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TEDH, Grande Chambre, Comité de Ministros do CoE c. Azerbaijão, Mammadov, Acórdão de 29 de maio de 2019

27 jun 2019

CEDH, Artigo 46.º § 4. Ação de incumprimento ao abrigo do artigo 46.º § 4 da CEDH, introduzido pelo Protocolo n.º 14. Acórdão Mammadov I, prisão preventiva, violações várias em torno do artigo 5.º Em particular, art.º 5.º mais 18.º CEDH. Acórdão Mammadov II condenação definitiva violação. Ação de incumprimento do CM c. o Azerbaijão. Artigo 46.º §§ 1 e 4, violação.

Mammadov, professor universitário em Baku e político, desenvolveu ações de protesto contra o regime no Azerbaijão, candidatou-se às eleições presidenciais e foi derrotado; denunciou a corrupção das famílias no poder, por meio de artigos de imprensa. 

Veio a ser preso preventivamente, com base numa suspeita de práticas contrárias à ordem pública, e, esgotados os recursos contra a sua prisão preventiva, queixou-se ao TEDH, que condenou o Azerbaijão com fundamento nos artigos 5.º §§ 1 e 4 (privação da liberdade, não recurso da detenção), 6.º § 2 (desrespeito da presunção de inocência) e 18.º em relação com o art.º 5.º (proibição de restrições aos direitos – no caso o direito de liberdade de expressão – com fundamentos diversos daqueles que são geralmente aceites pelas regras vigentes de Direito internacional público).

O Comité de Ministros iniciou o procedimento de supervisão do Acórdão Mammadov I (relativo à prisão preventiva) e, entretanto, Mammadov foi definitivamente condenado, voltando a queixar-se ao TEDH, tendo merecido a condenação do Estado, com fundamento na iniquidade do processo (artigo 6.º § 1 da CEDH). Entretanto, Mammadov continuou preso, o CM manteve a insistência no cumprimento do Acórdão do TEDH (neste caso o I.º) e acabou por se queixar ao TEDH (desta vez o CM) como lho permite o artigo 46.º § 4, com fundamento no incumprimento do Acórdão do TEDH por parte do Azerbaijão. Entretanto Mammadov continua na prisão onde cumpre uma pena de sete anos.

Em execução do Acórdão Mammadov, o Azerbaijão apresentou um plano de ação ao CM, este voltou a reunir-se para examinar o caso em sede de execução de Acórdão, e pediu a libertação imediata da Mammadov, o que não conseguiu. O Secretário-geral do CoE enviou um representante especial a Baku, e o Azerbaijão modificou as suas regras processuais penais, concedendo o exercício de alguns direitos suplementares de defesa a Mammadov, sem contudo o libertar. Em final de 2017, por meio de uma Resolução em que convidava o TEDH a pronunciar-se em sede da não execução deste Acórdão, o CM intentou junto do TEDH, uma ação de incumprimento contra o Azerbaijão, por não execução de um Acórdão vinculativo do TEDH.

Examinando o Direito, o TEDH observou que o CM não retirou a queixa apresentada, disse que o sistema de defesa dos direitos humanos da CEDH é um sistema de julgamento acoplado a um sistema de supervisão. Sistema de julgamento por meio de sentenças declarativas de condenação, cabendo ao par CM – Estado a sua execução.

O princípio que preside à reparação das violações de direitos humanos é o princípio da reconstituição natural, a qual, não sendo possível, é substituída por uma indemnização pelos danos morais e patrimoniais, eventualmente bastando, em casos extremos, a verificação da violação pelo TEDH. Nos termos do artigo 46.º § 4, compete ao TEDH, sob a iniciativa do CM, por meio de Acórdão, decidir se o Estado não cumpriu o precedente Acórdão. O artigo 46.º § 4, que resulta da entrada em vigor do Protocolo n.º 14 à CEDH opera em caso de incumprimento de Acórdão anterior do TEDH, por parte do Estado de que alguém apresenta queixa.

A questão seguinte, segundo o TEDH, foi a de saber se o Azerbaijão incumpriu o Acórdão contra ele proferido no caso Mammadov I. Ao nível das medidas individuais, o TEDH não especificou como este Acórdão devia ser executado. Nesta medida, o Governo entendeu que este Acórdão não impunha a aplicação de uma medida de execução. Mas, para o TEDH, uma aproximação que limita as medidas de execução às que são indicadas pelo TEDH no Acórdão, é redutora. Não é decisiva a ausência de indicação de medidas individuais no Acórdão. A razão que justificou a consideração, da parte do TEDH, do artigo 18.º, foi a de que Mammadov foi privado da sua liberdade para ser silenciado. Isto significa uma restrição (art.º 18.º) não autorizada (pela CEDH) do direito à expressão livre de Mammadov, um silenciamento que se operou pela aplicação da pena de prisão (em violação do direito à liberdade e segurança, por isso, do artigo 5.º mais 18.º).

Em execução do Acórdão, competia ao Azerbaijão eliminar as consequências da violação (5.º +18.º), levantando as acusações que fundamentaram a condenação, e revogando a prisão preventiva, colocando Mammadov em liberdade, o que não aconteceu. Esta era a reconstituição natural (restitutio in integrum) possível, na medida em que não apagava a parte já passada em prisão, para a qual a condenação do Estado pelo TEDH foi, de resto cumprida (tendo o Azerbaijão depositado na conta de Mammadov os 20 000 € de indemnização acrescidos dos 2000€ de custas). Mas o Azerbaijão não a cumpriu (na medida da necessária colocação em liberdade), nem alegou que esta reconstituição natural parcial seria insuperável, ou que suscitava escolhas dilemáticas.

Para confirmar estas suas conclusões, o TEDH examinou o processo de execução do Azerbaijão. Foram modificadas as disposições do Código de Processo Penal, foram parcialmente concedidos certos pedidos relativos ao exercício de direitos de defesa de Mammadov, sem, contudo, que este fosse colocado em liberdade. Em 28 de Março de 2019, o STJ do Azerbaijão rejeitou um pedido de colocação em liberdade de Mammadov. Para o TEDH apenas a colocação em liberdade é suscetível de satisfazer o princípio da reconstituição natural que está subjacente à reparação das violações dos direitos humanos após a sua verificação judicial. Em considerações finais, o TEDH ainda observou que os Estados são pessoas de bem no trato convencional europeu e que agem de boa-fé. A observância da boa-fé concretiza-se na medida em que a CEDH assegura direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efetivos. Isto vale no processo declarativo de condenação, mas também para o processo de execução dos Acórdãos do TEDH, a qual deve ser também concreta e efetiva. Por isso, o Azerbaijão apenas parcialmente agiu de boa-fé neste quadro processual. Por unanimidade, a Grande Chambre entendeu que o Azerbaijão violou o artigo 46.º §§ 1 e 4 da CEDH, e, assim, que incumpriu o Acórdão Mammadov I, em que fora condenado.

Na sua opinião concordante comum, os juízes Yudkivska, Albuquerque, Wojtyczek, Dedov, Motoc, Polackova e Huseynov concordaram com a conclusão de violação, mas discordaram do método do Acórdão.

O primeiro ponto foi relativo à interpretação do Acórdão Mammadov I. Este é relativo à prisão preventiva, enquanto o Acórdão Mammadov II é relativo à condenação definitiva e ao cumprimento de pena. Ao separar os dois Acórdãos, o TEDH não terá visto a violação como contínua. Contudo as questões que o TEDH abordou a propósito da execução do Acórdão Mammadov I (sendo que não se levantaram problemas de execução de sentença para o Acórdão Mammadov II) poderiam ter sido resolvidas no Acórdão Mammadov II.

Houve três Acórdãos. No Acórdão Mammadov I, o TEDH não indicou qualquer medida, o problema desenvolveu-se porque o CM iniciou a supervisão da execução de sentença. Novamente, no Acórdão Mammadov II, o TEDH voltou a não indicar nenhuma medida específica de execução. Foi no Acórdão Mammadov relativo ao incumprimento do I.º Acórdão pelo Azerbaijão que o TEDH se pronunciou sobre o que este Estado deveria ter feito. De certo modo, o TEDH deveria ter encarado a violação como contínua, deveria ter aceite o pedido do CM relativo ao incumprimento, mas deveria ter requalificado o incumprimento, da fase da prisão preventiva, para a fase da condenação definitiva (mesmo existindo já os dois Acórdãos anteriores) e ter condenado o Azerbaijão, já não em sede de incumprimento do I.º Acórdão, mas a partir do II.º Acórdão, altura em que é certo que o Azerbaijão não cumpre, de todo, os Acórdãos do TEDH.

A outra questão deste voto concordante é relativa aos poderes do CM. Na medida em que o CM é autoridade administrativa ou política (quando reúne os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Parte), não pode interferir na independência do poder judicial, mesmo nacional, não lhe competindo dar às instâncias judiciais nacionais indicações sobre como cumprir os Acórdãos do TEDH, função que compete ao TEDH, ele sim, autoridade judicial por excelência da Europa. Para estes magistrados conviria proceder-se, por meio da regulamentação, a uma definição clara destes poderes do CM.

No seu voto concordante autónomo o juiz Wojtyczek insistiu nestas questões, e, no seu voto, o juiz Motoc perguntou em que medida a justiça europeia não possui várias velocidades, para vencedores e vencidos nos conflitos, devendo procurar-se um reforço da autoridade ética das instâncias supranacionais.

Este Acórdão é de todo o interesse pois é um Acórdão inovador, sendo o primeiro Acórdão proferido pela Grande Chambre em sede de incumprimento por um Estado de um anterior Acórdão de condenação do TEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos