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TEDH, 5ª Secção, Tête c. France, Acórdão de 26 de março de 2020

1 abr 2020

CEDH, Artigo 10.º, direito à liberdade de expressão. Condenação penal por denúncia caluniosa pelo emprego de carta aberta denunciado crime alegado.  Tema de interesse geral, interesse profissional e político. Violação.

Etienne Tête queixou-se contra a França ao TEDH em razão de ter sido condenado por denúncia caluniosa por, numa carta dirigida à autoridade da bolsa (a Autoridade dos Mercados Financeiros, AMF), ter censurado uma sociedade financeira e o seu diretor pela prestação de informações falsas à AMF. A carta em que redigira estas acusações foi publicada sob a forma de carta aberta, e por ser este o enquadramento das circunstâncias, entendeu estar violado o seu direito à liberdade de expressão.

O queixoso é advogado e autarca no município de Lyon. No contexto das suas funções opôs-se à construção de um novo estádio de futebol pelo Olympique Lyonnais. Na sua qualidade de advogado, exerceu o mandato forense em representação dos proprietários dos terrenos expropriados para a construção do estádio.

Para concretizar a operação de construção do estádio, o OL constituiu uma sociedade financeira para a gestão do projeto imobiliário, embora ainda sem ter a certeza quanto ao desfecho das ações judiciais de expropriação. Segundo Tête, neste contexto, a constituição de uma sociedade financeira imobiliária desportiva era proibida pelo direito francês o qual só permitia a constituição destas sociedades quando existisse um projeto imobiliário firme, em condições de ser prosseguido.

Em 24 de janeiro de 2010, o queixoso dirigiu uma carta aberta ao Presidente da AMF, chamando a atenção para a precariedade do projeto e para o facto de no seu entender, determinados prazos legais não terem sido respeitados. Acusava o OL e a OL Land (a sociedade nova) e o diretor, de terem prestado falsas informações segundo as disposições que considerava pertinentes do Código monetário e financeiro. A AMF não deu seguimento à acusação de Tête. Já a OL, OL Land e o Diretor financeiro queixaram-se pelo crime de denúncia caluniosa ao MP. Tête foi condenado em pena de multa e em indemnização à OL, à OL Land e ao diretor. Em recurso, a Cour d’Appel de Paris manteve o decidido, mas aumentou o valor da indemnização civil a cargo de Tête. Este ainda recorreu à Cour de Cassation, perdendo também nesta instância, a qual entendeu que a Cour d’Appel tinha perfeitamente fundamentado a sua decisão. Queixou-se, então, ao TEDH, que admitiu a sua queixa.

Quanto ao mérito da queixa, o TEDH entendeu que a denúncia de um comportamento alegadamente ilícito é suscetível de integrar a fattispecie do art.º 10.º da CEDH. O TEDH entendeu, ainda, que a condenação do queixoso pela justiça francesa atingiu o seu direito à liberdade de expressão. Havia, então, que procurar pela previsão legal, o fim legítimo e a necessidade desta medida numa sociedade democrática.

O TEDH verificou a previsão legal da medida, considerando que o queixoso devia saber ou podia prever que o seu comportamento cairia de alguma forma sob a alçada da lei. Quanto ao fim legítimo, da proteção da reputação de outrem, o TEDH aceitou que estivesse preenchido pois tanto a sociedade quanto o diretor ficaram atingidos no seu bom nome e reputação.

Já quanto à necessidade da medida numa sociedade democrática, depois de elencar abundante jurisprudência de referência, o TEDH mostrou que a liberdade de expressão deve abranger as ideias que chocam, perturbam ou preocupam e que isto é pressuposto do espírito de pluralismo e de abertura sem os quais não existe uma sociedade democrática. Apesar da margem de apreciação do Estado, incumbe ao TEDH aferir da prudência e da razoabilidade com que o Estado empregou, precisamente, a sua margem de apreciação no caso.

O TEDH observou que para a Cour de Cassation, bastara o preenchimento do tipo legal das disposições penais pertinentes quanto à matéria de facto, sem que tivesse havido qualquer preocupação em termos da ponderação judicial (a ponderação das consequências) de outros elementos que pudessem mitigar a intensidade aparente dos factos, desculpá-los (causas de exculpação) ou, eventualmente, justifica-los (causas de justificação). Na medida em que o silogismo judicial foi mera e simplesmente formal, o TEDH concluiu que as autoridades judiciais não puseram em balança a vida privada de OL, OL Land e do diretor, com a liberdade de expressão do queixoso.

Sucede que apesar da sugestão feita pelo queixoso de que OL, OL Land e o diretor teriam cometido um crime, a AMF não deu seguimento à carta aberta, o que desvaloriza a força das acusações do queixoso. Por outro lado, este expressara-se em torno de um tema de interesse geral, e no contexto de um empenhamento político e militante. Enfim, na sua qualidade de eleito local, sentindo-se impotente para resolver um problema que considerava ser do interesse dos seus administrados, socorrera-se do meio à sua disposição, a carta aberta. Por todas estas razões, a condenação do queixoso não foi necessária numa sociedade democrática. Houve, assim, a violação do artigo 10.º da CEDH, direito à liberdade de expressão.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos