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TEDH, 5ª Secção, PM e FF c. França, Acórdão de 18 de fevereiro de 2021

1 mar 2021

CEDH, Artigo 3.º tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, queixa de dois detidos em condições de ebriedade que praticaram violência. Demonstração pelas autoridades de que o tratamento, tanto processual, quanto na substância, do seu caso não ultrapassou o patamar de tolerância do art.º 3.º da CEDH. Não violação.

PM e FF, dois cidadãos franceses queixaram-se ao TEDH contra a França alegando terem sido alvo de violência da parte das autoridades policiais no momento da sua detenção e durante o tempo da sua permanência na esquadra de polícia, enquanto aguardavam a decisão de magistrado no sentido da validação desta (garde à vue). PM e FF são irmãos e foram interpelados pela polícia, em estado de ebriedade, após terem cometido atos de vandalismo sobre bens privados.

Os testes de alcoolemia a que foram sujeitos revelaram uma percentagem elevada de álcool no sangue e os exames médicos subsequentes à prisão e detenção dos queixosos revelaram equimoses ligeiras, ainda assim conducentes à incapacidade para o exercício de trabalho por 6 dias. Os queixosos alegaram que as equimoses e marcas corporais e a subsequente incapacidade temporária para o trabalho são imputáveis aos maus tratos que sofreram às mãos dos polícias na esquadra. Apresentaram uma queixa às autoridades francesas competentes (o Ministério público, o MP), que despoletou uma visita inspetiva da então designada Inspeção geral dos serviços (a IGS). Esta autoridade ouviu os agentes, os médicos e o pessoal de enfermagem, bem como os próprios queixosos e concluiu que nada permitia sustentar, apesar do nexo de imputação das marcas corporais e da incapacidade para o trabalho ao tratamento infligido a estes pelas autoridades. Na conformidade desta informação, entretanto remetida ao MP, este arquivou o inquérito. Ainda assim os queixosos conseguiram fazer chegar o seu caso a um Deputado ao Parlamento francês, o qual acionou a Comissão nacional de ética da segurança (a CNES). Esta Comissão, por seu turno, não verificou qualquer violação da parte das autoridades de polícia, mas assinalou que a prática de submissão física conhecida como “decubitus ventral” empregue sobre os queixosos para os submeter na prisão representa um perigo sério para a vida do destinatário da medida e deveria ser afastada. Os queixosos não se conformaram e denunciaram o crime cometido por funcionários e agentes do Estado sobre cidadãos previsto no Código penal, tendo-se constituído assistentes em processo penal.

O juiz de instrução criminal competente (o JIC) organizou várias confrontações entre os agentes e os queixosos e acabou por chegar à conclusão que a denúncia criminosa era desprovida de fundamento. Arquivou o processo. Os queixosos recorreram segundo as vias de recurso oferecidas pela lei e viram estes recursos rejeitados.

Foi entretanto instaurado um processo correcional (uma figura processual penal hoje inexistente entre nós) contra os queixosos em razão dos danos materiais que estes tinham causado, em que foram condenados em pena de prisão suspensa de 3 meses bem como na obrigação de indemnizar os polícias que agrediram no momento da detenção e prisão pelas ofensas corporais por estes sofridas. Queixaram-se ao TEDH.

O TEDH referiu a sua jurisprudência quadro, proferida nos casos Guerdnec e Outros c. França (2014), a decisão proferida no caso Benmouma e Outros c. França (2015), apensou as queixas dos irmãos e, em sede de admissibilidade, rejeitou a exceção oposta pelo Governo francês, recorrendo à distinção entre o uso ilícito da força da parte da autoridade e a questão do ressarcimento pelo dano moral, nomeadamente provocado pelo deficiente funcionamento da Administração Pública (a AP). Neste segundo caso, o dever de esgotamento dos recursos internos a cargo de um queixoso, é maior na medida em que o particular deve dar ao Estado a oportunidade de resolver a situação (o que pode conduzir, reparo deste leitor que vem acompanhando a jurisprudência deste Tribunal, a situações relativamente paradoxais na medida em que, no quadro do esgotamento dos recursos internos, a procedência de uma ação de responsabilidade extracontratual do Estado pode depender da concreta condenação penal de um servidor ou agente do Estado no contexto do serviço em que ocorreu a culpa funcional. Ora as regras da experiência levam a concluir que os casos de dano concreto sofrido por um particular diluem-se, embora sejam efetivos e registados, no funcionamento do conjunto institucional e não radicam na culpa imediata de um agente do serviço público, o que torna as condenações penais, justificadamente, raras, sem que exista a consideração, em razão deste funcionamento deficiente da possibilidade de existir a culpa da instituição [note-se que não se estaria na previsão típica rígida e taxativa de mais um caso de responsabilidade objetiva, mas num caso de culpa, em sentido subjetivo, aferida à luz da negligência institucional que a expressão culpa funcional muito bem condensa] – significa que num país como o nosso, este necessário esgotamento do recurso/meio judicial, legítimo à luz da lógica de funcionamento das jurisdições internacionais, acaba por se traduzir na imposição de mais um encargo por vários anos, colocado na pessoa da vítima do dano às mãos daquele serviço público. No fim é provável que a vítima direta, ou os seus familiares, venham a ser ressarcidos, não em sede de violação de substância [uma figura cada vez mais rara nas conclusões do TEDH], mas apenas em sede de violação processual, o que acaba por não considerar a realidade da sua posição de vítimas). Já (o outro termo da alternativa considerada pelo TEDH na sua rejeição da exceção de inadmissibilidade oposta pelo Governo), no caso do excesso de poder da parte das autoridades (é a situação que corresponde à do caso sub-judice), a dependência desta queixa (quando na fase da sua apresentação ao TEDH), em relação ao esgotamento dos recursos internos basta-se com a participação criminal do queixoso e a sua constituição na qualidade de assistente em processo penal, passando, uma vez que este é o senhor da ação penal, a caber ao MP. E sendo a gestão processual por este discricionária (embora sempre fundamentada em sede de motivação), não cabe à jurisdição do TEDH apreciar a diligência com que o MP conduz a lide a partir do momento em que entra na titularidade do processo penal. Por conseguinte a exceção oposta pelo Governo foi rejeitada.

Seja ao leitor acompanhador desta sempre muito decisiva jurisprudência, em termos de formação jurídica e judiciária de quem a acompanha, permitido mais este reparo. A questão de admissibilidade que o Governo francês opôs aos queixosos e que o TEDH dirimiu deste modo que se acaba de descrever, é a questão verdadeiramente importante neste Acórdão de rejeição de uma queixa pela sua improcedência (e não em sede de admissibilidade, uma vez que, precisamente, a queixa foi admitida e a respetiva substancia veio a ser examinada).  Acredito que tem relevância em relação aos vários ordenamentos jurídicos europeus, e em razão da peculiaridade do regime português da responsabilidade civil extracontratual do Estado, será, ainda, eventualmente, mais importante entre nós.

Passando ao exame do fundo, os queixosos invocaram perante o TEDH a existência de maus tratos e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes indo para além do patamar de gravidade tolerado pelo art.º 3.º da CEDH, em termos de substância e sustentaram ter sido a investigação das violações insuficiente, pecando nomeadamente por iniqua, conduzindo, além da violação de substância invocada a uma violação processual do art.º 3.º da CEDH.

Novamente o TEDH estabeleceu o quadro jurisprudencial de referência constituído pelo seu Acórdão proferido no caso Bouyid c. Belgica (2015), o qual faculta o contexto interpretativo do art.º 3.º da CEDH. A grande orientação em sede de princípios gerais que se extrai desta jurisprudência é a de que, embora existam direitos na CEDH que admitem derrogações pontuais justificadas por razões excecionais (geralmente as constantes dos parágrafos 2 de certos artigos que as admitem, como é o caso do direito de associação), o direito à integridade pessoal que o artigo 3.º contempla faz parte do núcleo essencial dos direitos humanos que nem o estado de emergência admite ou justifica. Em sede de método de exame, o TEDH deu prioridade à questão da invocada violação processual do art.º 3.º da CEDH. E à luz dos vários exames a que os queixosos foram logo submetidos (foram nomeadamente conduzidos com celeridade da esquadra de polícia para o hospital a seguir à permanência na esquadra e foi o próprio oficial de polícia responsável pela operação que solicitou ao médico responsável um relatório pericial imediato sobre os ferimentos causados), não pôde verificar a violação processual da proibição dos maus tratos às mãos das autoridades.

Passando de seguida ao exame da queixa na substância, o TEDH verificou o registo de equimoses bem como da incapacidade de 6 dias para a prestação de trabalho. Registou (nomeadamente segundo os registos disponíveis) a calma demonstrada da parte dos agentes disponíveis no tratamento dos queixosos e apesar dos ferimentos terem sido bastantes para provocar uma incapacidade para o trabalho de 6 dias, não considerou, face à resistência violenta dos queixosos, que conduziu ao sofrimento de lesões também para os agentes, de que também existe registo, estes ferimentos como ultrapassando o patamar de gravidade do art.º 3.º da CEDH. Referiu em sede de obiter dicta que esta sua conclusão levanta a questão ética, sempre pertinente e atual, da realidade de ser admissível e até onde, e a partir de quando, não, a imposição de sofrimento corporal no tratamento de pessoas detidas. Mais uma vez a avaliação rigorosa desta matéria de facto essencial à decisão de direito feita na presença dos vários elementos e circunstâncias do caso concreto num escrutínio a operar com o mais rigoroso critério judicial, mas, empregando estes mesmos critérios de ponderação das circunstâncias do caso, face à própria violência demonstrada pelos queixosos no acto da sua detenção e prisão, não pôde verificar a violação do art.º 3.º da CEDH na sua dimensão material.

Não se registou, assim, a violação do art.º 3.º da CEDH nem na vertente material nem na vertente processual desta disposição inderrogável da CEDH.

O Acórdão concluindo pela improcedência da queixa foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos