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TEDH, 5.ª Secção, Udovychenko c. Ucrânia, Queixa n.º 46396/14, Acórdão de 23 de março de 2023

31 mar 2023

CEDH, Artigo 10.º § 1, Direito à liberdade de expressão.   

CEDH, alegação de violação do art.º 10.º § 1 da CEDH, por a vítima ter sofrido um processo por difamação em razão de declarações versando sobre os factos, em torno de um acidente de viação que presenciou. Violação.   

Enquadramento do caso.

A Requerente, testemunha de um acidente de viação, foi questionada sobre o que viu, perante um acidente de viação de que foi testemunha, e veio a sofrer, por isso, um processo por difamação.  

Os factos.

Perante o cenário a que assistiu, o seu primeiro comentário foi relativo ao abandono do veículo sinistrado pelos ocupantes do carro responsável pela colisão. O condutor estava embriagado, e teria atropelado a vítima na passadeira. Teriam sido agentes do crime o filho de um deputado ao Parlamento Ucraniano, bem como um membro da autarquia em cuja área se verificou o acidente…

Nos comentários públicos que teceu sobre o caso, o responsável autárquico asseverou que a sua presença no lugar se devia a ter sido chamado para o lugar, para prestar todo o necessário apoio às vítimas e que nem sequer teria estado entre os ocupantes do carro.

Na verdade, o condutor responsável seria um homem de negócios local, conhecido do público. Foi contra ele que foi instaurado o processo de indemnização pelos danos causados pelo acidente, tanto pessoais como morais. A Requerente foi interrogada como testemunha.

Entretanto, as personalidades politicas envolvidas (o responsável autárquico, e o membro do Parlamento), moveram um processo judicial por difamação contra a testemunha. Que veio a ser condenada.

O Direito.

Neste processo por difamação, os Autores exigiram que a Requerente,

1. Retratasse publicamente as suas afirmações,

2. Pagasse avultada indemnização pelo dano material e moral.

A Requerente veio a ser condenada no exercício desta pública retratação, bem como no pagamento de uma indemnização aos Autores. A retratação teve lugar em 2013, e veio a ser condenada no pagamento, em prestações, da avultada quantia.

A Requerente acionou então o TEDH por meio desta queixa, em que se valeu do art.º 6.º § 1 (direitos e equidade processuais), e do art.º 10.º § 1 da CEDH (direito à liberdade de expressão), todos da CEDH.

Não tendo havido oposição à queixa, nem se tendo registado fundamentos de inadmissibilidade, o TEDH admitiu a mesma e passou ao exame do seu mérito.

No tocante ao fundo, o TEDH admitiu, com as partes, ter havido uma interferência nos direitos da Requerente, pressuposto essencial da Queixa, e passou ao seu conhecido teste de legalidade, previsibilidade legal da medida e de conformidade com a Lei, no sentido da proporcionalidade das medidas impostas à Requerente.

Estando prevista no Código Civil, a medida tinha um fundamento legal, logo constava da Lei.

Para verificar estas últimas condições, o TEDH apoiou-se no facto de a partilha da informação à televisão, ter sido uma declaração versando sobre os factos e não uma declaração de valor (seria afirmação de valor uma censura de natureza política, ou sobre a personalidade que, no seu meio, implicaria um juízo ideológico). Para o TEDH a Requerente ficou sempre na descrição dos factos para a sua vida relevantes (statements of fact; declarações versando sobre matéria de facto, ou declarações factuais),

Interferiu aqui uma questão importante embora não sem as suas dificuldades. A lei civil que incrimina as descrições factuais, fá-lo expressamente.

Isto resolve a questão, simultaneamente, da previsão legal e da previsibilidade da medida, mas não a torna, só por isso, justa. Há que saber se todas as descrições de facto são proibidas, e se o castigo imposto à Requerente com esta condenação por difamação, se manteve na proporcionalidade, sem a qual uma medida das autoridades passa de respeitável a injusta.

Interfere aqui a presunção de falsidade do depoimento prevista no Código Civil Ucraniano. Pois como dizer que meras declarações versando sobre os factos, são falsas, sem mais?

Passa-se algo semelhante com o art.º 342.º do Código Civil Português, na matéria aplicável à responsabilidade do declarante, no crime de difamação. Tratando-se de matéria crime, não é o regime do art.º 342.º do Código Civil Português, que se aplica ao processo, mas o do ónus probatório a cargo do Ministério Público, apetrechado com meios de prova muito mais poderosos, os do inquérito e investigação penais.

Mas para o efeito de um processo de indemnização por difamação que contemplasse apenas a parte cível (o pedido de indemnização por apenso ao processo crime), a Afirmante (a queixosa), neste caso, tem o encargo probatório de tudo o que diz, o que se revela um ónus pesado em matéria probatória (dir-se-ia uma desigualdade leonina em seu desfavor), sendo possivelmente o Código Civil Português de 1967, o único a contemplar semelhante regime probatório nos países que estariam do lado Ocidental da Cortina de Ferro, se esta ainda existisse (nem o Código Civil francês, nem o BGB contêm semelhante norma, e é altamente provável que não a contenham os CC italiano e espanhol).

A presunção de falsidade das declarações de facto do afirmante, no direito civil e processual civil ucraniano, aplicáveis ao caso, é mais uma tendência para o regime de prova Affirmanti incumbit probatio, que, com efeito, onerou, até 1973 (data da importação pelos tribunais superiores alemães da divisão Norte Americana entre prova prima facie, e para além de toda a dúvida razoável que estrutura também o regime probatório do TEDH), o conjunto dos países de direito continental europeu de matriz germânica, pois o regime françês sempre conheceu o início de prova com maior valor que o nosso fumus boni juris. Simplesmente, fora o caso português, e no caso da presunção de falsidade das afirmações pretensamente difamatórias na Ucrânia, nenhum Código Civil ou de Processo Civil, pelo menos deste lado da denominada Cortina de Ferro, continha a disposição expressa, excluído o Código Civil Português resultante do Regime dos Catedráticos de Direito do Sr. Prof. Doutor A. de Oliveira Salazar.

É a este nível que compete o chamado teste de proporcionalidade, o de saber se a medida era necessária numa sociedade democrática.

O TEDH observou que o comentário foi solicitado pela imprensa pouco a seguir ao acidente. E que a Requerente não utilizou qualquer expressão pejorativa ou insultante quanto aos autores do acidente. Ainda por cima, foi advertida pela polícia que as falsas declarações a fariam incorrer em responsabilidade criminal, tendo mantido sempre a sua versão dos factos, que expôs.

A esta luz, o TEDH não encontrou qualquer má-fé da parte da Requerente.

Por estas razões, a condenação desta em retratação, e na indemnização, foi abusiva por não ser necessária numa sociedade democrática, tendo-se, assim, verificado a violação do art.º 10.º§ 1 da CEDH.

Este Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais,


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos