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TEDH, Grande Chambre, Magyar Ketfarku Kutya Part (MKKP) c. Hungria, Acórdão de 20 de janeiro de 2020

29 jan 2020

CEDH, Artigo 10.º§ 1, direito à liberdade de expressão de partido político de oposição que atuou por meios eletrónicos no dia do escrutínio. Violação. .

O partido político Magyar Ketfarku Kutya Part (o MKKP) queixou-se, em 2016, da violação do seu direito à liberdade de expressão, tutelado pelo artigo 10.º § 1 da CEDH.

O MKKP é um partido político ativo na Hungria, que obteve 1,73% dos votos nas listas nacionais (votos correspondentes a 99410 eleitores), em 2018, e que, por isso, não logrou conseguir assento no Parlamento, nem possui nenhum titular de cargo público, ou político individual, nos círculos do poder.

A sua atividade política consiste, essencialmente, no exercício da sátira dirigida às elites, por meio de publicações e imagens na sua página na internet, desenvolvendo campanhas neste sítio em torno de temas absurdos, com o fim de criticar. Este partido político dedica-se, ainda, à arte de rua.

Do programa do MKKP para as eleições legislativas de 2006 constavam o direito à vida eterna, cerveja gratuita, menor gravitação universal e dois pores do sol por dia. Nas autárquicas do mesmo ano, o lema da sua campanha fora “mais de tudo, menos de nada!”. Outras frases como “vida eterna, cerveja e deduções fiscais” e “nós damos tudo” faziam parte das brochuras de campanha.

No quadro do movimento de refugiados que cruzaram o território húngaro, em 2015, e em resposta às políticas migratórias do Governo, o MKKP lançou uma campanha “anti-anti-imigração”, a qual foi financiada por donativos de particulares no valor de 100 000€. A campanha incluía a divulgação de cartazes com os dizeres “sintam-se livres de vir para a Hungria, nós já trabalhamos na Inglaterra”.

Ao nível da UE, o Conselho Justiça e Assuntos Internos de setembro de 2015 aprovou a colocação de 120 000 requerentes de asilo por dois anos, requerentes estes oriundos da Itália e da Grécia, e que deveriam ser distribuídos pelos demais Estados membros da UE. Em resposta, o Presidente húngaro anunciou a realização de um referendo sobre esta decisão com a questão seguinte: “ deseja que a UE tenha o poder para decidir sobre a instalação de cidadãos não húngaros na Hungria, ou esta competência deve continuar na titularidade do Parlamento nacional?” O Supremo Tribunal de Justiça húngaro (Kuria) autorizou o referendo, o qual veio a ser aprovado pelo Parlamento, estando então prevista a sua realização para outubro de 2016.

Os partidos da oposição entenderam que a competência da UE era legítima e que a definição de quotas de instalação era correta. O MKKP pediu que os eleitores votassem por meio de votos nulos, pois, no seu entender, este referendo carecia de legitimidade à luz das regras constitucionais húngaras. Muitos votos inválidos denunciariam a ilegitimidade do referendo, e, na medida em que um boletim de voto fosse anulado (por exemplo, por meio de um traço), não poderia mais ser aproveitado por alguém da mesa de voto, e por isso, o protesto seria eficaz.

Entretanto, o Governo iniciou uma campanha contra a competência da UE intitulada “sabia que?”, relacionando a imigração e o asilo com o recrudescimento do terrorismo, a que o MKKP respondeu com uma contra campanha, também em torno da questão “sabia que?” , dando respostas contrárias às apresentadas pelo Governo. Mais uma vez esta campanha foi financiada por donativos de particulares.

Entretanto, o MKKP criou uma aplicação disponível nos smartphones, em que se mostrava como tornar um voto nulo e se criavam instrumentos de partilha do voto assim anulado. Ou seja, foi feito o convite aos eleitores para, no dia do escrutínio, anularem o seu voto, fotografarem o boletim antes de o entregar e colocar esta imagem na App. Esta aplicação não permitia a identificação do utilizador que divulgava a imagem e não era de rastreio possível por meio dos serviços de segurança. Abria a possibilidade de boicotar o referendo no dia da sua realização.

Um cidadão veio a queixar-se à autoridade de proteção de dados, a qual entendeu que, por meio desta App, o MKKP tinha infringido os princípios da equidade das eleições, do sufrágio direto e do exercício dos poderes segundo a sua finalidade (uma proibição do abuso do direito). Sustentou que fotografar os boletins de voto podia conduzir a fraude eleitoral. Finalmente, o princípio do sufrágio secreto não podia ser entendido como sustentando um abuso do direito.

O MKKP recorreu desta decisão para a Kuria. Tendo este recurso efeito suspensivo, a aplicação foi disponibilizada pelo MKKP no dia do referendo. Em 2 de outubro de 2016, 3894 fotografias de votos nulos foram partilhadas no momento do sufrágio. Novamente, o mesmo cidadão que anteriormente se queixara veio a queixar-se. Para ele, este comportamento corporizava um comportamento de má-fé, que ofendia os princípios da equidade e do segredo do escrutínio. O MKKP foi multado em 2700 € pela autoridade para a proteção de dados, uma decisão que a Kuria manteve. Ainda assim, este Supremo Tribunal entendeu que a posição do MKKP tinha permanecido dentro de certos limites contidos na liberdade de expressão e que não tinha ofendido o segredo do sufrágio, na medida em que só partilhava o seu voto nulo quem concordasse com a ação. Por fim, a autoridade para a proteção de dados ter-se-ia fundamentado nas próprias diretivas, as quais não possuem o valor de lei da República. O MKKP queixou-se ao Tribunal Constitucional (TC) o qual rejeitou a queixa (no caso húngaro, um recurso de amparo constitucional), por inadmissibilidade. Uma juíza do TC votou, no entanto, vencida, pois, na medida em que o recurso de amparo constitucional colocava questões como a da liberdade de expressão e o abuso do direito em torno do sufrágio, estas questões seriam de exame obrigatório para o TC.

Nos documentos nacionais recolhidos pelo TEDH, avulta uma decisão do TC dizendo que as concretizações do abuso do direito em matéria constitucional não permitem delinear claramente regras precisas que devam ser seguidas sem adaptações, em razão da importância da matéria constitucional.

Nos documentos do Conselho da Europa, avulta a Rec. 1704(2005) da Assembleia Parlamentar, que enfatiza a importância do direito ao acesso à informação relativa ao tema sujeito a referendo.

Procedendo ao exame da questão, à luz do direito europeu, o TEDH rejeitou a exceção de não admissibilidade oposta pelo Governo, relativa ao não esgotamento dos recursos internos e examinou a questão à luz do artigo 10.º da Convenção europeia dos direitos do homem (direito à liberdade de expressão).

Estudando o Acórdão da Seção (a intervenção da Grande Chambre foi acionada por um pedido de reexame feito pelo Governo), o TEDH observou que a Seção decidira que a questão de saber se a ingerência seria ou não contrária à lei não se poria, uma vez que, à partida, o próprio Governo fora incapaz de dizer, à luz dos limites reconhecidos pelo parágrafo 2 do art.º 10.º, à liberdade de expressão, qual o interesse que a medida adotada tutelara. Para a Seção, houvera a violação do artigo 10.º, par. 1, por unanimidade.

Examinado novamente o caso, a Grande Chambre admitiu que existiu uma interferência e reconheceu que o uso de fotografias em atos eleitorais é um poderoso meio para influenciar a decisão de voto de um cidadão. O TEDH especificou, por referência à sua jurisprudência estabelecida (Özturk c. Turquia, 1999), que os media não têm de se associar aos conteúdos que publicam, mas que participam no exercício da liberdade de expressão ao facultarem aos autores a possibilidade de divulgarem os seus conteúdos. O MKKP agiu neste sentido, na qualidade de media. Bloquear este serviço e os caminhos de divulgação da informação significaria privar os utilizadores de meios importantes para a divulgação das suas mensagens e limitaria a sua liberdade de receber e de partilhar informação (jurisprudência Cengiz c. Turquia, 2010 e 2011). Ora, a disponibilização de um meio de debate para os utilizadores, foi o que o MKKP fez, ao criar a App controvertida. E, neste sentido, foi mais um meio à disposição do público para o exercício da liberdade de expressão. O TEDH observou que o MKKP se queixou de ter sido penalizado, não pela condução da campanha, mas pela disponibilização da App controvertida. Ora, o TEDH entende que a liberdade de expressão se estende também aos mecanismos e formas pelos quais esta se concretiza, não se limitando apenas à expressão livre dos conteúdos de substância. A seguir a estes reparos preliminares, o TEDH verificou se a medida estava prevista na lei, no sentido da previsibilidade de uma consequência para aquele comportamento de disponibilização da App. A previsibilidade está associada à qualidade da lei, permitindo a uma pessoa estar ciente das consequências que estão associadas por lei à sua conduta. Não significa que a lei seja de tal modo detalhada que não se possa adaptar a circunstâncias em evolução permanente. Significa alguma previsibilidade estável da sanção legal. Estas considerações tornam-se mais urgentes no contexto do debate político democrático. No caso, o MKKP arguiu que nada proibia a tomada de fotografias de boletins de voto. O Governo opôs-lhe o abuso do direito. O TEDH reconheceu que nas diretivas da autoridade de proteção de dados está prevista a proibição de fotografias de boletins de voto, mas também observou que a Kuria entendeu que estas diretivas não são lei da República.

O TEDH não vê nada a opor à existência de legislação eleitoral num determinado país, nem à regulação correspondente, acompanhada por um poder sancionatório. Mas a questão de saber se, na ausência de disposição legal prevendo a proibição da fotografia de um boletim de voto, o MKKP sabia que podia contar com a sanção que lhe foi imposta subsistiu. Ora a cláusula do abuso do direito, expressa por meio da regra segundo a qual os direitos devem ser exercidos de acordo com a sua finalidade, permanece de uma vaguidade excessiva e não oferece a necessária previsibilidade para o comportamento do MKKP. Sucede que no domínio sancionatório continental europeu, não é possível a aplicação de uma pena com fundamento em cláusulas gerais ou em conceitos indeterminados, de teor excessivamente impreciso. O TEDH recordou que existe jurisprudência constitucional húngara no sentido desta sua conclusão. A imprevisibilidade das consequências ultrapassou, assim, os limites à liberdade de expressão que o parágrafo 2 do art.º 10.º consente. Por esta razão se verificou a violação do artigo 10.º§ 1 da CEDH, direito à liberdade de expressão.

O juiz Dedov exprimiu uma opinião dissidente em torno do que deve ser considerado legítimo fazer-se numa campanha eleitoral. Para ele, o MKKP procurou influenciar os votantes no momento do escrutínio, o que, no momento do voto, não é aceitável.

Embora esta questão relativa à perturbação da tranquilidade do dia eleitoral seja uma aproximação muito pertinente e legítima ao tema, e de muito interesse, o juiz Dedov parece menos consistente, ao aceitar a legitimidade do referendo proposto pelo Governo, uma questão muito controvertida e que nem sequer foi equacionada pela própria Grande Chambre. Entende, ainda, que o MKKP empregou meios violentos, o que não resulta propriamente da descrição dos factos. O verdadeiro desconforto que o leitor deste acórdão sente, está certamente na perturbação considerada legítima da serenidade do voto. Não é menos certo que o método de o Governo se ter socorrido de um referendo de legitimidade muito duvidosa, à luz do próprio direito húngaro, aumenta este desconforto e torna-o muito pesado. Sinal dos tempos. 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos