação jurídica e material vigente na Roménia com a situação jurídica e material vigente em França, o juiz nacional deveria rejeitar o cumprimento do MDE. Ainda assim, à luz do quadro normativo fixado pelo MDE, o direito europeu e a jurisprudência do TEDH, este concluiu, perante o critério da margem de manobra, que o julgador não dispunha desta margem para decidir de outro modo. Apenas quando a violação dos direitos humanos fosse de uma gravidade excecional é que seria de aplicar o princípio do primado dos direitos humanos em relação ao princípio da prevalência da cooperação internacional. Ainda assim este modo de colocar a questão não a esgotou, pelo que o TEDH teve de a analisar mais detalhadamente à luz do critério (invocado pelo queixoso) da insuficiência manifesta de proteção dos direitos garantidos pela Convenção. É motivo legítimo de recusa de entrega a sujeição a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (Romeo Castaño, cit.). A questão é, então, a de saber se a jurisdição de execução dispunha de bases factuais para se poder opor ao cumprimento do dever de entrega. O TEDH notou o detalhe com que o queixoso descreveu as condições materiais de detenção na Roménia e observou a resposta cuidada que o juiz romeno que prestou a informação solicitada pelas autoridades francesas lhes deu.

Isto permitiu ao TEDH concluir pela disponibilidade para o juiz de execução (o juiz francês) de base factual bastante. Ora, no quadro deste elenco de bases factuais, está a jurisprudência do próprio TEDH, relativa às condições de detenção na Roménia, a qual, além de citada, consta em abundância da página do TEDH, na base de jurisprudência Hu-Doc. Entre esta jurisprudência consta o Acórdão proferido no caso Mursic c. Croácia [GC], 2016 (objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página) segundo o qual é violadora do art.º 3.º da CEDH uma disponibilidade de espaço por cela, por indivíduo inferior a 3 m2. Ora esta indicação consta dos Relatórios do CPT a  que a autoridade judicial francesa tem acesso, e que esta ignorou. Verificou-se, assim, a violação (substância) do art.º 3.º da CEDH. O TEDH não analisou a questão à luz do art.º 2.º da CEDH.

Passou à aplicação dos mesmos critérios, segundo o seu método, no caso Bivolaru. Neste processo, além da análise em torno da “proteção equivalente” e de alguma medida de “reconhecimento mútuo”, interfere um parâmetro adicional, a ter em conta. O da condição de opositor político ao regime, de Bivolaru. Este prevaleceu-se do Acórdão Aramandei e outros c. Roménia, cit. supra, em relação às acusações de pornografia e de pedofilia que as autoridades lhe dirigiram.  No caso objeto do Acórdão Aramandei, o MISA, em que Bivolaru se integra, fora alvo de imputações que legitimaram buscas domiciliárias em residências e na sede do movimento, as quais foram conduzidas com uma violência extrema, culminando com a detenção e prisão de vários elementos, tendo o TEDH julgado neste Acórdão terem sido violados os art.ºs 3.º (tortura), e 5.º (liberdade e segurança), 8.º (vida privada e familiar) em relação às várias falhas registadas na busca e na apreensão destes documentos (e na correspondente detenção arbitrária de elementos do movimento), bem como, na divulgação das operações de polícia na imprensa. Enfim, o Tribunal rejeitara as alegações de violação do art.º 9.º e 14.º (liberdade de pensamento e consciência mais discriminação em razão do pensar diferente), invocada pelos requerentes, destacando que, embora este movimento estivesse sob vigilância desde 1990 (o Acórdão Aramandei reporta-se a factos de 2004, a vigilância desde 1990 justificar-se-ia porque as tomadas de posição do movimento contrariavam os interesses internacionais do Estado), as imputações deste processo (de 2004) que fundamentaram toda esta controvertida intervenção correspondiam a indícios de terem sido cometidas infrações penais em certos edifícios em relação com o MISA. Este o enquadramento da questão colocada por Bivolaru, no contexto da execução do seu MDE.

O TEDH passou à questão da aplicação da presunção de “proteção equivalente”. Previamente ao próprio mecanismo da “proteção equivalente”, o TEDH observou que a Cour de Cassation decidiu proceder à execução do MDE ignorando o pedido de reenvio da questão a título prejudicial ao TJUE formulado por Bivolaru. Ora a Cassation citou o Acórdão I.B. referido do TJUE, segundo o qual o facto de uma prova de que foi formulado o pedido de asilo político no Estado de execução não seria fundamento de recusa de entrega. Ora, para o TEDH, a questão da titularidade por Bivolaru de documentos de viagem na qualidade de refugiado já emitidos pelas autoridades suecas, não se confunde com o requerimento da concessão do estatuto de refugiado. Porque concretamente este estatuto já se constituiu na esfera jurídica de Bivolaru, ainda que não no Estado de execução do MDE, mas em um outro Estado pertencente ao mesmo espaço jurídico, o qual indicou expressamente na sua informação que a posse de documentação falsa não era bastante à luz do seu direito interno para afastar o estatuto de refugiado. Esta análise foi bastante para prejudicar a necessidade de abordar a questão da presunção da existência de “proteção equivalente”.

O TEDH foi então confrontado, segundo o seu método, com a questão de saber se, em relação ao estatuto de refugiado de Bivolaru, a entrega deste às autoridades romenas em cumprimento do MDE era ou não contrária ao art.º 3.º da CEDH. Neste ponto, a questão foi a da apreciação pela autoridade judiciária francesa da questão de saber se existia para Bivolaru, um verdadeiro perigo de sofrer tratamentos e penas cruéis, desumanas e degradantes. A questão anda novamente em torno da disponibilidade de bases factuais suficientes (a mesma que levou, na 1.ªa queixa, o TEDH a verificar a violação do art.º 3.º da CEDH). O TEDH, nos seus obiter dicta, destaca um aspeto de relevo em torno da questão do asilo político. Não existe segundo este Tribunal um direito de asilo ou um direito de asilo protegido pelos textos internacionais, mas sim a proteção por estes mesmos textos dos concretos direitos (à vida, à integridade; à liberdade e à segurança) que o instituto do asilo como figura jurídica do direito internacional, se destina a tutelar. Ora, em termos de material factual, a própria razão que conduziu as autoridades suecas a conceder o estatuto de refugiado, é material fáctico bastante para indicar a possibilidade da sujeição de Bivolaru à violação dos direitos em razão de cuja proteção lhe foi concedido o estatuto de refugiado. Ainda assim, embora Bivolaru tenha sido um dos condenados no caso Aramandei e Outros, e fosse destacada a sua situação de político opositor, as autoridades suecas não insistiram na essencialidade em observar o estatuto de refugiado embora dissessem que o mantinham. Por seu turno, embora tenha justificado genericamente a possibilidade de vir a ser sujeito a tratamentos e penas cruéis, desumanos e degradantes contrários ao art.º 3.º da CEDH, Bivolaru não consubstanciou este perigo em relação ao particularismo da sua condição de refugiado. Enfim, a autoridade judicial terá ponderado a matéria factual no tocante à condição de refugiado com o cuidado devido. Significa que a autoridade judicial não dispunha de base factual bastante para decidir diversamente no tocante a esta dimensão do problema.

O TEDH passou a seguir à análise das condições materiais de detenção na Roménia. Voltou a equacionar as questões em torno da presunção de “proteção equivalente”; as bases factuais necessárias para afastar esta presunção em benefício da primazia dois direitos humanos, mas, curiosamente, entendeu que Bivolaru não fez alegação bastante da matéria das deficientes condições materiais de detenção, não tendo assim dado oportunidade às autoridades judiciais francesas para solicitarem por iniciativa própria informações sobre as condições materiais de detenção existentes na Roménia. Não se verificou, assim, segundo o TEDH, a violação do art.º 3.º da CEDH na pessoa deste 2.º queixoso.

Seja ao muito modesto leitor destes importantes Acórdãos do TEDH, permitida a formulação de algum desassossego e perplexidade em relação a este Acórdão com duas adjudicações diversas mas em torno da mesma questão de direito com igual matéria de facto, não na questão do estatuto de refugiado, mas no domínio da avaliação da matéria factual disponível.

A questão essencial, além do pôr em balança do conjunto presunção de “proteção equivalente” + “reconhecimento mútuo” versus proteção dos direitos humanos na Europa, a qual goza de primazia, anda em torno da concreta disponibilidade de base factual da parte da autoridade judiciária para fazer prevalecer um ou outro dos segmentos (neste caso alternativos e disjuntivos, ou seja a opção por um, exclui o outro) da opção disponível ao magistrado – reconhecer a presunção de “proteção equivalente” ou dar prevalência aos direitos humanos na Europa.

No fundo, na balança da justiça, a base factual disponível opera como o peso que se vai colocar num ou noutro dos pratos da balança para a operação do seu fiel. Ora a situação das condições materiais de detenção na Roménia, embora não tenha eventualmente a dimensão do “facto notório” em direito, é conhecida. Se o TEDH destacou alguma preguiça do juiz de instrução penal francês, ao ignorar a jurisprudência do TEDH proferida no caso Mursic c. Croácia (2016), relativo ao espaço disponível em detenção como critério do patamar aceitável a que o próprio TEDH recorre na sua jurisprudência, e ao não articular esta informação com os Relatórios do CPT relativos à Roménia, dos quais consta que o espaço disponível por pessoa, por cela, é inferior ao estabelecido na jurisprudência Mursic (3m2); para concluir pela violação do art.º 3.º da CEDH na 1.ª queixa; não se percebe como o TEDH não exigiu a mesma diligência ao julgador no segundo processo de queixa. Mediante requerimento do juiz do processo, qualquer Técnico superior não magistrado em funções no juízo de instrução criminal da 2.ª instância de Paris (até um funcionário de biblioteca ou de centro de documentação com licenciatura em direito e acesso à internet) teria procedido à pesquisa e instruído a decisão do Magistrado.

O problema é realmente uma questão de método, pois traduz uma redução do processo penal a um modelo de processo civil antigo, em que para que uma fundamentação pudesse ser atendida, era necessário o cumprimento rigoroso do chamado “ónus de impugnação especificada” (embora aqui não se trate de impugnar, mas de apresentar um argumento), sem o qual um pedido com potencialidade para ser atendido passava ao lado do escrutínio judicial por não ter sido exaustivamente apresentado no detalhe. Possivelmente, à luz dos esforços no sentido de alcançar uma gestão processual diligente, de iniciativa judicial (ainda mais premente à luz do processo penal, em particular em casos como este que podem implicar a sujeição a maus tratos de modo real), com a correspondente discricionariedade do juiz, sempre ligada à ponderação das consequências, nem à luz do princípio do esgotamento dos recursos, além de judiciais, argumentativos, internos, esta divergência de critérios nas duas queixas, extremamente formal, e por isso, algo redutora, à luz do direito europeu dos direitos humanos, não se entende.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos