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TEDH, Grande Chambre, Navalnyy c. Rússia, Acórdão de 15 de novembro de 2018

23 nov 2018

CEDH, Artigo 5.º Par. 1 Direito à liberdade e segurança, Artigo 6.º, Par. 1, 2 e 3d), Direito a um processo equitativo, direito à igualdade de armas e a um tribunal imparcial, Artigo 11.º Direito à liberdade de reunião e à manifestação pacífica, Artigo 18.º Direito a que o Estado não reduza a proteção dos direitos constantes da Convenção europeia dos Direitos do Homem.     

Navalnyy, um cidadão russo com residência em Moscovo, queixou-se por cinco vezes ao TEDH, em 2012, 2013 e 2014, de sete episódios, em 5 de Março de 2012, em 8 e 9 de Maio de 2012, por duas vezes, em 27 de Outubro de 2012 e em 24 de Fevereiro de 2014, nesta data também, por duas ocorrências. Em todos estes casos, Navalnyy foi detido quando reunia pacificamente com outros cidadãos, foi julgado administrativamente com, nalguns casos, episódios de cumprimento de penas de prisão administrativa (uma particularidade dos regimes jurídicos de certos países), e sempre condenado no pagamento de coimas de valor relativamente elevado.

Navalnyy pretendia exercer, com outros cidadãos, o seu direito de reunião e manifestação pacíficas, e como nunca o chegou a concretizar com a necessária serenidade no quadro de uma reivindicação coletiva pacífica, queixou-se por cinco vezes ao TEDH, que apensou todas as queixas. Venceu, embora com alguma insatisfação na Seção do TEDH que inicialmente julgou as questões e pediu o reenvio da queixa para a Grande Chambre. O Governo da Federação Russa, por seu turno, também pediu o reenvio da questão à Grande Chambre, que veio a proferir o seu Acórdão em 15 de Novembro de 2018.

Navalnyy alegava em substância que a sua detenção durante acontecimentos públicos violava o seu direito de reunião pacífica e o seu direito à liberdade e segurança. Criticava os processos administrativos que, no seu entender, eram iníquos e parciais. Para ele, também as penas de detenção administrativa e as coimas em que fora condenado atentavam, quanto às penas de prisão efetiva, ao seu direito à liberdade e a segurança. Por fim, e uma vez que foi sempre detido e julgado, a cada participação sua a uma reunião pacífica, acusou a Federação Russa de o impedir, com uma finalidade política, de se reunir e manifestar pacificamente.

O TEDH verificou que não é contestado que Navalnyy não praticou nenhum acto de violência. A primeira conclusão a que chegou, foi a de que nas sete detenções do queixoso e nas suas duas prisões preventivas e prisões administrativas, em que foi condenado, se verificou a violação do artigo 5.º par. 1, direito à liberdade e à segurança.

Atendendo à questão da violação alegada do artigo 6.º Pars. 1 e 2 e 3 d) da CEDH (equidade, imparcialidade, respeito da presunção de inocência e exame das testemunhas contra e a favor), O TEDH verificou a não violação, nalguns episódios que estão descritos no acórdão, mas verificou a violação no processo administrativo relativo ao sexto episódio.

Sobre a violação alegada do artigo 11.º (direito de reunião pacífica), o TEDH observou, contrariando um argumento do Governo, que, mesmo que as reuniões não tenham sempre seguido a complexa tramitação legal vigente, elas foram pacíficas, e concedeu maior importância a esta dimensão das manifestações.  Perguntou, para cada um dos sete episódios, se as interferências no direito de reunião de Navalnyy estavam prescritas por lei (estavam), se tinham um fim legítimo (concluindo pela ausência de fim legítimo dos quinto e sexto episódios, o que tornou, de imediato, estes dois episódios em violações do artigo 6.º da CEDH, nas disposições invocadas), e por fim, perguntou, quanto aos demais casos, se eram necessários em sociedades democráticas, vindo a concluir, para cada um deles, que não. Verificou-se assim a violação das disposições invocadas do artigo 6.º da CEDH nos sete episódios. Por referência à sua jurisprudência Lashmankin c, Rússia e a outras queixas, o TEDH verificou que este problema em torno da liberdade de reunião, e dos processos, com dificuldades na equidade, na imparcialidade, na presunção de inocência e na avaliação da prova testemunhal, é um problema sistémico na Federação da Rússia.

Quanto ao artigo 18.º, a restrição sistemática aos direitos da CEDH, corporizada na formulação de Navalnyy, segundo a qual as autoridades prosseguiriam fins políticos, ao reprimirem as reuniões e manifestações pacíficas, a Grande Chambre entendeu que se verificava esta restrição sistemática e condenou a Federação da Rússia, também pela violação deste artigo 18.º, em articulação com os artigos 5.º e 11.º da CEDH.

Já a queixa por discriminação de Navalnyy não foi atendida, não passando sequer o crivo da admissibilidade.

Em sede de execução de Acórdão, embora sem recorrer à técnica do Acórdão piloto (em que o TEDH passa a abster-se de julgar as queixas até à situação estar resolvida, segundo os critérios que indica, de tal modo que se conclui que até ao Acórdão em que o TEDH vier a reconhecer o termo final do problema sistémico [o que o TEDH vem a fazer numa última queixa, a convite do Comité de Ministros], o Estado destinatário deste Acórdão piloto está em violação da CEDH; a Grande Chambre reconheceu e afirmou a existência do problema sistémico que identificara mais acima no Acórdão, e convidou sob a supervisão do Comité de Ministros do CoE, a Federação da Rússia a modificar a sua legislação e as suas práticas em conformidade (artigos 41.º e 46.º da CEDH).

São interessantes as posições concordantes e dissidentes comuns dos juízes Pejchal, Dedov, Ravarini, Eicke e Packzolay. Gravitam em torno da questão da aplicação do artigo 18.º da CEDH, o que reúne estas opiniões, embora na materialidade, possam ser de sinal contrário.

A questão, para estes Magistrados, está em torno da disposição do artigo 18.º da CEDH. Esta sede de violação deveria, no seu entender, ter sido deslocada para o artigo 17.º. Para estes Magistrados, a previsão do artigo 17.º, relativa ao abuso de direito, não é aplicável apenas aos particulares (quando, por exemplo, abusam do direito de queixa) mas também aos Estados (quando abusam do poder público), e, nesta última dimensão, é mais ampla que a do artigo 18.º, que consome.

Assim, nos trabalhos preparatórios da CEDH, se vê que o artigo 17.º foi concebido para que seja possível a oposição a atitudes abusivas suscetíveis de derivarem em fascismo e outros autoritarismos próprios de Estados Parte que ameaçariam a própria CEDH. Citando os redatores da CEDH, entre os quais Benvenutti do lado italiano, e Teitgen, do lado francês, a ideia que estava subjacente à redação do artigo 17.º, era a de impedir que, por abusos em situações individuais, o Estado consolidasse de modo não democrático o seu poder. Logo, o artigo 17.º da CEDH não foi orientado na sua origem apenas contra os abusos dos particulares (como o abuso do direito de queixa, casos em que tem sido invocado), mas também contra os abusos dos Estados, expressados da forma descrita. Os artigos de outros instrumentos internacionais, em que se encontram disposições análogas, são o artigo 30.º da DUDH e os artigos 5.º dos PIDCP e PIDESC, no quadro das Nações Unidas. O Comité dos DH, instituído no quadro do Protocolo facultativo ao PIDCP, confirmou entretanto que o artigo 5.º do PIDCP é aplicável ao abuso do Estado.

Estes Magistrados colocam, a seguir, a questão do relacionamento da disposição do artigo 17.º com a do artigo 18.º da CEDH. O 17.º é relativo ao abuso de poder, enquanto o artigo 18.º, no interior do campo de aplicação do artigo 17.º (ou seja é ainda relativo a um caso de abuso), é relativo a uma situação especial, mais fina, a de desvio de poder, uma noção que teria origem na noção francesa de détournement de pouvoir e que representaria um abuso mais grave do poder público, um desvio de poder da parte do Estado com uma intenção fraudulenta. Neste sentido, não parece ser mais fácil de aplicar o artigo 18.º do que o artigo 17.º mas, antes, o contrário. O último é mais amplo que o primeiro, sendo aqui a jurisprudência de referência, a análise do TEDH, no caso Merabishvili c. Geórgia, em que o TEDH procedeu à análise do art.º 18.º da CEDH.

Para estes Magistrados, não se verificaria, da parte das autoridades, a posição mais perversa do desvio de poder, no caso Navalnyy, mas sim, certamente, um caso de abuso do poder público e da autoridade e, por isso, nos sete episódios de violação do artigo 5.º par. 1 e do artigo 11.º da CEDH, seria de lhes associar a violação, não do artigo 18.º (desvio de poder) mas do artigo 17.º (abuso do poder público). 


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos